Corporações no comando

Vazamento de dados do ministro Gilmar Mendes preocupa comunidade jurídica

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8 de fevereiro de 2019, 15h25

A divulgação de informações sigilosas do ministro Gilmar Mendes, acendeu um sinal vermelho na comunidade jurídica. Nesta sexta-feira (8/2),  o site da revista Veja divulgou cópia de um relatório interno da Receita sobre a evolução patrimonial do ministro e de sua mulher, a advogada Guiomar Feitosa com conclusões que não correspondem aos dados apresentados. Para advogados, é mais um episódio de corporações do Estado extrapolando suas atribuições em benefício de agenda nada institucional. O relatório foi assinado pelo auditor Luciano Francisco Castro.

Nelson Jr./SCO/STF
Vazamento de dados do ministro Gilmar expõe agenda oculta de alguns setores do Estado, afirmam advogados
Nelson Jr./SCO/STF

Gilmar considera a divulgação do documento abuso de autoridade e parte de uma estratégia deliberada para atacar sua reputação. O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, enviou ofícios à Procuradoria-Geral da República, ao Ministério da Economia e à Receita para apurar os fatos. 

Em novembro de 2018, a Receita Federal anunciou a criação de um grupo especial de auditores com foco em investigar cerca de 800 agentes públicos do Judiciário, Legislativo e Executivo. O grupo passou a ser chamado internamente de "tropa de elite". 

Para o jurista Lenio Streck, ex-procurador de justiça, trata-se de uma campanha de intimidação contra Gilmar Mendes por conta da atuação do ministro. “O ministro Gilmar denunciou , quando presidente do STF, o perigo do estado policial. E a situação foi piorando nesses últimos anos. Trata-se visivelmente de tentativa de intimidação. É um recado também para toda a cúpula do Judiciário. Há que ficar atento. Não há mais privacidade. Os dados privados são usados como arma. Uma espécie de lawfare, o uso político da legislação. O direito , em vez de proteger, virou arma". 

O advogado criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Fábio Tofic Simantob, alerta para o perigo que vem quando o Estado passa a olhar de forma especial para qualquer cidadão que seja. "Os órgãos com poder de investigação estatal devem investigar fatos e não pessoas. Quando eles se põem a investigar pessoas e não fatos, deixam de ser órgão de investigação e passam a ser órgão de perseguição"

“O ministro é vitima de uma evidente persecução politica com a finalidade de retirá-lo do STF por conta de sua postura em favor da Constituição", afirma o advogado Pedro Serrano

Para a desembargadora do TJ-SP, Kenarik Boujikian, por trás da conduta está uma "clara violação da estrutura do Estado Democrático de Direito,  que nos dá um arcabouço constitucional de proteção aos direitos fundamentais e estabelece, rigidamente, os órgãos que detém o poder de polícia". A desembargadora entende que "a usurpação de atribuições  dentro da estrutura estatal, é gravíssimo e simbólico, quando a vítima é membro da mais alta Corte do país, que tem o poder-dever de ser garante dos direitos". O descontrole, conclui ela "exige  resposta  imediata do governo".

Para o advogado e ex-conselheiro do CNJ Marcelo Nobre, "a democracia brasileira está em xeque". "Aceitar que servidores públicos que juraram cumprir a constituição e as leis do País violem o estado democrático de direito é admitir que eles estão acima da lei e ninguém está acima da lei. É inaceitável uma perseguição com abuso de autoridade, contra quem quer que seja. Trata-se de uma absurda violência contra a democracia que deve ser repelida com força e punição. Qualquer pessoa pode ser investigada, desde que seja respeitado o que foi pactuado pela sociedade  na constituição cidadã. E neste caso do ministro Gilmar Mendes resta claro que se trata de uma perseguição inaceitável com requintes de crueldade com o único objetivo de desmoralizar o Supremo Tribunal Federal."

O advogado Walfrido Warde vê uma campanha de difamação no episódio. "A instrumentalização dos mecanismos de controle do Estado é consequência da sua captura por grupos que agem por interesse próprio, o mais das vezes em afronta à lei. O episódio que envolveu a quebra do sigilo do ministro Gilmar Mendes parece ser mais um desses casos. A qual investigação serve? Parece expediente exploratório, voltado à especulação e à maledicência", afirma. 

O presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Cristiano Maronna, considera o "uso da máquina pública para perseguir inimigos é inaceitável em uma democracia". 

O criminalista Leonardo Isaac Yarochewsky é enfático ao condenar a atuação da Receita: "A esdrúxula 'investigação' de auditores fiscais da envolvendo o ministro Gilmar Mendes do STF revela, antes de tudo, arbitrariedade e abuso de poder, sabe-se lá com qual finalidade. Qualquer que seja a pessoa 'investigada' é necessário que seja dentro do devido processo legal e sob o manto das garantias do Estado de Direito". 

"O vazamento de informações sigilosas de um Ministro que tem adotado posições liberais e progressistas e a investigação criminal pela via oblíqua da Receita Federal, em clara inobservância aos ditames legais e constitucionais, evidenciam o grave estado de insegurança jurídica que vivemos hoje no país", afirma a criminalista Marcela Ortiz.

O ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo aponta o fato de o alvo do arbítrio ser um ministro do Supremo ser especialmente grave. "No Estado de Direito, o exercício do poder é limitado. Investigar sem indícios, com fim persecutório, é inaceitável. Se o perseguido for membro do Judiciário, o fato assume ainda uma dimensão institucional intimidatória e alarmante".

A opinião é compartilhada pelo criminalista Alberto Zacharias Toron. "É inaceitável a investigação de um cidadão, seja ele quem for, de forma arbitrária. Agora, tratando-se de um juiz da suprema corte a situação é ainda pior, pois a opressão atinge a todos nós".

