Crime e Castigo

Plea bargain: acertos e equívocos da barganha processual penal no Brasil

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

3 de fevereiro de 2019, 7h06

Spacca
O acordo entre acusação e defesa, sem a participação do juiz, com a prévia confissão do acusado e a fixação da pena acordada antes da existência de processo judicial, pode ser uma excelente inovação no nosso sistema jurídico!

Mas antes de aceitarmos a importação do plea bargain é preciso lembrar que não é a toda hora que um bom jazz pode substituir uma roda de samba e não é qualquer hot-dog que vale uma boa feijoada! Qualquer mudança no sistema processual penal brasileiro merece atenta observação. O nosso sistema não funciona e reformulá-lo é necessário, mas também é possível piorá-lo.

Mas quais os objetivos dessa proposta? A ideia é encarcerar mais pessoas? O que se quer é prender mais? A intenção é acelerar processos? O que se deseja é mais gente condenada rapidamente? Qual o objetivo?

Imagino que a ideia seja diminuir a morosidade da justiça criminal e racionalizar a atuação do juiz, mantendo o foco do magistrado onde não houver confissão e haja dúvida importante para ser sanada, com a produção de provas, ou também controvérsia relevante a ser resolvida com o embate argumentativo entre quem acusa e quem defende.

Sendo esse o objetivo – acelerar a justiça criminal – é preciso compor o instituto de maneira a que atenda ao objetivo.

O acordo prévio é salutar na medida em que, ao aceitar a confissão, o sistema toma por desnecessária a produção de provas, acelerando a imposição da pena. É razoável pensar assim, pois qual a razão de ser necessário provar o fato se o acusado livremente já confessou?

Porém, para chegar a este resultado algumas questões se impõem e precisam ser respondidas previamente.

De largada é preciso lembrar que um dos graves problemas do instituto nos EUA foi a proliferação de confissões falsas ou forçadas. De certa maneira o instituto serviu para diminuir a atuação de servidores do sistema de justiça, corrompendo a liberdade de negociar do acusado.

É preciso perceber que só faz sentido antecipar a condenação mediante acordo se o acusado possuir um ganho razoável, na medida em que ele provavelmente não aceitará a barganha se ao menos não se livrar de um risco de resultado negativo provável! O inverso somente acontecerá se a confissão e a adesão à barganha não forem absolutamente livres.

O ganho proposto é sempre o de condenar o acusado previamente por uma pena menor sem que ele corra o risco de ser condenado por uma pena maior por fatos mais graves! Antecipa-se o resultado do processo criminal mediante aceitação do acusado de uma consequência menos gravosa do que aquela que ele poderia suportar acaso perdesse a controvérsia e o embate referidos.

Por outro lado, será preciso verificar qual a razão da importação do instituto. Não faz sentido dizer que o plea bargain tem por objetivo reduzir a impunidade. Esse discurso agregado não tem nexo, na medida em que não será esse o proveito. Na verdade, em alguns casos, ele aumenta a impunidade para parte dos crimes e garante a certeza de punição por crimes menores. Tomemos o exemplo de um réu acusado de cinco crimes de estelionato. Ao confessar dois deles e aceitar pena media em ambos ele se livra da responsabilidade por mais três ações criminosas praticadas. Há uma troca entre a punibilidade potencial maior pela certeza da punição menor.

Já havendo – no modelo ocidental – o peso indefectível das confissões como elemento de prova da autoria é quase certa a condenação pelo crime mais grave no demorado processo. Desta maneira, o instituto apenas agiliza a condenação por pequenos crimes – ou em penas menores – e deixa impunes os acusados por crimes de difícil comprovação que estariam abençoados pelo acordo entre acusado e Estado. Visto desta maneira, o plea bargain não reduz a impunidade, mas a produz e a oficializa, de certa maneira, contentando-se com punições menores do que a devida.

Analisado com atenção é possível perceber que o preço da velocidade e da certeza da condenação é a redução do espectro de possibilidades de condenação. Portanto, uma impunidade parcial e uma certeza de punibilidade mais reduzida vêm em troca do risco e da incerteza de uma punição completa.

Compreendendo o instituto desta maneira – e com este objetivo – ele é válido, mas não tem por resultado a redução da impunidade, mas sim a redução do risco da impunidade total e da absolvição, e a redução parcial da morosidade. O ganho é a velocidade no alcance do resultado final, não a redução da impunidade.

Outra questão que surge, diz com a abrangência do instituto. Em sendo este o objetivo da reforma – celeridade e foco do sistema de Justiça – não há sentido na vedação da inclusão no plea bargain de crimes de tráfico de entorpecentes e crimes contra o patrimônio.

