Opinião

Entre violências invisíveis e preconceitos lombrosianos

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10 de fevereiro de 2019, 5h28

Era verão. Eu tinha acabado de iniciar o estágio na Defensoria Pública e minha experiência com o Direito se limitava àquilo que lia nos livros e nos códigos. Sempre tive predileção pelo Direito Penal, mas, no estágio, comecei a atuar na área de família. Mesmo assim, não sem alguma insistência minha, a defensora pública responsável pela execução penal aceitou me levar para entrevistar alguns presos que haviam lhe escrito cartas e/ou que as famílias haviam comparecido na unidade para atendimento. Pela primeira vez eu iria conhecer o Direito Penal real. Só não imaginava que essa tal de realidade fosse me confrontar tão profundamente.

Os prédios construídos pela Secretaria de Administração Penitenciária quase sempre seguem a mesma planta. Após passar pela muralha externa, vi duas unidades compactas com capacidade para 768 pessoas cada uma, mas que, como já sabia, abrigavam muito mais do que isso.

Portão, grade, tranca. Na cadeia nenhuma porta se abre sem que a anterior tenha sido devidamente fechada. Dentro da unidade os protocolos são rigorosamente cumpridos. Identificação, matrículas dos presos e, em seguida, detector de metais. Liberados. Portão, grade, tranca.

Existem pelo menos quatro níveis de barreiras até que se possa ter acesso ao raio e/ou parlatório. Tudo com espessas camadas de concreto e aço. Tudo protegido por diversas travas, trincos e cadeados. Tudo extremamente vigiado por câmeras e agentes armados.

Do lado de dentro da prisão, um dos cheiros mais característicos que já senti. Forte. Intenso. Nauseante. Uma mistura de suor, fumaça de cigarro, amônia, mofo. Não dá para explicar. É algo único que fica guardado para sempre na memória de quem já sentiu — ainda que por uma única vez.

No dia da nossa visita, cheguei mais cedo no estágio e fui ler as cartas recebidas. Os presos reclamavam direitos típicos da execução penal. Consultei o andamento de cada um dos processos e anotei nome, pena, data para progressão de regime e livramento condicional de todos aqueles que seriam atendidos mais tarde. Foi nesse momento que me dei conta de algo em comum entre os casos. Todos haviam sido condenados por crimes contra a dignidade sexual. Em bom português, eram estupradores; ou “Jack”, na gíria da prisão.

Aquela era uma penitenciária considerada como “segura”. É nesse tipo de presídio que ficam pessoas juradas de morte, integrantes de outras facções criminosas que não o PCC (sim, existem outras), ou condenados por crimes sexuais. É o lugar para os excluídos dentre os excluídos.

Durante o atendimento apenas observei como minha chefe conduzia os trabalhos. A maioria dos presos questionava por que não progrediam de regime muito embora tivessem conquistado o lapso e possuíssem bom comportamento carcerário — únicos requisitos legais. A explicação era bastante simples. É que a juíza com competência para aquela unidade prisional exigia a realização de exame criminológico em simplesmente todos os processos sob o “fundamento” de que eram condenados por crime hediondo — ou “artigo”, como dizem os presos em referência ao artigo 213 do Código Penal. Isso fazia com que as progressões ocorressem com considerável atraso.

Por falta de profissionais, o exame criminológico, que resumidamente é uma entrevista com assistente social e psicólogo, pode demorar meses, já que não há profissionais suficientes na rede. A bem da verdade, esse é só mais um expediente burocrático utilizado para atrasar a liberdade daqueles que são considerados indesejados entre indesejáveis.

Mas, naquela tarde, algo especial me chamou a atenção. De camiseta branca e calça bege, sempre de cabeça baixa, os presos apresentavam olhar vazio, fala desconexa, ansiedade, sudorese excessiva e quase não demonstravam emoções. Pareciam corpos sem alma que perambulavam até o parlatório num silêncio sepulcral.

Não tive dúvidas. Prenhe de todos os meus preconceitos decorrentes do senso comum, julguei novamente aqueles homens e sentenciei: eram estupradores e por isso mesmo deviam ter algum tipo de distúrbio patológico que os diferenciavam dos assim considerados “normais”.

