Diário de Classe

Presidencialismo de convicções e a miséria da instrumentalidade

Autores

  • André Del Negri

    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) doutor em Direito Processual pela PUC Minas mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Frederico Pessoa

    é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

16 de fevereiro de 2019, 7h00

“Cría cuervos y te sacarán los ojos”, alerta-nos o adágio espanhol. Em uma sociedade democrática, sempre corremos o risco de ter nossos olhos arrancados por aqueles a quem confiamos nosso voto, afinal, excessos, usurpações, existem. Diante disso, um ponto: o de que os inúmeros malogrados do país passam por descuidos de todas as funções de Estado, do Executivo ao Judiciário, e daí por diante. Sabemos bem que isso amplia as reclamações, desde os modos mais simples, como um post nas redes sociais, até a problematização e instalação do discurso-crítico mediante teorias formalizadas a respeito de futuras decisões políticas de Estado, tendo como exemplo as objeções ao Projeto de Lei Anticrime[1], proposta do ex-juiz Sergio Moro, atualmente ministro da Justiça.

Feita esta ligeira introdução, viemos hoje falar sobre dois assuntos. Um: o problema da autoridade judiciária como detentora do sentido normativo. Dois, o recrudescimento do debate público que saltou aos olhos nas últimas eleições presidenciais. Postos esses destaques, nosso foco, agora, começa pelo ponto dois.

Lembremos que a exasperação popular com a política é algo que já vinha acontecendo com a candidatura Bolsonaro, que semeou campanhas retóricas. Ele, por arroubos de palanque, aos olhos da plateia de eleitores, de quando em quando, emitia declarações de estímulo ao sectarismo. Basicamente, algo que pode ser visto ao longo de sua carreira política (ver, por exemplo, aqui e aqui). O inquietante é que agora, como presidente da República, com a caneta na mão e usando o Twitter como um atiçador de lareira (ler aqui), a temperatura tende a aumentar. Neste passo, cabe análise objetiva. Vejamos.

No início do governo, empunhando a bandeira do combate à corrupção, ao invés de desenvolver um discurso mais plural possível, a equipe administrativa avistou um "target" no radar. Trata-se, dentro do espectro político, da "esquerda", que foi apontada pelo estafe como "inimiga da pátria". E o ódio a um inimigo funciona como gatilho para dar aval à caçada — no viés ideológico —, com promessa de "limpeza do Estado". Pois bem. Cabe reflexão. A tanto é preciso dizer três coisas. A primeira é que o discurso do presidente é fincado num dogmatismo ideológico, via articulação retórica, com jargões do uso cotidiano, usados para convocar a atenção pública ("opinião geral"). É certo que isso tudo interessa à sala de aula para demarcar os sentidos (multissignificação) do termo "ideologia". A segunda é que os ministros que compõem o núcleo raiz da equipe (Educação, Relações Exteriores e Direitos Humanos), seguem a mesma linha e conduzem a opinião da "maioria" por um discurso de sensos (verdades). A terceira, mais crítica, e aqui defendida, é que a corrupção independe de ideologia, porque afeta tanto grupos à direita, quanto à esquerda. É nesse ponto que queremos chegar.

Porém, quando a "maioria" já está convencida de que existe um inimigo e um caminho para a virtude, pois uma "nova era" virá, tem-se um sinal inquietante: em situações que afloram as diferenças, essa "maioria" tem apresentado uma baixa tolerância a reflexões críticas. Sim, há uma massa que tem feito ataques pessoais, nunca contestações às críticas. E é preciso que se diga: pessoas estão começando a sentir medo de expressar suas opiniões, não apenas por temor às reações violentas desta massa (que sempre existiu), mas por tais reflexos estarem, agora, simbolicamente chancelados pelo Governo (o caso do deputado Jean Wyllys é a ponta de um iceberg).

Assim, de entrada, que fique mais claro: escrevemos esta coluna por três motivos. Primeiro, porque se tantos diziam haver uma "ideologia" no Brasil, palavra com muitos sentidos, é cabível, antes de usá-la da boca para fora, que se entenda – no mínimo – um deles, ao menos o sentido predominante do termo. Eis aí uma questão que pode aguçar problemas em tela de aumento[2]. E esta palavra "ideologia", na encruzilhada entre direções, haja vista sua amplitude e imprecisão, possui uso corrente, sim, que, aliás, é abordado em qualquer Universidade séria. Ora, a "ideologia", em sentido tônico, está ligada a uma visão distorcida de mundo. Desta forma, a "ideologia", aqui, em rápido comentário, é uma linhagem de algo que é irrefletido na sociedade. Ou melhor: é algum tanto impregnado na estrutura estatal, mas que a turma da sociedade, mesmo enganada, não percebe.

Dito isso, estamos diante de um desafio. É aqui que entra o segundo motivo desta coluna. Em alguma medida, o atual governo (e seu círculo) cai na mesma armadilha que tenta desarmar: troca uma ideologia por outra. Como vimos acima, fica patente seu caráter ideológico no (re)aparelhamento do Estado.

