Opinião

Estado precisa garantir direitos individuais do preso (e o caso do ex-presidente Lula)

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7 de fevereiro de 2019, 11h42

Há nítida tendência, nos dias atuais, de se abandonar o chamado “garantismo penal” em nome do combate à corrupção. Tomemos, como exemplo, o recente caso envolvendo o ex-presidente Lula.

Após o episódio de instabilidade jurisdicional ocorrido em julho do ano passado, quando decisões conflitantes determinaram, em intervalo de poucas horas, revogação e manutenção da prisão de Lula, uma sequência de determinações judiciais, na semana passada, ocupou as manchetes dos principais meios de comunicação.

Considerando a morte de seu irmão, em 29 de janeiro, o ex-presidente pleiteou que pudesse participar da cerimônia fúnebre, nos termos do artigo 120 da Lei de Execução Penal.

A juíza substituta da 12ª Vara Federal de Curitiba, após solicitar manifestação da autoridade policial sobre a plausibilidade do pedido, acolheu os argumentos do parecer do superintendente regional da Polícia Federal do Paraná para indeferir o requerimento formulado.

Nos termos do parecer, a logística de transporte do peticionário, de sua cela até o velório, não teria como ser realizada em função da indisponibilidade do transporte aéreo em tempo hábil. Além disso, de acordo com a análise de risco, poderia ocorrer fuga ou resgate do preso, atentados contra a vida do ex-presidente ou contra agentes públicos, comprometimento da ordem pública e protestos de simpatizantes e apoiadores, bem como de grupos contrários.

Conforme dispõe o parecer, “sendo deferido o pedido feito pela defesa, deve-se considerar: a) a alta capacidade de mobilização dos apoiadores e grupos de pressão contrários ao ex-presidente; b) a dinâmica relacionada ao deslocamento do custodiado desde a SR/PR até o município de São Bernardo do Campo, além do trajeto ao local do velório e sepultamento, e o seu regresso a Curitiba”.

Pondera, ainda, que “a tendência é que a militância petista compareça em grande número ao cemitério para tentar se aproximar a Lula, que, mesmo preso, continua exercendo forte liderança dentro do partido e entre simpatizantes”.

A juíza da 12ª Vara de Curitiba indeferiu o pedido de saída formulado. Entendeu que o artigo 120, inciso I e parágrafo único, da Lei de Execução Penal confere poder discricionário à autoridade competente “em vista da necessidade de resguardo e promoção dos diversos interesses legitimamente tutelados, deferir ou negar a autorização”.

Novamente, menciona as possíveis manifestações em razão da saída do ex-presidente, acolhendo, desta forma, o parecer da autoridade policial.

Afirmou, ainda, que “a conduta do apenado e de seus simpatizantes transcendem ao exercício do direito de expressão, trazendo elevado grau de insegurança quanto ao deslocamento, fazendo com que se conclua que a saída temporária pretendida não se dará de forma tranquila”.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região manteve a decisão, enfatizando que, “como qualquer outro interesse, a saída para ida a velório e enterro de pessoa da família tem de passar por juízos de razoabilidade e de proporcionalidade, em que analisada a pretensão do apenado no caso concreto à vista de sua viabilidade operacional e econômica e dos demais valores tutelados pelo ordenamento”.

Apenas no Supremo Tribunal Federal foi concedida a permissão para saída do ex-presidente, por meio de Habeas Corpus concedido ex officio pelo ministro Dias Toffoli.

Em sua decisão, o ministro entendeu que as razões expostas pela Polícia Federal “não devem obstar o cumprimento de um direito assegurado àqueles que estão submetidos a regime de cumprimento de pena, ainda que de forma parcial” e que “prestar a assistência ao preso é um dever indeclinável do Estado (art. 10, da Lei nº 7.210/84), sendo certo, ademais, que a República Brasileira tem como um de seus pilares fundamentais a dignidade da pessoa humana”.

Em razão da morosidade, nas instâncias inferiores, na análise do pleito, porém, o sepultamento já havia ocorrido.

As decisões que negaram a permissão, data venia, violam a literalidade do artigo 120 da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), conforme será exposto a seguir.

O artigo 120 da referida norma, que trata da permissão de saída, estabelece que “os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semi-aberto e os presos provisórios poderão obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer um dos seguintes fatos: I – falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão”.

Permite-se que o preso, por ato do diretor do estabelecimento onde se encontra, participe da cerimônia fúnebre de familiares, atendendo a razões de natureza humanitária. Entendemos que, verificada a ocorrência de qualquer dos requisitos listados, a permissão de saída é de rigor.

O verbo “poderá” não se refere à suposta discricionariedade do diretor, mas à opção de requisição pelo preso, que poderá, ou não, solicitar a autorização.

Após o requerimento, no entanto, a concessão depende apenas do preenchimento de algum dos requisitos objetivos elencados nos incisos I e II. Seria incoerente supor que, muito embora tenha mencionado, taxativamente, as hipóteses em que o preso fará jus à permissão de saída, o diretor pudesse, a seu critério, concedê-la ou não.

Mencione-se o entendimento de Luís Carlos Valois, segundo o qual os direitos inerentes à execução penal “são ideologicamente tidos como generosamente permitidos por juízes e demais agentes do sistema penitenciário, um benefício concedido, quando na verdade estão estabelecidos em lei como direitos e assim deveriam poder ser exigidos dentro das regras e parâmetros legais”[1].

