Garantias do Consumo

Da boate Kiss ao Flamengo: a inércia entre as tragédias

Autores

  • Diógenes Faria de Carvalho

    é coordenador-geral de Consultoria Técnica e Sanções Administrativas da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública pós-doutor em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG) da PUC-GO da Universidade Salgado de Oliveira (Universo) do Instituto de Pós-Graduação e Graduação IPOG e professor no mestrado em Direito Constitucional Econômico do Centro Universitário Alves Faria e Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Unialfa/Fadisp).

  • Vitor Hugo do Amaral Ferreira

    é doutor em Direito (ênfase em Direito do Consumidor e Concorrencial) pela UFRGS professor universitário coordenador do Centro de Prevenção e Tratamento do Superendividamento do Consumidor na Universidade Franciscana (UFN) diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BrasilCon) conselheiro titular do Fundo Gestor de Direitos Difusos do Ministério da Justiça e conselheiro da Escola Superior de Direito do Consumidor do Estado do Rio Grande do Sul (ESDC).

13 de fevereiro de 2019, 11h03

Spacca
Em 27 de janeiro de 2013 nos tornamos vítimas, junto a centenas de pessoas feridas e aos 242 mortos, da tragédia da boate Kiss. Fomos vítimas no sofrimento, somos todos vítimas na angustia da impunidade.

Já se foram seis anos, um passado sempre presente que roubou o futuro de centenas de jovens naquela noite. Somos milhares de pessoas, vítimas da ausência, vítimas da saudade, vítimas do silêncio das autoridades. Somos todos reduzidos e pequenos diante da morte; mas muitos são os grandes, anônimos e gigantes que derrubaram paredes, retiraram amigos, desconhecidos, que entre fumaça e fogo se fizeram bravos. Eis os nossos heróis daquele janeiro.

Heróis e vítimas marcaram o fevereiro de 2019. O recente incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo levou 10 jovens à morte, trouxe à pauta a inobservância de instrumentos que possam efetivamente prevenir tragédias. Entre os jovens da boate Kiss e dos jogadores da base do Flamengo, mais do que sonhos ceifados, famílias desoladas, temos um componente químico que esteve presente nas duas tragédias. O gás tóxico liberado pelo material de revestimento presente na boate e no contêiner em que dormiam os jogadores é parte do que nos faz questionar a inércia entre as tragédias.

É no mínimo revoltante ver tantas autoridades engajadas em descobrir as causas e acompanhando investigações; os legisladores questionando leis, propondo novas normas; o jogo de empurra entre os possíveis responsáveis. A omissão que fez as tragédias, na ausência de uma fiscalização apropriada, é quem descumpre também a lei vigente.

Ao mundo jurídico restam as normas que de alguma forma buscam garantir, em sua previsão, a prevenção de danos e a sua reparação quando negligenciados os cuidados com o outro. Por certo, é incalculável o valor da vida. Se a morte de uma pessoa querida gera abalo quando em razões naturais, maior é o dano quando violentamente é interrompida a vida.

O ordenamento jurídico brasileiro trouxe ao Estado responsabilidade subjetiva quando por omissão de atos tenha promovido dano. O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, impõe a responsabilidade objetiva aos fornecedores de produtos e serviços. No artigo 14, CDC, está a regra aplicável ao caso da boate Kiss, gerando responsabilidade pelo acidente de consumo promovido.

Dos apontamentos transcritos, apenas uma amostra da potencialidade de delimitações possíveis. Por mais que a pauta a seguir trate de reforma ou mesmo criação de leis e normas (sempre a forma mais fácil de generalizar a culpa), é possível acreditar que possuímos os instrumentos, resta-nos operadores.

O Ministério da Justiça, na época da tragédia da boate Kiss, publicou a Portaria 3.083/2013, que passou a disciplinar o direito do consumidor à informação sobre a segurança dos estabelecimentos de lazer, cultura e entretenimento.

