Ordem e diversidade

É a segurança pública que garante as políticas de proteção da cidadania

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3 de fevereiro de 2019, 7h00

Spacca
A Constituição Federal garante diversos direitos fundamentais a todos os brasileiros. Mas nenhum deles pode ser plenamente exercido se outro não for cumprido: o direito à segurança pública. É aí que está a intersecção entre o objetivo de "promover a cidadania" da Secretaria de Justiça de São Paulo e as ideias do novo governador, João Doria (PSDB).

Em entrevista exclusiva à ConJur, o secretário de Justiça de São Paulo, Paulo Dimas Mascaretti, conta que pretende trabalhar para promover o fim da violência de exclusão, aquela de fundo racista, religioso ou de preconceito contra homossexuais.

Peça chave de seus planos é a Fundação Casa. Paulo Dimas, que foi juiz por 36 anos e presidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo entre 2017 e 2018, acumulará a Secretaria com a presidência da Fundação Casa. Para ele, o modelo paulista de internação de jovens infratores é o ideal: pouca gente presa no mesmo estabelecimento, muitos funcionários e trabalho voltado à formação cidadã e profissional dos internos. O resultado é um índice de reincidência de 22% — contra a média de 70% do sistema carcerário, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça.

Até por isso ele não se mostra muito confortável com a moda de se defender a redução da maioridade penal. Mais adequado, diz ele, é o projeto que aumenta o tempo máximo de internação para adolescentes que cometam crimes graves ou violentos. "O que precisa é, evidentemente, criar uma estrutura de apoio àquele que sai da Fundação, para ter a possibilidade de, ao encontrar a família, ter outras oportunidades de estudo, de emprego e de qualificação", afirma.

Paulo Dimas é um desembargador conhecido e benquisto pelos colegas. Foi nomeado secretário justamente para garantir boas relações entre o Executivo e o Judiciário no estado. Juiz desde 1983, foi promovido a desembargador em 2005, por merecimento. Foi presidente da Apamagis, a entidade de classe da magistratura paulista, entre 2010 e 2011. Deixou a toga em dezembro de 2018 para assumir a Secretaria de Justiça.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais as suas metas de trabalho?
Paulo Dimas Mascaretti — Uma questão importante é viabilizar a interlocução direta do governador, e das demais secretarias, com Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública. Além disso, temos o trabalho de desenvolver programas de fomento à cidadania. Recentemente, tivemos aqui o fórum inter-religioso, mostrando que a intolerância religiosa é crime e tem que ser penalizada nos termos da lei. A secretaria tem que dar importância para esse trabalho, até porque as estatísticas mostram que, na verdade, mais do que a questão do preconceito racial e até que a do desrespeito à diversidade sexual, a intolerância religiosa assume importância muito grande nas violações de direitos. Vamos divulgar um trabalho estatístico sobre isso.

ConJur — O governador João Doria foi eleito com um discurso bastante punitivista de endurecimento das pautas policiais, defendendo até violência. Isso não entra em conflito com a sua pauta de defesa da cidadania e da diversidade?
Paulo Dimas — Não, porque um dos direitos do cidadão é o direito à segurança pública. É a segurança que permite que todas as ações voltadas à proteção da cidadania possam ser desenvolvidas regularmente. O trabalho da polícia contra a criminalidade não contrasta de forma alguma com as políticas que são voltadas ao exercício dos direitos à cidadania.

ConJur — A Secretaria se envolve com a política de segurança também?
Paulo Dimas — Não. O que temos aqui é o apoio às vítimas de crimes violentos. Existe o programa Pró Vita, que é um sistema de proteção à vítimas e testemunhas ameaçadas por terem que depor em desfavor do crime organizado, de prática de corrupção e de outros delitos graves. Temos também a proteção de réus delatores que podem ajudar a desvendar crimes que representam perigo à sociedade.