E daí? O que isto tem a ver com o Direito? Resposta: tudo. E por quê? Ora, é simples: o alerta é factível para evitar a classificação das coisas ancoradas em ilhas de subjetividade (formas próprias de ver o mundo), distorções propositais e permanentes, que podem ser localizadas (inclusive) no Judiciário e dentro do Ministério Público. Por isto, a nossa ambição nesta coluna é desencadear reflexões, em linha de objetividade, para propiciar discussões racionais. E sejamos claros: a correção de manejos ideológicos é algo praticável. Nenhuma opção nos parece mais útil que a da importância de se adotar um marco teórico definido para demarcar o início de um debate. Resumindo: menos "achismos", que é uma fala desvairada, e mais conhecimento objetivo. O uso de "achações' — que é um lugar sem borda — nada tem de jurídico, e por isso mesmo obscurece o cerne de qualquer discussão séria, como podemos conhecer das lições de Lenio Streck[3]. Tal como disse Carl Sagan, numa demonstração inequívoca de acerto, "o vírus do analfabetismo científico" é difícil de debelar[4].

Terceiro, porque queremos refletir academicamente as decisões e possíveis erros do Judiciário. Acresce que todo o quadro, até aqui comentado quanto à "ideologia", passa também pela função judicial. Ora, os integrantes dessa função de Estado não estão desprovidos desse viés ideológico, muito menos isentos de tentar instrumentalizar o processo. Sim, a instrumentalidade é disfunção que precisa ser erradicada, porque impregnada de herança deixada por Oskar von Bülow, desde 1868, como atividade do julgador, como bem esclareceu André Cordeiro Leal[5]. No fundo, a vertente de Bülow, "reimplantada" no século XXI, é um atuar grosseiro que sustenta o "nós contra eles". Afinal, de tempos em tempos acompanhamos a aplicação de valores considerados importantes para a sociedade por intermédio do decisionismo de alguns juízes, que afastam as regras jurídicas em prol de escolhas morais.

Nesse sentido, assistimos a várias decisões encharcadas de livre convencimento nos últimos anos, tanto no STF, como em outras instâncias do Judiciário. Esse motivo, bastante preocupante, é voltado para saber se esses "arranhões' à Constituição (aspas com ironia) terão mais ênfase em 2019, porque a serpente e o ovo (decisionismo do Judiciário e herança de von Bülow) não foram debelados em tempo oportuno, o que já esclarece de vez o título desta coluna ao leitor, ou leitora, que até aqui chegou.

Resultado disso tudo? Muita preocupação para nós todos da área jurídica. Dentre diversos desajustes, basta retomar a torrente de acusações do Ministério Público na operação "lava jato", que deveria zelar pelas garantias constitucionais, pela legalidade e constitucionalidade do sistema jurídico vigente. No entanto, muitos problemas vieram embalados em papel nobre. Basta lembrar o contexto das conduções coercitivas ilegais (ler aqui).

E não é só isso. Vários outros dilemas, como os quase 200 delatores beneficiados por redução de penas e o excesso ilegal de duração das prisões preventivas (ou a celebração da prisão preventiva como estímulo ao acordo de “colaboração premiada”), além da grave questão da prisão antes do trânsito em julgado da condenação. Agora será a vez do plea bargain, mecanismo importado dos EUA para ser usado na área criminal (leia a análise crítica de Lenio Streck sobre o “plea”, aqui). E sim! No lado oposto do ringue, os velhos juízos morais, já que o Judiciário nunca está à altura da sua jura de imparcialidade. Isto tudo correlacionado, coloca-se em risco as garantias fundamentais.

Mais: lembre-se das gravações ilegais de acusados, parentes e advogados. É possível resgatar ainda outras questões curiosas, a exemplo da imparcialidade de Sergio Moro – o "juiz da lava jato" – por causa da decisão de trocar a toga pela função de ministro da Justiça. Sob um padrão mais rigoroso, a imparcialidade no caso Moro flutuou no ar como se fosse um pássaro. De resto, a maior curiosidade é saber como isso tudo é (foi) ou será tratado nas salas de aula, nas mais de mil e quinhentas faculdades de Direito no Brasil. Por outro lado, problemas novos virão. Aguardemos para ver a atuação do Judiciário.

Na formação dessas linhas cruzadas, não se trata de fazer críticas banais ao Judiciário ou à lava rápido ou "a jato", mas, sim, de examinar os excessos cometidos. E de duas uma: ou a Lava Jato não cometeu nenhum equívoco; ou, se cometeu, o seu conhecimento é utilíssimo, porque não devemos perpetuá-los. Para encerrar, é importante considerar que o debate em política no Brasil está cada vez mais raso e trivial. Quadra a exame o Judiciário, que cai na dança do processo como instrumento da jurisdição, comportamento despótico frente ao que alcançamos em termos de direitos e garantias fundamentais já assegurados na Constituição de 1988.


Referências

LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
MÉZAROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014.
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia das Letras.
STRECK, Lenio. Precisamos falar sobre Direito e Moral. Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2019.
ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.


[1] Sobre o Pacote Anticrime do Ministro Moro, ler o comentário publicado pelo Professor Lenio Streck.
[2] ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. Ver também sobre isso MÉZAROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014.
[3] STRECK, Lenio. Precisamos falar sobre Direito e Moral. Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2019.
[4] SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia das Letras.
[5] LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

Autores

  • é doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faz estágio pós-doutoral em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e integra a equipe do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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