Opinião

A necessidade de se observar o princípio da legalidade na execução penal

Autor

  • João Marcos Braga de Melo

    é advogado criminalista em Brasília pós-graduado em Direito Penal Econômico e em Direito Penal pelo ICCrim em parceria com a Universidade de Coimbra pós-graduado em Direito Penal e em Processo Penal pelo IDP mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e ex-professor voluntário da instituição.

14 de fevereiro de 2019, 5h29

Com o surgimento das workhouses na Inglaterra do século XIX sobrevieram regulamentações sobre as condições das pessoas detidas nas casas de trabalho. Em 1834, foi editado o Poor Law Amendment Act, segundo o qual “a condição de um pobre nas casas de trabalho não deveria ser tão atrativa quanto a do trabalhador mais pobre do lado de fora da casa de trabalho”[1]. Buscava-se, com isso, mostrar à classe trabalhadora que a opção pelas casas de correição seria aquela menos vantajosa. Nesse contexto, os sofrimentos vivenciados intra muros deveriam ser maiores do que aqueles enfrentados pelas pessoas livres. Assim surgiu o princípio do less eligibility.

Ainda hoje em dia o mencionado princípio povoa o imaginário popular, está presente em discussões político-criminais e norteia, mesmo que de forma velada, decisões judiciais, o que causa profundos danos sociais e humanos. Para Massimo Pavarini, inclusive, a doutrina do less eligibility está essencialmente ligada à necessidade correcional do cárcere. Segundo essa lógica, é por meio de um sofrimento maior que se “adestra” os encarcerados[2].

Por trás dessa ideia há, sem dúvida, uma inferiorização cívica das pessoas presas e que as transforma em cidadãos de segunda categoria. Modernamente, essa ideologia é contrária ao direito humano da igualdade de tratamento. Além disso, o lamentável fato de os cidadãos não encarcerados não conseguirem viver com dignidade não é uma justificativa racional para o Estado deixar de tratar aquele que está sob o seu cuidado de maneira digna. Especialmente porque é o próprio Estado que arroga para si o poder de privar alguém da liberdade.

Também amparada na ideologia de inferioridade do detento, surgiram, no início do século XX, as teorias da supremacia do Estado, oriundas do Direito Administrativo. De acordo com esse marco teórico, a relação do Estado com as pessoas presas estariam regidas por uma especial sujeição e, portanto, existiria a possibilidade “de inobservância de direitos fundamentais e flexibilização do princípio da legalidade, com a permissão de trânsito em um campo inteiramente alheio ao direito, não valorado juridicamente”[3]. Esse paradigma da execução penal permitiu que o Estado privasse os detentos de direitos não abarcados na sentença penal condenatória e não previstos em lei. Haveria, nesse contexto, a possibilidade de privações colaterais.

Ainda hoje há uma grande tendência, em especial nos teóricos convencionais da execução penal no Brasil, em se privilegiar as teorias da supremacia do Estado. Não à toa diversos autores definem a natureza da execução penal como mista, ou seja, que a execução penal “é atividade complexa, que se desenvolve entrosadamente nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estatais: o Judiciário e o Executivo”[4].

As teorias de supremacia do Estado e administrativistas acabam por afastar boa parte dos conflitos vivenciados dentro do cárcere do controle pelo Poder Judiciário. Mais do que isso, catalisam a criação, dentro dos presídios, de um código de conduta externo ao Direito. Elas estigmatizam o detento e o colocam numa categoria de proteção inferior, pois permitem a violação colateral de direitos individuais e criam, por isso, cidadãos de segunda classe.

Rodrigo Roig afirma que é a combinação da teoria da supremacia do Estado com a ideologia do less elegibility que acaba por gerar a receita mais danosa aos direitos fundamentais da pessoa presa. Para o autor:

Não há mais espaço para os legados das ideias de retribucionismo, less eligibitiy ou de supremacia especial do Estado. Tais legados devem ceder lugar à concreta postura de que, salvo as restrições comprovadamente inerentes à própria condição de encarceramento, todos os demais direitos e garantias dos reclusos devem ser escrupulosamente preservados.

A garantia dos direitos fundamentais dos detentos é uma luta que está longe de ter um fim. Especialmente no Brasil, ela historicamente encontra forte resistência e só agora o Poder Judiciário vem analisando questões importantes sobre os presídios e sobre os direitos dos presos (por exemplo, a ADPF 347).

Em outros países, já são antigos precedentes em que as cortes asseguraram aos detentos todos os direitos não limitados pela lei ou pela sentença penal condenatória. É o caso Coffin vs. Reichard (julgada em 1944, nos EUA, pela United States Court of Appeals for the Sixth Circuit, onde se assentou que:

Um prisioneiro mantém todos os direitos de um cidadão comum, exceto aqueles expressamente, ou por implicação necessária, tirados dele por lei. Embora a lei tire a sua liberdade e imponha um dever de submissão e observância da disciplina para a sua conduta e de outros prisioneiros, isto não fasta seu direito à segurança pessoal contra invasão ilegal. Quando um homem possui um direito substancial, os tribunais serão diligentes em encontrar uma maneira de protegê-lo[5].