ConJur — Uma das grandes demandas da Defensoria Pública é a ampliação do acesso à Justiça pelos cidadãos comuns. O que falta?
Paulo Dimas — O Judiciário melhorou muito nos últimos anos. Eu, com 40 anos de carreira jurídica pública, tive a oportunidade de passar quatro anos no Ministério Público e 36 na magistratura. Hoje, temos inúmeros segmentos que apoiam essa aproximação do Judiciário com o cidadão. Foi desenvolvido o processo digital, implementamos o inquérito policial digital e também ampliamos os juizados especiais e os Centros de Conciliação e Mediação (Cejuscs), que atuam até mesmo na fase pré-processual.

ConJur — Alguma política para o Procon? O que temos visto nos últimos anos é o Procon com orçamento menor do que o necessário, o que o leva a ter essa atuação tímida.
Paulo Dimas — O Procon tem um trabalho de apoio, orientação e fiscalização. É uma instituição com autonomia e órgãos diretivos específicos, mas com vinculação à secretaria. Faremos um acompanhamento para que o Procon possa exercer e cumprir as suas atribuições e finalidades.

ConJur — Uma reclamação que escutamos frequentemente é que o tribunal manda casos para o Procon e eles caem naquela vala comum de “coisas para fazer depois”.
Paulo Dimas — Não tenho essa notícia. O que eu, como desembargador, vivi, era que as ações do Procon estavam corretas e observavam na penalização, principalmente em relação às grandes empresas, no que tange à quantificação da multa. O que mais precisa ser feito é dar visibilidade ao que o Procon faz. 

ConJur — Temos feito levantamentos mostrando que os mais demandados na Justiça em São Paulo são prestadores de serviços, como bancos, operadoras de telefonia etc., e são quase sempre ações reiteradas de cobranças indevidas ou inscrições indevidas no Serasa. O que esse fenômeno representa?
Paulo Dimas — No Judiciário, nós criamos o programa Empresa Amiga da Justiça, justamente para que essas grandes companhias, como bancos, companhias aéreas, operadoras de telefonia tenham um serviço de atendimento ao consumidor mais adequado. E a consequência desse programa foi que realmente começou-se a investir nisso. Criamos também o selo Padrão de Responsabilidade Corporativa para que as empresas diminuam o número de demandas que lhes são endereçadas e o estoque de processos que estão sendo acionados. Isso é desenvolver nas empresas um valor corporativo na responsabilidade judicial, em não ser demandada em larga escala, demonstrando qual empresa não atende bem, como prestadora de serviço, aos seus consumidores.

ConJur — Dado já conhecido em relação às agências reguladoras federais é que elas até aplicam multas, só que as empresas simplesmente não pagam. Com o Procon isso acontece também?
Paulo Dimas — Depende de como se exercita a cobrança. As empresas bem estabilizadas, de porte, pagam. Às vezes, há questionamento judicial, principalmente sobre o valor da penalidade, porque algumas multas são bastante elevadas. Mas o Judiciário, dependendo do porte da empresa e da reiteração das condutas, mantém as imposições. Na verdade, o que temos que ver é como tornar efetiva a função do Procon, que é um órgão muito cobrado por associações de consumidores.

ConJur — O senhor acumula a Secretaria com a presidência da Fundação Casa. O que pretende fazer lá? Qual é o principal desafio hoje na Fundação?
Paulo Dimas — A Fundação Casa evoluiu bastante. Esse novo formato de unidades, com um número reduzido de reeducandos, facilita o trabalho de dar formação. No site da Fundação Casa dá para ver que temos uma série de ações internas educacionais e de qualificação profissional para que o jovem saia de lá e se torne um cidadão de bem, a obter depois, no convívio social, reconhecimento e apoio. Não temos mais problemas de superlotação, mesmo quando tivemos um episódio de um motim em janeiro.

ConJur — E era reclamando das condições?
Paulo Dimas — O mais interessante é que não tinha reivindicação nenhuma. No fim, eles se rebelaram por indicação de alguém que queria fazer motim. Isso mostra que o sistema está funcionando melhor, com um pessoal mais qualificado, corregedoria que funciona e fiscaliza a atuação dos servidores. A atuação agora é bastante próxima, qualificada, e que nos permite lidar com um problema social gravíssimo, que é a prática de atos infracionais graves por adolescentes.

