Opinião

Negar imparcialidade da Polícia Judiciária é erro grave

Autores

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

  • André Nicolitt

    é juiz de Direito e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense).

2 de fevereiro de 2019, 15h15

Com uma simples leitura da Constituição Federal é possível observar que o modelo de persecução criminal adotado no Brasil distribuiu as funções de investigar, acusar, defender e julgar a órgãos distintos, todos igualmente importantes, limitando o poder estatal em benefício do cidadão. Diferentemente de sistemas alienígenas em que a acusação concentra a função de investigar (ex: Itália) ou a Polícia Investigativa concentra a tarefa de acusar (ex: Austrália), no Brasil as partes devem se preocupar exclusivamente com a acusação e defesa, enquanto o Judiciário e a Polícia Judiciária têm obrigação de julgar e investigar, respectivamente.

Com efeito, o legislador reservou à Polícia Judiciária o papel central na investigação penal, justamente por se tratar de órgão desvinculado da acusação e da defesa.

A função de polícia judiciária, muito embora não figure expressamente no capítulo das funções essenciais à justiça (artigos 127 a 135 da Constituição), implicitamente trata-se de função essencial à justiça em razão de fortalecer o sistema acusatório na medida em que o juiz está despido da função de investigar o que está entregue ao órgão próprio para tanto.[1]

A função investigativa formalizada pela Polícia Judiciária está longe de se resumir a um suporte da acusação,[2] não possuindo um caráter meramente unidirecional.

A finalidade do procedimento preliminar não deve ser vislumbrada sob a ótica exclusiva da preparação do processo penal, mas principalmente à luz de uma barreira contra acusações infundadas e temerárias, além de um mecanismo salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade sociais.[3]

Em outras palavras, o procedimento preliminar não se limita a eventualmente fornecer subsídios para a ação penal, sendo sua principal missão servir como filtro contra processos levianos e com isso proteger direitos fundamentais. Destarte, diferentemente do que indica o senso comum, a principal função do inquérito policial é a preservadora, e não a preparatória.

Nessa esteira, o delegado de polícia deve adotar postura isonômica, realizando sua análise técnico-jurídica (artigo 2º, parágrafo 6º, da Lei 12.830/2013) com independência funcional e sem qualquer direcionamento a priori.

Num Estado Democrático de Direito, a Polícia Judiciária baliza seus trabalhos tão somente em busca da verdade, de maneira isenta e independente.[4] É a lição da doutrina:

A polícia judiciária, por ser órgão imparcial (e não parte acusadora, como o Ministério Público), não tem compromisso com a acusação ou tampouco com a defesa. (…)

Não se pode olvidar que o inquérito policial, ao promover a colheita imparcial de vestígios e preservar direitos fundamentais, serve como barreira contra acusações draconianas, qualificando-se como devida investigação criminal. Já passou da hora de o seu exame ser feito sob a lente constitucional, sem reducionismos antidemocráticos.[5]

O livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia deriva do fato de o inquérito policial ser um procedimento discricionário (CPP, art. 14). A isenção e imparcialidade, por sua vez, são consectários lógicos dos princípios da impessoalidade e moralidade, previstos expressamente no art. 37, caput da Constituição Federal.[6]

Linha semelhante adota a Suprema Corte ao falar sobre as decisões proferidas pela autoridade de Polícia Judiciária na investigação criminal, mais especificamente acerca do indiciamento:

O indiciamento, a denúncia e a sentença representam, respectivamente, atos de competência privativa do Delegado de Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, sendo vedada a interferência recíproca nas atribuições alheias, sob pena de subversão do modelo acusatório, baseado na separação entre as funções de investigar, acusar e julgar.[7]

O indiciamento, que não se reduz à condição de ato estatal meramente discricionário, supõe, para legitimar-se em face do ordenamento positivo, a formulação, pela autoridade policial (e por esta apenas), de um juízo de valor fundado na existência de elementos indiciários idôneos que deem suporte à suspeita de autoria ou de participação do agente na prática delituosa.[8]

A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao reconhecer que a investigação criminal é um dever do Estado, afirma que a incumbência precisa ser desempenhada com imparcialidade:

O dever de investigar é (…) obrigação deve ser assumida pelo Estado (…) o que não se contrapõe ao direito de que gozam as vítimas de violações dos direitos humanos ou seus familiares de serem ouvidos durante o processo de investigação e tramitação judicial, bem como de participar amplamente dessas etapas.

