Opinião

Anomalias constitucionais nas dinâmicas de colaboração premiada

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2 de fevereiro de 2019, 5h08

O instituto da colaboração premiada (artigo 4º, Lei 12.850/2013) veio para ficar. O desenvolvimento e a complexidade da vida moderna geraram uma explosão litigiosa no seio da sociedade, imobilizando os tribunais na sangria processual. Tudo, absolutamente tudo, vira um processo judicial, demonstrando que a capacidade de diálogo e composição amigável de controvérsias está em desuso na civilização moderna. Nesse contexto conturbado, a epidemia litigiosa não deixa de ser um fator de estímulo à impunidade (prescrição) ou a julgamentos açodados (sentenças sem profundidade fático-jurídica), contribuindo, assim, para o aumento da descrença social nas instituições da Justiça.

O advento da delação premiada busca resolver parte dos efeitos deletérios da avalanche processual em curso, contribuindo para desfechos penais mais céleres com efetiva punição de desvios criminais. Em uma visão macro, não há dúvida de que o instituto é virtuoso, inaugurando uma nova dinâmica sancionatória. Todavia, virtudes gerais não impedem o surgir de injustiças específicas. E toda injustiça penal é uma afronta ao direito da liberdade (artigo 5º, caput, CF). Logo, estamos diante de um assunto delicado que exige máxima cautela hermenêutica.

Objetivamente, os acordos de delação premiada representam a contratualização da pretensão penal-sancionatória. Sobre o ponto, em artigo seminal no Yale Law Journal (“Plea Bargaining as Contract”, 1992), Robert Scott e Willian Stuntz apontam que “a clássica teoria contratual sustenta a liberdade de barganhar em punições criminais”, realçando, no entanto, que “o Estado pode reduzir incentivos a barganhas estratégicas e melhorar a eficiência e a justiça” dos acordos de colaboração premiada. Logo, estamos diante de um tipo contratual atípico e juridicamente híbrido, entremeando o interesse público da sanção criminal com o interesse privado fundamental de proteção da liberdade. O desafio, aqui, é encontrar um equilíbrio sustentável entre as partes, evitando indevidas sobreposições da pesada máquina acusatória sobre o indivíduo hipossuficiente, bem como coibir lances de esperteza do acusado visando ludibriar o sério trabalho da acusação.

Sim, as partes são livres para negociar, mas o acordo de delação premiada não aceita tudo. Tanto é verdade que “o juiz poderá recursar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto” (artigo 4º, parágrafo 8º, Lei 12.850/2013). Adicionalmente, o legislador brasileiro, além da reserva jurisdicional da proposta entabulada, outorgou à autoridade judicante o poder de modificação concreta do esboço contratual, podendo o juiz, inclusive, “conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos” (artigo 4º, caput, Lei 12.850/2013) com vistas a bem ponderar o apenamento do réu, à luz das circunstâncias do caso concreto. Ou seja, as partes esboçam a sanção, mas quem aplica a pena é o juiz (artigo 59, CP).

A questão ganha complexidade quando a acusação faz a oferta do acordo, mas as negociações não alcançam a perfectibilização do contrato. Ora, é direito do acusado negar a possibilidade de colaboração, optando pelo tramitar da pretensão punitiva via o devido processo legal (artigo 5º, LIV, CF). Em especial, quando inocentes são indevidamente acusados, esse deveria ser o caminho natural; mas processos judiciais não são perfeitos e, não raro, pessoas com baixa tolerância a risco resolvem compor com a acusação pelo simples fato de não suportar a pressão psicológica e os constrangimentos de uma denúncia criminal. Aqui, a crítica é severa: firmar um instrumento de delação premiada com um inocente traduz a absoluta subversão dos institutos penais de uma ordem jurídica justa, representando inconstitucionalidade direta e frontal à cláusula do Estado de Direito (artigo 1º, CF).

Outra questão sensível diz respeito à denegação da proposta de colaboração premiada por réus culpados. No início do processo penal, há uma importante assimetria de informação: o acusado sabe se é responsável, ou não, pelos delitos apontados, enquanto que acusação tece a denúncia com base em indícios e provas preliminares de possível materialidade criminal. É claro que nem sempre o réu dispõe de ciência sobre aspectos técnicos do delito, mas quanto ao fato em si possui natural capacidade de compreensão. Diante dessa vantagem comparativa, acompanhado de um aconselhamento defensivo hábil e suficiente, pode o réu entender que, no correr do processo, provará sua inocência ou, se condenado, o será em termos mais favoráveis do que a proposta ofertada pela acusação.

Eis, então, que a vida revela o seu enredo: o processo segue o seu trâmite normal e, ao final, o acusado é condenado a uma pena substancialmente maior. Nessa situação, pode o réu pleitear a restauração dos efeitos da proposta de colaboração premiada anteriormente denegada? A resposta — que pode valer milhões em honorários — é: depende.