ConJur — Existem dados sobre a reincidência dos egressos da Fundação Casa?
Paulo Dimas — Está na faixa de 22%. Não é elevada. O que precisa é, evidentemente, criar uma estrutura de apoio àquele que sai da Fundação, para ter a possibilidade de, ao encontrar a família, ter outras oportunidades de estudo, de emprego e de qualificação. A Fundação Casa tem salas de aula e a ideia é ensinar alguma profissão aos menores. Eu já tive, inclusive, eventos com a participação dos internos em coral, com grupos musicais, e outras apresentações. Há um esforço integrado e a Fundação tem uma estrutura de apoio bastante qualificada. O número de rebeliões, fugas e motins é bastante reduzido no estado, justamente porque o modelo é o que atende melhor a essa situação do menor infrator. Com esse modelo, o custo por internação subiu muito, mas o estado está investindo, porque considera uma prioridade ressocializar esses jovens. É uma estrutura cara, com quase dez vezes o custo de um preso do sistema carcerário.

ConJur — Como isso vai ser mantido com todos os desafios orçamentários que a administração pública diz enfrentar?
Paulo Dimas — O Estado tem que investir mais na questão do desenvolvimento social, em políticas que deem mais educação, saúde e estrutura familiar para esses adolescentes. Se eles não delinquirem e estiverem envolvidos em programas educacionais, esporte e em qualificação profissional, não irão para o crime. Apesar de todo o conflito social, o número de internos não tem crescido. Hoje, temos cerca de 8 mil adolescentes nas 145 unidades. Vamos focar em melhorar a aplicação e a fiscalização das medidas socioeducativas em meio aberto, que são de liberdade assistida e de acompanhamento do jovem no âmbito familiar e escolar. Isso para que não seja necessário que o menor fique restrito a uma unidade de internação, reservando-as para aqueles que têm realmente uma situação de maior periculosidade, às vezes até com envolvimento no crime organizado. Essas medidas de meio aberto podem ser um caminho até para evitarmos que haja uma contaminação daqueles que tem já uma ligação mais direta com os atos infracionais, com aqueles que, na verdade, circunstancialmente praticaram uma conduta infracional.

ConJur — Existe alguma política para atacar as causas que levam esses adolescentes a preferir cometer infrações a estudar ou trabalhar? Quando o Supremo concedeu o Habeas Corpus coletivo às grávidas presas, oficiou o CNJ para que desenvolvesse políticas para evitar reinserir aquelas mulheres no mesmo contexto de que elas saíram. O que se observa no Brasil é que a única presença estatal nas zonas periféricas é policial. Existe alguma mudança de foco nesse sentido?
Paulo Dimas — O grande problema hoje é a desagregação familiar. Famílias que não levam as crianças para a escola. Nesse governo, será prioridade atender a essas situações. O Fundo Social do Governo, que tem nova configuração, está trazendo um número muito qualificado de pessoas que vão procurar, nesses lugares onde há maior situação de violência, miséria e ausência do poder público, criar espaços próprios de cidadania. Em Paraisópolis, será feita a Praça da Cidadania, para fomentar a prática esportiva e ter cursos profissionalizantes. Vamos levar também os CICs para esse espaço para emitir documentos e dar orientação jurídica, psicológica e social. O governo vai investir muito nisso, como está investindo em melhorar a qualidade do ensino com o novo secretário da Educação. A Secretaria de Desenvolvimento Social também tem projetos importantes de apoio a várias situações de vulnerabilidade social. Vamos ter várias políticas públicas para melhorar a inclusão social e atacar as causas do crime.

ConJur — Um dos discursos que voltaram a fazer sucesso nessa nova onda punitivista foi o da redução da maioridade penal. Qual a sua opinião sobre o tema?
Paulo Dimas — É uma questão polêmica. A ideia com apoio da maioria da população, mas precisaria mudar a Constituição. Mas há outra ideia que está caminhando no Congresso há algum tempo, de permitir um tempo maior de internação na Fundação Casa para quem pratica crimes violentos, fora daquele limite de três anos que nós temos no Estatuto da Criança e do Adolescente.

