Opinião

A crise na Venezuela e a questão do reconhecimento de um novo "governo"

Autor

  • Ronaldo Bastos

    é doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) professor universitário e pesquisador da Universidad Nacional de Rosario (Argentina).

16 de fevereiro de 2019, 12h03

O mundo acompanha atentamente a crise pela qual passa o governo da Venezuela. Recentemente, a oposição ao governo Maduro deu uma apimentada a mais e o seu líder, Juan Guaidó, que é presidente da Assembleia Nacional, se autointitulou “presidente em exercício”. Imediatamente, vários países reconheceram Juan Guaidó como presidente de fato da Venezuela. Mas será que o “reconhecimento” conferido a Juan Guaidó é compatível com as diretrizes traçadas pelo Direito Internacional?

O instituto do “reconhecimento de Estado” é um ato unilateral meramente declaratório e indica que o Estado “reconhecedor” aceita a personalidade jurídica de direito internacional do Estado reconhecido, com todos os direitos e deveres comuns a esta relação, em consonância com o artigo 8 da Convenção de Montevideo sobre os Direitos e Deveres dos Estados, de 1933.

No que atina ao “reconhecimento de governo”, a situação é similar e a doutrina entende que, embora não seja um ato obrigatório, normalmente ele é utilizado nos casos de instabilidade política ocasionada por revoluções, golpes de estado, fraudes em processo eleitoral e mudanças na ordem constitucional do Estado, ou seja, quando existem dúvidas razoáveis sobre a legitimidade de um chefe de governo.

Em teoria, o reconhecimento de governo é um instituto bastante claro, porém a prática apresenta alguns problemas. Em primeiro lugar, porque o próprio conceito de legitimidade é problemático; e depois, porque não existem tratados assinados, sendo o tema, portanto, regulado pelo costume internacional.

Em geral, em razão do “princípio da efetividade”, um Estado somente poderá reconhecer uma nova liderança como “governo” no caso da constatação de que um novo agrupamento político tem controle efetivo sobre o país, ou ao menos perspectivas prováveis de obtê-lo. E se entende que um governo possui efetividade quando ele, além de dispor de controle sobre o território do Estado, cumpre os tratados e acordos internacionais (inclusive o jus cogens), bem como quando permite que o processo de escolha do chefe de governo seja livre e democrático.

O ato de reconhecimento possui efeitos práticos, como o estabelecimento de relações diplomáticas entre o Estado reconhecedor e o governo reconhecido; imunidade de jurisdição; capacidade postulatória em tribunais internacionais, dentre outros. Assim, um possível não reconhecimento pode isolar um Estado no âmbito internacional, como ocorre com a República Turca do Norte do Chipre, que atualmente só é reconhecida pela Turquia.

Quanto à forma, ocorre de modo similar ao reconhecimento de Estados. Pode ser expressa, quando realizada por meio de declarações escritas ou orais, ou tácita, sendo esta última reconhecida mediante o estabelecimento de relações diplomáticas. Por exemplo, seria contraditório, em tese, que um Estado não reconhecesse determinado governo e, ao mesmo tempo, mantivesse o seu corpo diplomático no Estado estrangeiro.

O ato de reconhecimento, no entanto, pode ser limitado em razão do princípio da não intervenção, que dispõe que um Estado não pode interferir em assuntos internos de outros Estados. Normalmente, considera-se que há intervenção quando um Estado reconhece um governo sem efetividade ou, o que é mais grave, fornece apoio material a este “governo” com o fim de derrubar o governo legítimo, como os americanos fizeram dando treinamento e financiando grupos armados para derrubar vários regimes da América Latina a partir da década de 60.

Existem outros exemplos históricos. A União Soviética, antes de invadir a Finlândia em 1939 e o Afeganistão 40 anos depois, reconheceu como governo um líder comunista local, que pedia ajuda soviética. E tempos atrás, os EUA e o Reino Unido reconheceram rebeldes como governo na Líbia e na Síria e passaram a apoiá-los militarmente, mesmo que tais grupos não tivessem controle efetivo do território nacional.

Na América Latina há também uma série de problemas na utilização do instituto, inclusive envolvendo a própria Venezuela, que não reconheceu o governo Temer após o impeachment de Dilma Rousseff (2014). O próprio Brasil, sob o comando de Dilma, não reconheceu o governo paraguaio de Federico Franco, após o impeachment de Fernando Lugo.

O Paraguai, inclusive, foi suspenso do Mercosul enquanto o novo governo não fosse reconhecido, por violação da “cláusula democrática”, presente tanto no Protocolo de Assunção sobre Compromissos com a Promoção dos Direitos Humanos do Mercosul, de 2005 (Decreto 7.225, de 1º/7/2010), quanto no Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile (Decreto 4.210, de 24/4/2002).