No mencionado julgado, destaca-se que se decidiu ser de competência do Poder Judiciário assegurar a qualquer cidadão (inclusive o preso) um direito substancial. Além disso, deixou-se bem claro que é a lei e apenas ela que limita os direitos individuais do detento.

De igual modo, na Alemanha, o Tribunal Constitucional impugnou a legalidade do conteúdo de uma circular da administração penitenciária que veiculava limitações ao exercício de certos direitos fundamentais. Na ocasião, a corte ressaltou que “os direitos dos reclusos só podem ser restringidos por lei ou por força de uma lei”[6].

No caso Neira Alegría y otros Vs Perú, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que, embora exista uma relação específica entre o Estado e o detento, tal fato não justifica nenhuma flexibilização de garantias reconhecidas para todas as pessoas. Pelo contrário: as garantias individuais devem ser acentuadas.

O princípio da legalidade na restrição dos direitos do preso encontra específica previsão legal. O Código Penal assegura ao preso todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade (artigo 38). De igual modo, a Lei de Execução Penal garante ao apenado todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (artigo 3º). Os Princípios Básicos para Tratamento dos Reclusos da ONU estabelecem (Princípio 5) que: “Exceto no que se refere às limitações comprovadamente necessárias em virtude do encarceramento, todos os reclusos continuam a gozar os direitos humanos e liberdades fundamentais enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem”.

Entretanto, o princípio da legalidade parece não ser visto com bons olhos no nosso país. Não são raras disposições normativas que impõem aos detentos limitações absolutamente desnecessárias e ilegais. A vedação do consumo de determinados alimentos, a obrigação de os homens rasparem o cabelo e a barba, entre outros, são previsões sem amparo na lei e, mais do que isso, são verdadeiras violações (humilhantes) aos direitos individuais dos detentos.

Raríssimas são as vezes em que limitações a direitos de presos ganham alguma notoriedade nos veículos de comunicação. Como exemplo, recentemente foi noticiada a negativa, pelo Poder Judiciário, de permissão para o ex-presidente Lula ir ao velório de seu irmão. Também no Distrito Federal se naturalizou restrições a acesso a determinados alimentos, a imposição da obrigação de raspar os cabelo e barba, a limitação ao direito de visita[7], entre outras, todas sem nenhum embasamento legal.

O fato é que há uma tradição bastante consolidada no sentido de se conferir menor proteção jurídica aos detentos e existe a necessidade de atuação substancial do Poder Judiciário em assegurar especial proteção à pessoa segregada. A forma mais segura de evitar o arbítrio e o tratamento diferenciado é se aplicar o princípio da legalidade estrita, ou seja, o penalmente condenado apenas pode ter limitados os seus direitos expressamente previstos na lei e na sentença.

Sem a consolidação do princípio da legalidade na execução penal, continuará a existir, na prática, sérias e graves violações a direitos humanos da pessoa encarcerada. Os presos continuarão a ser vistos como cidadãos marginalizados e de menor valor. É necessária uma inversão da ótica propagada pelas teorias de supremacia do Estado e do less eligibility, afinal, a situação de vulnerabilidade coloca o Estado na posição de garante em relação ao preso. E, mais do que isso, como já afirmou a Suprema Corte dos Estados Unidos: não existe nenhuma cortina de ferro entre o preso e a Constituição.


[1] http://www.victorianweb.org/history/poorlaw/eligible.html
[2] Segundo Massimo Pavarini, o modelo carcerário se realiza como “pena” em um tempo cronologicamente sucessivo ao oferecimento como lugar de práticas de exclusão. O cárcere surgiu originariamente para satisfazer uma instância disciplinar. É ontologicamente espaço de práticas pedagógicas, onde se “adestra” os homens a serem melhores, isto é, mais úteis. O cárcere mantém um nível elevadíssimo de refratabilidade nos confrontos das relações sociais existentes no “mercado livre” embora isso tenda a funcionalizar-se por meio da regra da “less eligibility” (ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 4. Ed. 2018, p. 53).
[3] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 4. Ed. 2018, p. 52.
[4] GRINOVER, Ada Pellegrini. A natureza jurídica da execução penal. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; NUSANA, Dante (Coord). Execução penal. São Paulo: Max Limonad, 1987, p. 7.
[5] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 4. Ed. 2018, p. 57.
[6] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 4. Ed. 2018, p. 57.
[7] Pessoas processadas, ainda que sem sentença condenatória, por crime de tráfico de drogas não podem visitar presos no DF.

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    é advogado criminalista, sócio da Braga de Melo Advocacia Criminal. Professor voluntário da Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal e mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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