ConJur — Mas reduzir a maioridade penal não é uma ideia contraditória? O dado que se conhece é que o sistema carcerário está superlotado e não dá conta de atender aos requisitos básicos do cumprimento da pena. Ao mesmo tempo, a Fundação Casa tem índices de reincidência menores e prestam um serviço mais qualificado. Faz sentido aumentar a possibilidade de ser preso no sistema carcerário?
Paulo Dimas — Aquela política de estender, dependendo da gravidade do crime, o período de internação na Fundação parece mais adequada do que simplesmente reduzir a maioridade penal. As universidades devem discutir esse tema, e devemos nos pautar nas estatísticas, para ver o que isso pode representar no sistema de aplicação de medidas sancionatórias.

ConJur — Como fica a questão da administração penitenciária na atual gestão?
Paulo Dimas — O chefe da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, coronel Nivaldo Restino, foi comandante da Polícia Militar, e está se assenhorando muito bem da sua secretaria. São Paulo tem ainda uma estrutura razoável, mas falta em torno de 86 mil vagas.  O preso trabalha para se sustentar, para auxiliar a família e remir a pena também, se quiser. Hoje, temos aí os 170 mil presos no regime fechado e em torno de 55 mil trabalhando em alguma atividade. A ideia é que todos trabalhem.

ConJur — Como isso será feito?
Paulo Dimas — O governo pretende fazer parcerias público privadas, nos moldes das que já existem em Ribeirão das Neves (MG), onde a iniciativa privada assume o presídio do portão do muro para dentro. Ou seja, administração, vigilância, trabalho de ressocialização, e trabalho de preparação para o indivíduo voltar ao convívio social. É uma estrutura bastante profissionalizada que observa moldes aí dos presídios mais qualificados nos países desenvolvidos.

ConJur — Há muitos questionamentos de constitucionalidade disso.
Paulo Dimas — Com certeza a Procuradoria-Geral do Estado já andou analisando isso, basta fazer a formatação administrativa adequada. Isso é para presídios novos, que vão ainda ser construídos já em um novo formato, e não para os presídios que já existem e estão em funcionamento.

ConJur — A Defensoria Pública vem se queixando do baixo orçamento e da estrutura insuficiente para dar conta da demanda. O governo pretende aumentar essa estrutura?
Paulo Dimas — O governo vai ter a Defensoria como parceira importante. Ela é muito qualificada e não há mais aquelas filas enormes para atendimento, de pessoas necessitadas. O atendimento tem sido rápido e qualificado. E onde a Defensoria não está, o governo tem convênio com a OAB.

ConJur — E pretende aumentar a estrutura?
Paulo Dimas — Já tem o bastante. Teremos chamamento de novos defensores brevemente por causa dos concursos já realizados e a ideia é cada vez mais aumentar a presença dos defensores públicos nas comarcas do estado.

ConJur — O que acha daquela tese da professora Luciana Zaffalon de que existe uma relação de compadrio entre o TJ-SP e o governo do estado? Ela defende que o TJ evita interferir em políticas públicas enquanto o governo garante créditos e orçamento do Judiciário. Faz sentido?
Paulo Dimas — Não, não faz. Se consultar a jurisprudência do TJ, diariamente temos situações em que as demandas do poder público não são acolhidas. Muito pelo contrário, temos várias condenações do Estado em ações civis públicas. O Judiciário aqui em São Paulo tem preservado sempre a sua independência, e as questões administrativas se resolvem a partir daquilo que nós colocamos no orçamento, dentro daquela pauta de harmonia com o governo. Mas não podemos ter subserviência. É lógico que, no âmbito administrativo, a presidência do tribunal tem que cooperar com os demais poderes, tem que ter uma ação harmônica com o Legislativo e o Executivo. Mas, na jurisprudência, o Órgão Especial se pauta pela lei e especialmente pela Constituição Federal. Há demandas em que o Estado é vencedor, e muitas outras em que ele é vencido, dentro da rigorosa aplicação da lei. O Estado tem as suas demandas, move ações, responde a muitos processos, e nós temos uma política de fazer com que a lei seja cumprida.

*Texto alterado às 14h56 do dia 3 de fevereiro de 2019 para correção

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