A ideia de assegurar requisitos mínimos de segurança, garantindo aos consumidores informações corretas, claras, precisas, ostensivas sobre os riscos que produtos e serviços apresentam à sua saúde e segurança não é novidade, eis que o Código de Defesa do Consumidor já traz de forma explícita tal enunciado.

A regra ministerial trouxe três dispositivos pontuais: a) informar ao consumidor, de forma clara e inequívoca, a existência de alvará de funcionamento e de alvará de prevenção e proteção contra incêndios do estabelecimento, ou de autorização equivalente, bem como suas respectivas datas de validade, em qualquer material de oferta ou publicidade e nos anúncios publicitários de serviços de lazer, cultura e entretenimento; b) os bilhetes e ingressos para eventos de lazer, cultura e entretenimento deverão conter informações ostensivas e adequadas sobre a existência de alvará de funcionamento e de alvará de prevenção e proteção contra incêndios do estabelecimento, ou de autorização equivalente, bem como suas respectivas datas de validade; e c) deverá ser fixado cartaz ou instrumento equivalente na entrada do estabelecimento com informações sobre sua capacidade máxima, sobre a existência de alvará de funcionamento, de alvará de prevenção e proteção contra incêndios do estabelecimento ou autorização equivalente, bem como suas respectivas datas de validade, sem prejuízo da observância de demais regras dispostas em legislação específica.

A então nova regra, inquestionável no mérito, levantava alguns contrapontos, a exemplo da sua aplicabilidade sancionatória, visto ser uma portaria, e não lei. Por certo, o tema é de extrema relevância, mas o sistema consumerista carece de iniciativas viáveis que associem o dever do Estado (Executivo, Judiciário e Legislativo) em promover, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Vejam que a portaria buscou regulamentar o direito básico à informação sobre a segurança dos locais de lazer, cultura e entretenimento (e os demais estabelecimentos? outras espécies de serviços?). Será que precisamos de tragédias específicas para que se tenha a criação de uma norma (o que não adiantará se não houver fiscalização)? Qual a situação das boates seis anos depois do fatídico dia 27 de janeiro?

Da tragédia da boate Kiss se fez com que os estabelecimentos do mesmo gênero fossem objetos de uma verdadeira varredura, e o mesmo parece acontecer, a partir de agora, com os alojamentos de clubes de futebol. O poder público, não nos deixa dúvida, negligencia sua atribuição e tardiamente tenta mostrar interesse quando a tragédia já existe, quando o dano gerado já é irreparável, quando a vida já virou morte.

Independente das devidas responsabilidades que existem e devem ser apuradas, façamos aqui um questionamento a partir da relação de consumo: a boate Kiss foi consumidora da empresa que lhe vendeu espuma, ainda que tenha feito uso inadequado para revestimento; o Flamengo também é consumidor de uma empresa que vende contêiner, que, por sua vez, os reveste da mesma espuma.

Observamos o disposto no artigo 39, CDC, que veda aos fornecedores de produtos ou serviços, colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro).

Neste sentido, quais as normas expedidas para fabricação e comercialização de produtos que contenham tal espuma? Quais os órgãos oficiais competentes para emissão das normas e fiscalização? Na ausência destes o que diz a Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conmetro?

Não queremos ser oposicionistas apenas, sem o compromisso da afirmação leviana e infundada, mas não sejamos tolos, normas, decretos, portarias passaram a sufocar a prática da fiscalização. Há uma preocupação com os direitos, amplia-se cada vez mais o direito à informação, sem pensar na qualificação, na estrutura e condições de quem fiscaliza.

Por certo, caso não se tome consciência da simples, diríamos também inconsequente, edições de normas, sem que se conceba a operacionalização prática delas, estaremos diante de um caminho sem volta à banalização dos direitos. Estaremos afogados em um emaranhado de normas.

Longe do mundo jurídico, um último registro: quando se perde a esposa, somos viúvos, quando perdemos os pais, somos órfãos, quando perdemos os filhos, a dor é tamanha que nem nome se tem a dar. Queríamos saber apenas o que dizer aos pais, essas vítimas sobreviventes, que viram morrer uma parte de si.

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