À luz desse dever, uma vez que as autoridades estatais tenham conhecimento do fato, devem iniciar ex officio e sem demora uma investigação séria, imparcial e efetiva.[9]

Importante sublinhar que em todo órgão público ou privado existe percentual de profissionais que atuam de maneira desvirtuada. A exceção de autoridades que agem com suspeição, portanto, confirma a regra de que as investigações criminais são conduzidas com imparcialidade. O mesmo se diga quanto à magistratura: a ação isolada de juízes parciais não contamina a atuação de todo o Judiciário.

Imparcialidade é atributo exclusivo do juiz, no processo penal, e do delegado, na investigação criminal. São os órgãos que atuam na persecução penal sem interesse prévio no indiciamento ou não indiciamento, sem ambição anterior na condenação ou absolvição. A decisão é tomada com base nos elementos de convicção colhidos, e não fundada em concepção pré-constituída.

É de inocência angelical acreditar que o tendencioso uso de termos como “braço operacional e de controle do Estado” para se referir à Polícia Judiciária automaticamente a tornaria um órgão parcial. Ora, o Judiciário também é órgão de controle do Estado, o que tampouco impede sua imparcialidade.

Configura grave equívoco conceitual a comparação da Polícia Judiciária com o Ministério Público com intenção de transferir a parcialidade do órgão acusador para o órgão investigador, quando todos sabemos que somente o Parquet possui pretensão acusatória e interesse na condenação.

A Polícia Judiciária não atua em perspectiva inquisitorial dedicada à acusação, porquanto não tem qualquer ajuste com as partes. O fato de o delegado de polícia realizar o indiciamento em parcela dos inquéritos policiais não significa, por óbvio, que esteja a serviço da acusação, mas apenas que manifestou seu entendimento em deliberação fundamentada. Assim como o juiz que condena analisando as provas de acordo com seu convencimento motivado não está em conluio com o Ministério Público. É encargo da autoridade policial firmar uma conclusão, e evidentemente ela pode ser tanto de indiciar como de não indiciar.

Portanto, usar ginástica interpretativa para negar a imparcialidade da Polícia Judiciária, seja por desconhecimento do sistema de persecução criminal brasileiro, seja por interesse oculto de usurpar a atribuição investigativa, traduz erro grave que não merece prosperar.

[1] NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 178.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 90.

[3] HOFFMANN, Henrique. SANNINI, Francisco. Independência funcional do delegado de polícia. In: FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique (Org.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 39-40.

[4] GOMES, Luiz Flávio Gomes; SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. Jusbrasil, out. 2008. Disponível em: <http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/147325/investigacao-preliminar-policia-judiciaria-e-autonomia-luiz-flavio-gomes-e-fabio-scliar>. Acesso em: 10 abr. 2015.

[5] HOFFMANN, Henrique. Moderno conceito do inquérito policial. In: FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique (Org.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 29-30.

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 180.

[7] STF, Inq 4.621, Rel. Min. Roberto Barroso, DJ 23/10/2018.

[8] STF, HC 133.835 MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18/04/2016.

[9] Corte IDH, Caso do Presídio Miguel Castro Castro Vs. Peru, Sentença de 25/09/2006.

Autores

  • é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers (onde também coordena a pós-graduação), da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola da Magistratura de Mato Grosso, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e do Senasp. Mestre em Direito pela Uenp. Coordenador do Iberojur no Brasil. Colunista da Rádio Justiça do STF e autor e coordenador do Juspodivm. www.henriquehoffmann.com

  • é juiz de Direito do TJ-RJ, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa – Lisboa, professor do mestrado do Centro Universitário Guanambi e professor de Processo Penal da Universidade Federal Fluminense.

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