A relação dos direitos do preso com o preceito da dignidade humana, aliás, impede que, por interpretação semântico-gramatical, sua aplicação seja restringida. Ao contrário: deve-se exercer a hermenêutica, neste caso, de modo a permitir a mais ampla fruição do direito previsto.

Outro argumento utilizado para negar a permissão de saída se vincula à “reserva do possível”, atribuindo o desprezo ao direito do apenado à falta de logística para garanti-lo.

De início, cumpre ressaltar a posição de garante do Estado em relação aos presos no sentido de que, ao privar alguém de sua liberdade — pela imposição de pena —, o Estado assume a obrigação de que os direitos relacionados ao cárcere sejam cumpridos.

Essa relação especial de sujeição entre o Estado e o detento importa, por um lado, em múltiplas restrições aos direitos do preso e, por outro, torna o poder público responsável por assegurar os direitos que não foram limitados e daqueles concedidos ao apenado.

Neste sentido, tem-se que a cláusula da “reserva do possível” — ressalvada a ocorrência de motivo extraordinário, objetivamente aferível — não pode ser invocada pelo Estado com finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais[2], como é a garantia da dignidade do detento, que embasa o artigo 120 da Lei de Execução Penal.

A complexidade da operação que seria necessária para o transporte do ex-presidente, portanto, não exime o poder público do ônus a ele atribuído de garantir os direitos do preso, por se tratar de dificuldades contornáveis.

Vale registrar caso extremo, citado por Nucci[3], em que a mulher de um preso considerado perigoso, detido na Penitenciária José Parada Neto, morreu.

Sob a justificativa de que poderia ocorrer eventual resgate, lhe foi negada a permissão para saída. O caixão, no entanto, foi levado para ser velado na prisão, com autorização da Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários da Capital e Grande São Paulo, para que o detento pudesse prestar suas últimas homenagens, preservando o teor humanitário da norma.

Mencione-se, ainda, que, no caso do pedido formulado pelo ex-presidente, houve o oferecimento, por parte de pessoas a ele ligadas, do pagamento dos custos do transporte aéreo necessário ao seu comparecimento no velório, o que diminuiria os gastos do poder público.

Evidentemente, no entanto, que fatores excepcionais, de natureza material — como a necessidade de percorrer distâncias extremas em curto intervalo de tempo, por exemplo — podem, em tese, impossibilitar o cumprimento da referida norma. No caso do ex-presidente, porém, o pedido foi feito assim que se teve notícia da morte, ou seja, mais de 24 horas antes do sepultamento.

A possibilidade de fuga ou resgate, atentados e “comprometimento da ordem pública”, também elencados como razões para o indeferimento da permissão de saída, constituem argumentação genérica, sem apresentação de fatos concretos que a corrobore.

Ainda que se tenha em conta a possibilidade de tumultos, dever-se-ia garantir o direito. Boa solução deu ao caso o presidente do STF, ministro Dias Tofolli. Atento a tal possibilidade, determinou que Lula poderia velar o irmão em uma unidade militar.

O fato, inegável, é que vigora tendência a um maior punitivismo, especialmente em relação à classe política. Atribui-se ao intenso castigo — encarceramento — solução eficaz ao combate à corrupção.

Considerada essa concepção, institucionaliza-se demanda da sociedade, que atribui, aos políticos, culpa pelas mazelas da governança em geral. Isso ocorre porque a população escolhe os “inimigos do Estado”, personalizando, nesses, os males da administração pública.

A ânsia social por punição é ainda mais nutrida pela divulgação espetaculosa de crimes cometidos por agentes políticos, fazendo com que as atenções se voltem para esse grupo. Mais do que inimigos da população, a classe política se torna inimiga do Direito Penal.

Oportuno mencionar, contudo, o entendimento de Aury Lopes Jr., para quem o fundamento de legitimidade da jurisdição penal reside na sua função de garantidor de direitos do réu, inclusive após sua condenação, sendo este o papel primordial do juiz no processo penal[4].

Quando se nega direito legítimo do preso — como a saída para participação na cerimônia fúnebre de familiares —, portanto, há enfraquecimento de papel fundamental do Direito Penal, qual seja, de garantir os direitos do réu e do condenado.

O Estado deve sempre buscar adotar todas as providências que estiverem ao seu alcance para concretizar o que preveem as normas que garantem direitos individuais, principalmente os do preso, considerando a relação especial de sujeição com ele mantida.


[1] VALOIS, Luís Carlos. VALOIS, Luís Carlos. Ressocialização versus legalidade: em prol de uma possível comunicação na execução penal. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. ANO 21 – Nº 250 – SETEMBRO/2013 – ISSN 1676-3661, pg. 1.
[2] RE 95.6475, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 12/05/2016, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16/05/2016 PUBLIC 17/05/2016.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de execução penal / Guilherme de Souza Nucci. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. 167 e 168.
[4] Como consequência, o fundamento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário está no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituição. Nesse contexto, a função do juiz é atuar como garantidor dos direitos do acusado no processo penal. Quando se lida com o processo penal, deve-se ter bem claro que, aqui, forma é garantia. Por se tratar de um ritual de exercício de poder e limitação da liberdade individual, a estrita observância das regras do jogo (devido processo penal) é o fator legitimante da atuação estatal”. Lopes Jr., Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Jr. – 13. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016. 1. Processo penal – Brasil I. Título.

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