No âmbito da Organização dos Estados Americanos também existe disposição nesse sentido, segundo a qual um Estado pode ter suspensa a sua participação no organismo quando “tenham sido infrutíferas as gestões diplomáticas que a Organização houver empreendido a fim de propiciar o restabelecimento da democracia representativa no Estado membro afetado” (Carta da OEA, artigo 9). Tal disposição foi aplicada a Cuba (1962-2009) e, mais recentemente, a Honduras (2009-2011).

E a Venezuela? Como fica o conflito entre Nicolás Maduro (presidente eleito) e Juan Guaidó (presidente da Assembleia Nacional, que se autointitulou presidente em exercício)?

Essa discussão é necessária porque mais de 40 países reconheceram Juan Guaidó como presidente da Venezuela, incluindo os Estados Unidos, países da União Europeia e o Brasil, que integra o “Grupo de Lima”, formado por 14 países latino-americanos (dos integrantes, apenas Uruguai e México ficaram silentes quanto ao não reconhecimento e propuseram um acordo chamado de “Mecanismo de Montevideo”).

Pois bem. Considerando que a cúpula das Forças Armadas está ao lado de Maduro, das quais apenas um militar do total de 600 pediu exoneração em apoio a Guaidó, fica claro que Gauidó não possui controle efetivo algum sobre a sociedade venezuelana, o que leva à conclusão de que, pelo menos em princípio, considerando que Guaidó não teria controle efetivo sobre a sociedade venezuelana, o reconhecimento do “governo Guaidó” é, do ponto de vista do Direito Internacional, um ato ilegal e violador da soberania venezuelana.

Mesmo com este reconhecimento, a situação ainda poderia ser agravada. Do ponto de vista do Direito Internacional seria pior ainda se o Brasil enviasse auxílio material a Guaidó ou ameaçasse participar de uma intervenção militar na Venezuela liderada pelos EUA.

De todo modo, a prática latino-americana demonstra que os atos de (não) reconhecimento ficam mais no plano da retórica do que da prática efetiva. Isto é, eles não vêm acompanhado, como seria lógico, de rompimento de relações diplomáticas.

E aqui é relevante entender algumas posições de internacionalistas sobre o tema. Segundo a “Doutrina Tobar”, o reconhecimento de governo só deveria ser processado quando se comprovassem o apoio popular ao governante, o que, é preciso dizer, é uma fórmula bem precária e que não deve ser aceita. Se pensarmos no governo Temer, que nunca passou de 6% de aprovação, ele nunca poderia ser reconhecido.

Já segundo a “Doutrina Estrada”, sob pena de violar o princípio da não intervenção, o Estado que não concordasse com a forma de ascensão de um dado governo deveria simplesmente romper relações diplomáticas, o que, ao meu juízo, é muito mais coerente com os valores e princípios do Direito das Gentes.

O caráter retórico dos atos de reconhecimento, entretanto, não torna a crise venezuelana menor, que não pode, evidentemente, ser atribuída aos países vizinhos, sendo proporcionada principalmente pela má gestão do Estado desde o chavismo. Apesar dos presentes atos de não reconhecimento em relação à Venezuela serem, a princípio, ilegais, não podemos desconsiderar as graves violações ao Direito Internacional dos direitos humanos que o governo Maduro está proporcionando, como a perseguição a líderes da oposição e à imprensa, bem como quando ele se nega a receber ajuda humanitária para atenuar a crise econômico-social que atinge o povo daquele país, que envolve desde fome e violência política até uma intensa crise migratória.

Washington aposta que uma ajuda humanitária pode ser um ponto de inflexão, a ser decidido pela sociedade venezuelana, entre um país de miséria, atrelado ao governo Maduro, ou de alimentos e remédios, atrelada ao apoio externo. Inclusive, os Estados Unidos já protocolaram no Conselho de Segurança proposta de resolução em que seria prevista a facilitação da ajuda humanitária, devendo Maduro se comprometer com a realização de novas eleições presidenciais.

O sucesso dessa operação, que ainda depende de que a Rússia não utilize o seu poder de veto, poderá fazer com que as forças armadas deixem de dar apoio a Maduro e, a partir daí, ficaria mais viável ser pensada uma solução negociada e de acordo com as diretrizes traçadas pelo Direito Internacional.

Até agora, porém, qualquer tipo de reconhecimento ou, o que é pior, de auxílio a outro ator político venezuelano será contrário ao Direito das Gentes.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor de Direito Constitucional do Centro Universitário Maurício de Nassau e pesquisador da Universidad Nacional de Rosario (Argentina).

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