O criminalista Igor Tamasauskas diz que é necessário ver como está ocorrendo a atuação dos órgãos públicos para ver se não estão desbordando dos limites constitucionais. "Quem faz investigação criminal é a polícia, com controle judicial, inclusive para poder acessar dados fiscais sigilosos. Concentrar muitos poderes em um só órgão — que já é bastante encorpado — é um risco para o Estado Democrático de Direito".

O defensor público do Rio de Janeiro Pedro Carriello, que atua no Supremo e no STJ, teme por seus clientes. "Minha preocupação, na condição de defensor dos mais vulneráveis, é vislumbrar que, se uma situação dessas bate à porta do STF, acontece com um ministro do Supremo, o que vai acontecer com pessoas simples, que têm pequenas movimentações? Meu medo é saber até que ponto essa sanha punitivista vai, como sempre, atingir a camada mais vulnerável da sociedade", afirma.

"Há que se ter cautela. Se perdermos a segurança jurídica perderemos, ao final, a própria democracia”, completa o criminalista Roberto Podval.

Para o criminalista André Callegari, a investigação pode ter sido motivada pela atuação de Gilmar. "Acredito que essa investigação se deve ao fato de o ministro lutar incansavelmente pela preservação dos direitos e garantias fundamentais, o que muitas vezes é visto com olhos populistas por aqueles que querem retroceder com o sistema de garantias constitucionais".

O criminalista Davi Tangerino ressalta a usurpação de competências por parte da Receita. "Ninguém está acima da lei, nem os investigados nem os investigadores. A atribuição de apuração da Receita Federal está circunscrita aos fatos geradores. Se nesse procedimento o auditor fiscal encontrar algo que pareça um fato delitivo, ele tem que comunicar ao Ministério Público. Se a Receita está investigando tráfico de influência [como foi noticiado pela Veja], o que escapa completamente da natureza dela, evidente que há uma usurpação de competência do Ministério Público Federal". 

O advogado Antonio Carlos Kakay afirma que, ao que tudo indica, a investigação é uma tentativa de intimidação pela postura independente e garantista do Ministro. "Não é somente uma agressão ao ministro mas a todos aqueles que tiverem a coragem de se opor aos excessos . Nós advogados temos o dever  da resistência e de alertar que o uso da força do Estado para perseguir e intimidar é inadmissível em um estado que se pretenda democrático".

O advogado Marco Aurélio de Carvalho vê no ato da Receita Federal uma tentativa de intimidar o ministro. "Em especial neste momento em que ele assume protagonismo na defesa do Estado de Direito e da Democracia. O Ministro não está acima da lei, e muito menos abaixo dela. Não há nenhuma justificativa jurídica ou fática para a suposta investigação anunciada. Há flagrante abuso de poder, que merece ser investigado com urgência e profundidade. A advocacia não pode se calar frente a ilações tão claramente irresponsáveis. Apurações são sempre bem-vindas, reitero, mas desde que fática e juridicamente justificadas".

Para o advogado Marcus Vinícius Furtado Coêlho, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, houve ainda desrespeitos às prerrogativas da advogada Guiomar Feitosa, mulher do ministro Gilmar. "O exercício profissional do advogado é inviolável, por força de dispositivos constitucional e legal. Quando fui presidente da OAB ingressei com medida no STF para proteger o sigilo profissional da advogada Beatriz Catta Preta. Obtivemos decisão do Supremo, transitada em Julgado, no sentido de que o aparato estatal não pode investigar honorários recebidos por advogado no exercício da profissão. A mesma regra se aplica a qualquer advogado brasileiro, em todos os rincões do Brasil. Se fazem essa quebra de sigilo, através de um criminoso vazamento, dos dados fiscais de uma advogada, imagina o que podem fazer com os direitos dos cidadãos brasileiros. Utilizando as palavras de Rui Barbosa, a vulneração do direito constitucional de qualquer cidadão põe em risco toda a ordem constitucional", afirma.

Para o especialista Luiz Gustavo Bichara, tudo indica que se está diante de uma perseguição. Segundo ele, a questão é complicada e está acontecendo não só com o ministro, mas com vários contribuintes.

"A pretexto de tributar suposto pagamento sem causa, com base no artigo 61 da Lei 8981/95, artigo que entrou na moda após a operação "lava jato", a Receita faz ilações de caráter penal, mas o verdadeiro problema é que geralmente essas ilações são completamente desprovidas de conjunto probatório", explica. 

De acordo com Bichara, além disso, "se houve pagamento sem causa é evidente que ele teria se dado nas pessoas jurídicas que distribuíram os dividendos, de forma que a fiscalização das pessoas físicas não se justifica." 

Impacto
A defensora pública titular de Duque de Caxias, Renata Tavares, afirma que a investigação da Receita tem impacto muito forte na defensoria e na vida das pessoas mais carentes. "Aqui no Rio, uma base de 80% dos processos são criminais. Toda vez que a gente fala em investigação, a gente tem que ver o impacto que isso vai ter, também, nesta máquina mortífera que o estado montou, que é o sistema penitenciário", avalia. 

Para Renata, o que preocupa é a prática que já é reprovável de criações  de grupos especiais para investigar determinadas pessoas. "Nessas, a criação desses grupos não importa o que a pessoa tenha feito e, sim, o que ela é. E isso é um impacto profundo na quantidade de pessoas que vão presas. O resultado disso, é um processo penal fortista, em que a pessoa já está praticamente condenada. São investigações mequetrefes feitas de qualquer maneira", explica. 

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