Opinião

O crime do artigo 56 da Lei Ambiental e o princípio da legalidade

Autores

11 de fevereiro de 2019, 5h14

No estado de São Paulo, as autoridades policiais têm considerado que o armazenamento de qualquer quantidade de produtos químicos controlados sem licença emitida pela Polícia Civil, em desconformidade com o Decreto estadual 6.911/1935 e o comunicado de 9 de agosto de 2003, emitido pela Divisão de Produtos Controlados da Polícia Civil do Estado de São Paulo, configuraria o tipo previsto no artigo 56 da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais):

“Art. 56. Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.”

Todavia, referida interpretação deve inspirar cuidados e merece reparos. A legislação penal prevê, explicitamente, que constitui crime o armazenamento de substância tóxica e nociva à saúde humana em descordo com as exigências estabelecidas em lei ou nos seus regulamentos. Trata-se do que se denomina de norma penal em branco, ou seja, necessita de um complemento em norma infraconstitucional para que se perfaça o tipo penal, qual seja, uma “lei” ou ao “seu regulamento” aptos a serem infringidos.

A interpretação do tipo penal deve ser restritiva, sob pena de alargamento da incriminação e a consequente violação aos princípios da legalidade e da reserva legal. Nesse contexto, deve-se entender os termos “lei” e “seu regulamento” no sentido estrito, conforme sua definição constitucional.

Nesse sentido, o elemento normativo “lei” deve ser interpretado como lei ordinária, complementar ou delegada oriunda do processo legislativo (artigo 59 da Constituição Federal). Da mesma forma, o elemento normativo “regulamento” deve ser interpretado como norma subordinada a uma lei, expedida para a sua fiel execução (artigo 84 da Constituição Federal). Não se trata de mero preciosismo, mas de respeito aos princípios da legalidade e da reserva penal.

O Supremo Tribunal Federal consolidou jurisprudência no sentido de que a norma penal em branco não violaria o princípio da legalidade por fazer expressa remissão ao texto complementar[1]:

A Lei 11.343/06 incorporou, por remissão, a lista de substâncias previstas na norma de infralegal – Portaria SVS/MS 344/1998. Assim dispôs o art. 66 da Lei 11.343/06: “Art. 66. Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS 344, de 12 de maio de 1998”. Ou seja, a lei remeteu à portaria vigente, até sua atualização. Assim, tendo em vista a expressa remissão ao texto heterônomo, não há que se falar em violação ao princípio da legalidade.

A Lei 11.343/06 incorporou, por remissão, a lista de substâncias previstas na norma de infralegal – Portaria SVS/MS 344/1998. Assim dispôs o art. 66 da Lei 11.343/06: “Art. 66. Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1º desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS 344, de 12 de maio de 1998”. Ou seja, a lei remeteu à portaria vigente, até sua atualização. Assim, tendo em vista a expressa remissão ao texto heterônomo, não há que se falar em violação ao princípio da legalidade.

No caso em tela, o artigo 56 da Lei 9.605/98 faz menção expressa à lei ou ao seu regulamento. Qualquer outra norma que não se enquadre nas referidas categorias não seria apta a complementar o tipo penal em questão.

O Decreto 6.911, de 19 de janeiro de 1935, da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, autodenomina-se “Regulamento para a Fiscalização de Explosivos, Armas e Munições”. No entanto, com exceção do nome, em nada se assemelha com o regulamento previsto na legislação atual. Trata-se do que se denomina de regulamento autônomo, norma prevista em Constituições anteriores, mas não recepcionada pela Constituição Federal de 1988, pois não é submetida ao processo legislativo.