Em Lafler v. Cooper (2012), a Suprema Corte americana analisou caso concreto no qual o réu, por deficiente amparo técnico defensivo, optou por rejeitar, em duas oportunidades, a oferta de plea bargaining. O processo seguiu carreira, e o acusado veio a receber pena três vezes mais severa do que a ofertada na proposta de acordo. Alegando prejudicialidade ostensiva, o réu intentou medida judicial salvadora, objetivando restaurar os efeitos da oferta inicial equivocadamente rejeitada. Por maioria, a corte resolveu conceder o writ ao pleiteante, reconhecendo a injúria constitucional por violação à garantia do efetivo direito de defesa e regular orientação técnico-criminal. Frisa-se, por oportuno, que o voto condutor do juiz Anthony Kennedy determinou ao Estado “to reoffer the plea agreement”, ou seja, feita a reoferta, é da competência do juízo de origem analisar a possibilidade de homologação ou não, bem como seus efeitos penais sancionatórios subsequentes.

O precedente acima joga novas luzes sobre o incipiente debate sobre a colaboração premiada brasileira. Sabidamente, vivemos um tempo de ampla vantagem acusatória, mas nem tudo que larga na frente acaba no primeiro lugar do pódio. Cotejando o precedente citado com as regras positivas do Direito pátrio, é importante destacar que a lei autoriza ao Ministério Público requerer, “a qualquer tempo”, a “concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial” (artigo 4º, parágrafo 2º, da Lei 12.850/2013). Adiante, no parágrafo 5º do mesmo diploma legal, restou consagrado que, na hipótese de colaboração posterior à sentença, a pena pode ser “reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos”.

Como se vê, a lei brasileira possui diversas janelas de oxigenação do sistema repressivo, visando estimular práticas colaborativas de um moderno processo penal feito com reciprocidade ao invés de antagonismo. Ainda, diante da natureza contratual da colaboração premiada, importante destacar a linha de princípio do artigo 427 do Código Civil: “A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso”. Sobre a natureza vinculante da proposta, o STJ já decidiu que “é direito do aceitante exigir o cumprimento forçado do que foi declarado se a oferta dirigida ao público for feita apropriadamente, não sendo permitido ao ofertante arrepender-se” (REsp 1.447.375/SP, 3ª Turma, DJe 19/12/2016). E, quando o negócio jurídico versa sobre a liberdade individual, é natural que a força vinculatória de propostas de delação seja ainda mais acentuada.

Enfim, o tema proposto é amplo, tendo fronteiras e intersecções em áreas jurídicas complementares. Nossa intenção, antes de encerrar discussões, busca apenas estimular um necessário debate público sobre um assunto altamente palpitante. A nosso sentir, os danos constitucionais prejudiciais à ampla e efetiva defesa de acusados em colaboração premiada — a ensejarem o manejo de medidas judiciais salvadoras — são aquelas decorrentes de meras táticas defensivas ilegais e de má-fé (defense strategy outside the law). A intenção de lesar a acusação subverte a autonomia da vontade, retirando a dignidade constitucional de um pedido processual superveniente.

Todavia, a linha jurisprudencial traçada pela Suprema Corte americana está a indicar que o Ministério Público, ao firmar termos de colaboração premiada, além de zelar pelos interesses punitivos do Estado, também deve atuar como fiscal da lei, evitando dar aval a conjecturas defensivas inadequadas ou insuficientes ao exercício pleno do direito de defesa constitucionalmente assegurado. O espírito do instituto é colaborativo, e não de competição entre a acusação e a defesa. Portanto, a intenção de se aproveitar de falhas defensivas involuntárias como elemento de pontencialização sancionatória processual subverte a lógica inicial da proposta colaborativa, configurando conduta procedimental antitética.

Como bem posto em Brady v. Maryland (1963), “a sociedade vence não apenas quando os culpados são condenados, mas quando julgamentos criminais são justos; nosso sistema de administração da justiça sofre quando qualquer acusado é tratado injustamente”. Sabidamente, a boa Justiça penal não é aquela que pune muito, mas a que sabe usar a punição como elemento estratégico de repressão ao crime. Diante das sofisticadas estruturas criminais contemporâneas, a quebra do pacto de silêncio é circunstância necessária para o desmonte da engrenagem delitiva. Por assim ser, a colaboração premiada é um acordo valioso, mas que não pode ser banalizado. Em outras palavras, a busca da eficiência criminal não legitima a fragilização de franquias constitucionais inegociáveis.

Nesta nova dinâmica processual vigente, a acusação pode muito, mas não pode tudo. Cabe à advocacia penal descobrir navegar por territórios desconhecidos, arguindo contundentes teses inovadoras à justa e efetiva proteção da ampla defesa. As vitórias não mais cairão do céu; será na vida vivida e no jogo jogado. Felizmente, não existe nada mais belo e honrado do que defender a liberdade humana contra o arbítrio e a injustiça.

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