Se a proposta não incluir tráfico de entorpecentes – nem mesmo o pequeno tráfico ou o compartilhamento de entorpecentes para uso – e também os crimes contra o patrimônio, cerca de 50% dos fatos que geram processos penais que tramitam morosamente no Judiciário estarão fora do alcance do instituto.

Logo, se considerarmos que a outra metade dos fatos não será, em grande medida, objeto da barganha e de acordo, ou porque nada se poderá oferecer ao réu ou porque acusação não terá interesse na impunidade parcial, chegar-se-á à colusão de que corremos o risco de importar o instituto americano não para propiciar celeridade jurisdicional ou redução da impunidade, mas para garantir o encarceramento por fatos que não gerariam processo criminal e – acaso existentes – caminhariam para a absolvição.

Dito de outra maneira, o que não tramita como processo – pois é objeto de arquivamento pelo Ministério Público – ou o que tramita e é conduzido à absolvição por falta de provas, agora geraria a consequência de uma pena privativa de liberdade. Haveria mais encarceramento, sem redução da impunidade, com aumento de gastos e sem redução da criminalidade.

Não haveria um ganho substancial com a medida!

A aplicação da barganha processual aos fatos que não estão abrangidos – em larga medida – pela rede de punibilidade só se justifica se o objetivo velado do instituto não for a redução da morosidade ou o aumento de foco do juiz, mas sim o desejo de massificação do encarceramento que ao revés de ser uma das coisas admiráveis do mundo norte americano é daquilo que mais a sociedade yankee deve se envergonhar!

Usar o acordo prévio ou barganha para encarcerar implicará, numa sociedade desigual como a nossa, em aumento da criminalização da miséria e significação prisional da exclusão econômica e social. Nada indica que reduzirá a violência, e o estudo comparativo indica que tende a aumentá-la.

Uma terceira questão que surge é a da paridade de armas. Lembrando como já dito que a nossa sociedade extremamente desigual, como pensar num contrato onde por um lado há um promotor de justiça ou procurador da república imensamente qualificado e pelo outro um acusado hipossuficiente?

Uma rápida pesquisa nos EUA permite encontrar vários estudos indicando que o instituto também por isso foi responsável por barganhas açodadas e acordos prejudiciais ao acusado e com cláusulas draconianas, o que permitiu futuras anulações dadas as suas inconsistências. Assim, a participação de advogados e a gravação dos acordos por meio áudio visual é fundamental.

Fixada a premissa de que o objetivo é a redução da morosidade e a reserva de foco da magistratura, essas questões propostas devem conduzir o raciocínio para a admissão do instituto da barganha processual com amplitude, trava de segurança e objeto que realmente impliquem a busca do objetivo almejado.

Mais ainda, parece evidente que o processo de barganha deve ser admitido em todos os procedimentos penais acerca de todo e qualquer fato criminoso, não se excluindo de seu objeto nenhuma modalidade de crime.

Por outro lado, para que a efetividade do instituto seja concreta, e não mera política de encarceramento em massa, parece razoável que além de atingir quaisquer delitos seja permitida apenas com a fixação de penas alternativas e prisão domiciliar, pelo prazo de até 8 (oito) anos, o que significa a sua aceitação a todos os delitos puníveis – aprioristicamente – através de encarceramento em regime aberto e semi-aberto, que seriam substituídos por prisão domiciliar, recolhimento em casa de albergado, serviços à comunidade, limitações de fim de semana, proibições de exercício de atividades e funções, tudo sem prejuízo do amplo e total ressarcimento, pagamento de danos cíveis e pena de multa.

O acesso à carceragem fechada, que no modelo brasileiro se dá com pena superior a oito anos, continuaria a ser fruto de uma decisão judicial condenatória confirmada em segunda instância.

A inovação então se daria com a possibilidade de fixação prévia de toda e qualquer sanção inferior a oito anos antes mesmo do próprio processo, mediante um acordo entre acusação e defesa, e sua substituição por medidas alternativas fora do cárcere.

O instituto deve ser observado segundo o seu objetivo maior, e pensado a partir de características próprias do modelo judicial brasileiro.

Para que a barganha processual seja eficaz no sistema brasileiro, parece-me que todos os réus devam ser acompanhados de advogados, ou de defensores públicos; a barganha deverá ser acessível a todos e em razão do cometimento de quaisquer crimes; o plea bargain somente deve impor penas alternativas.

Somente desta maneira poderemos fazer uma reforma relevante com efeitos duradouros.

Autores

  • é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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