Saí de lá impactado pelo que vi e, principalmente, pelo o que senti com relação àqueles homens. Somente alguns dias depois eu entenderia a real situação. Não me lembro se alguém me contou ou se descobri por meio de alguma matéria sensacionalista publicada no jornal local. O fato é que dois meses antes da nossa visita, dentro daquela mesma penitenciária, havia ocorrido uma sangrenta chacina.

Dois homens vieram transferidos de outro presídio. Esses dois homens, no entanto, não eram condenados por crimes sexuais, mas, sim, por diversos outros delitos. Quando eles chegaram ali, perceberam que era uma penitenciária de “Jacks” e, por esse motivo, teriam se recusado a ingressar no presídio.

A ética do crime não permite a convivência pacífica com estupradores. Das duas uma: ou você é estuprador e convive com estupradores, ou você não é estuprador e faz justiça com as próprias mãos. Se não tomassem uma atitude, os novatos exporiam a própria vida à perigo quando saíssem dali, pois nunca mais poderiam ingressar no convívio comum de outros presídios. Eles perderiam o “proceder”, como costumam se referir à sua trajetória no crime. Portanto, os dois transferidos estavam numa encruzilhada. E a administração penitenciária, mesmo sabendo desse possível conflito, admitiu a inclusão deles naquela cadeia. Era só uma questão de tempo e oportunidade.

Como esperado. A dupla se armou com lâminas de tesoura amarradas por trapos de camisetas em cabos de vassoura, além de barras de ferro retiradas das próprias instalações. Durante o banho de sol, os recém-chegados renderam agentes penitenciários, determinaram a soltura de outros cinco internos e juntos não só mataram como decapitaram outros cinco detentos. Foi o que deu tempo até a tropa de choque chegar ao local e conter os amotinados.

O pátio se converteu numa piscina de sangue. Os rebelados ostentavam as cabeças em frentes as celas e ameaçavam os outros presos. O caos era geral. O pânico tomou conta do lugar. Talvez só mesmo Stephen King, o mestre do terror, pudesse narrar uma cena tão macabra.

Aqueles que não foram vítimas da violência real foram vítimas de uma violência invisível e latente. O medo se alastrou por toda a unidade prisional. Ninguém dormiu nas primeiras noites. De um lado, a lembrança do horror testemunhado. De outro, o temor de acordar com uma lâmina na garganta.

Os presos achavam que tudo havia acontecido de caso pensado. Que a administração penitenciária estava envolvida. Que não estavam mais seguros no “seguro”. Que cedo ou tarde os seus algozes voltariam e sabe se lá mais quantas cabeças seriam cortadas.

Por esses motivos, muitos ali desenvolveram síndrome do pânico, depressão e estresse pós-traumático. Sem acompanhamento psicológico, estavam internamente quebrados. Psicologicamente destruídos. Mentalmente estraçalhados. Esse era o real motivo pelo qual eu os estranhei durante o atendimento no parlatório. Esse era o real motivo pelo qual aparentavam algum tipo de patologia. Talvez estivessem mesmo doentes, mas não por isso teriam cometido os crimes pelos quais foram condenados.

Sem sequer imaginar por tudo que aquelas pessoas passaram, quando as conheci eu as pré-julguei como psicopatas, perturbados, degenerados. Tudo com base no artigo do Código Penal que li na capa dos autos — exatamente como muitos fazem todos os dias nos fóruns, nas ruas e nas redes.

Eu caí no mesmo erro de Lombroso ao procurar explicações para as causas do crime dentro do sistema prisional, desconsiderando que aquelas pessoas foram selecionadas pelos próprios órgãos de persecução por uma série de diferentes fatores.

A bem da verdade, meu “diagnóstico” era completamente infundado e apenas refletia aquilo que estava guardado em mim, isto é, o meu próprio preconceito com relação às pessoas que foram condenadas por certo tipo de delito.

Em Além do bem e do mal, Nietzsche afirma que “quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” (af. 146).

Depois que descobri por tudo que aquelas pessoas passaram, jurei a mim mesmo que me esforçaria todos os dias para nunca mais rotular alguém. A tarefa é difícil e exige permanente vigilância. Ou vai me dizer que você não encontrou no fundo do seu abismo o rótulo de psicopata para os autores das decapitações que narrei? Basta olhar longamente…

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