Tércio Ferraz Jr. nos dá importante ensinamento sobre a questão[2]:

“É preciso disciplinar a forma como será cobrado, a autoridade que irá cobrá-lo, a agência que irá recolhê-lo, os prazos em que isso deve ocorrer etc. É verdade que, teoricamente, nem sempre um regulamento pressupõe uma lei determinada. Existem os chamados regulamentos autônomos, estabelecidos por decreto, e subordinados à ordem jurídica em seu conjunto. Tais regulamentos eram admitidos pela Constituição anterior (67-69). Hoje, não mais. Os decretos que regulamentam leis, porém, dentro da concepção liberal do direito que reconhece o princípio da legalidade como regra estrutural do sistema, devem servir ao fiel cumprimento da lei, não podendo, em tese, contrariar-lhe os conteúdos prescritivos nem acrescentar-lhe outros. Essa restrição está ligada aos valores da segurança e da certeza”.

Nesse cenário, não seria possível enquadrar o Decreto 6.911/1935 como um regulamento para fins do tipo penal previsto no artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais. Além disso, a própria estrutura do tipo penal não permite a interpretação que tem sido dada pela Polícia Civil do Estado de São Paulo, uma vez que apenas tipifica a infração a regulamentos subordinados a uma lei, o que não ocorre em regulamentos autônomos.

Nesse mesmo sentido, tampouco poderia ser considerada típica a infração ao comunicado de 9 de agosto de 2003, uma vez que o referido comunicado não configura lei, tampouco regulamenta uma lei.

Nesse aspecto, a inobservância do Decreto estadual 6.911/1935 ou do comunicado de 9 de agosto de 2003 não pode ser enquadrada como ato típico previsto no artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais, uma vez que referidas normativas estaduais não constituem lei ou seu regulamento nos termos da Constituição Federal.

Ademais, a interpretação de que a ausência de licença emitida por órgão estadual configura ato típico também não se coaduna com o princípio da reserva legal no que tange à complementação de norma penal em branco. Não basta a infração de uma lei de ordem ambiental para que esteja configurada a infração ao artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais, é necessário que essa lei seja federal, sob pena de haver a delegação de atribuição legislativa em matéria penal, em violação ao princípio da reserva legal (artigo 22, I, CF)[3].

Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli são enfáticos[4]:

Essas leis em branco não criam maior problema quando a fonte normativa a que remetem é outra lei formal, isto é, também emanada do Congresso Nacional. Mas o problema se torna mais complicado quando a norma não surge de outra lei em sentido formal, e sim de uma lei em sentido material, mas que emana de uma Assembleia Legislativa estadual ou da Administração (Poder Executivo, inclusive o municipal). Nestes casos, pode-se correr o risco de estarmos diante de uma delegação de atribuição legislativa em matéria penal – que compete ao Congresso da Nação – e que estaria vedada pela Constituição Federal.

No caso concreto, vislumbra-se que adotar o Decreto 9.611/35 e o comunicado de 2003, normas estaduais, como complementos à norma penal em branco prevista no artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais é inconstitucional, pois se estaria delegando a atribuição legislativa em matéria penal para órgãos estaduais.

Por todo o exposto, são cristalinos os motivos pelos quais o Decreto 9.611/35 e o comunicado de 2003, ambos do estado de São Paulo, não podem ser considerados como complementos ao artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais. Assim, estaria equivocada a interpretação das autoridades quanto à tipificação para o artigo 56 da Lei 9.605/98 da conduta no que tange à ausência de licença emitida pela Secretaria de Segurança Pública para produtos controlados.


Referências bibliográficas
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. Vol. 1. 19. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Thomson Reuters, 2018.
PRADO, Luiz Regis. Direito penal do Ambiente. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela penal do meio ambiental. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.


[1] STF – RE: 891200 SP – SÃO PAULO 0001546-10.2013.8.26.0625, Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 25/09/2017, Data de Publicação: DJe-219 27/09/2017; e STF – RE: 765794 SP – SÃO PAULO, Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 24/10/2016, Data de Publicação: DJe-231 28/10/2016.
[2] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 235-236.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. Vol. 1. 19. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 202.
[4] ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 388.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!