Diário de Classe

A atualidade de Raymundo Faoro e dos clássicos do pensamento político

Autores

  • Isadora Ferreira Neves

    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) bolsista Capes/Proex e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

2 de fevereiro de 2019, 7h00

Muitas vezes nos deparamos com alunos que, sem ao menos terem lido os clássicos do pensamento político brasileiro, rapidamente levantam a voz para dizer que, sob o ponto de vista da ciência, certos autores devem ser ignorados. Isso tem acontecido, por exemplo, com um autor como Raymundo Faoro. Ignoram-se totalmente as contribuições desse jurista para o debate sobre a realidade brasileira, com a justificativa de que suas ideias estão totalmente superadas. Seria o mesmo que dizer que os contratualistas Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau não merecem ser lidos nos dias atuais, já que todos eles apresentam diferentes concepções sobre um “estado de natureza” que sequer possui embasamento científico.

Diante disso, entra o seguinte questionamento: esse seria um bom fundamento para ignorar os clássicos do pensamento político? Acreditamos que não. Cientes da historicidade das ideias que atravessam qualquer obra, da importância dos debates políticos e intelectuais enfrentados pelos autores no seu tempo histórico e da maneira como muitas das suas ideias ainda nos ajudam a compreender a realidade é que afirmamos a atualidade dos clássicos do pensamento político nacional longe de qualquer dogmatismo.

Vejamos especificamente o que acontece no caso de Faoro. Com efeito, em 1958, Faoro produziu um longo ensaio a respeito da formação do patronato político brasileiro, que propiciou um novo manejo dos diversos conceitos que Max Weber utilizava para analisar a realidade europeia. Em Os Donos do Poder, Faoro fez uma espécie de antropofagia dos conceitos patrimonialismo e estamento. Antes dele, Sérgio Buarque de Holanda havia feito uso do conceito patrimonialismo para definir a personalidade do homem brasileiro, caracterizado por ele como “homem cordial”. Ou seja, segundo essa tese, a forte presença da passionalidade, como um traço definidor do caráter do povo brasileiro, seria o principal motivo do insucesso do Estado de Direito no Brasil. No entanto, diferentemente de Sérgio Buarque de Holanda, Faoro procurou explicar que as origens dos diversos problemas da realidade política brasileira não estavam na personalidade do povo, mas, sim, em elementos político-institucionais característicos do nosso sistema político. Nesse sentido, em Faoro os desvios que aconteciam na esfera pública deixaram de ser explicados como uma característica da passionalidade, para serem analisados como uma questão relacionada à estrutura de poder imposta por nossas elites

A interpretação de Faoro toma como traço dominante da história do Brasil a tutela autoritária de um aparelho político, sempre a serviço de poucas pessoas, sobre o conjunto da sociedade. Nesse sentido, o Estado brasileiro acaba dominado por um estamento patrimonialista adequado ao modelo tradicional de dominação política, que, no caso, é capaz de se amoldar a todos os momentos de transição e perpetuar um controle político no qual o exercício do poder não é uma função pública, mas simplesmente objeto de apropriação por interesses privados. Desse modo, o estamento encontra-se posicionado acima dos demais setores da sociedade brasileira, dedicando-se a tomar conta da administração — que deveria ser pública — e sempre se posicionando no melhor lugar para a defesa de interesses meramente privados, já que, para esse “nobre” setor, o público e o privado nunca estão totalmente separados. Conforme Faoro:

Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político — uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes — impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores[1].

Nesse sentido, a partir desses elementos apresentados por Faoro é possível compreender a difícil relação entre Direito e política ao longo da história brasileira. Na verdade, a história constitucional do Brasil foi, na maioria dos casos, a história do poder político arbitrário se sobrepondo ao Direito. Aqui, a maior parte dos mecanismos jurídicos, criados no contexto norte-americano e no continente europeu, serviu apenas para fortalecer o autoritarismo exercido pelo governo central, que procurava incorporar, apenas pro forma, os diversos institutos elaborados pelo constitucionalismo moderno.

De acordo com Faoro, “mandar, e não governar, será o alvo — mando do homem sobre o homem, do poderoso sobre o fraco, e não o institucionalizado comando, que impõe, entre o súdito e a autoridade, o respeito a direitos superiores ao jogo do poder”[2]. Assim, em lugar do poder político limitado pelo Direito foi instituído o “mandonismo”, uma forma de dominação pré-moderna sempre disposta a atravessar as instituições públicas para benefício daqueles que se autoproclamam donos do poder.

Sessenta anos após a publicação de Os Donos do Poder, muitas das posições de Faoro continuam bem atuais. A organização autoritária do Estado brasileiro, que, durante a maior parte da história republicana, procurou se impor como demiurgo da sociedade — na tentativa de sufocar a atuação política das classes populares —, não foi eliminada totalmente após a redemocratização. Essa situação é responsável pelo déficit de cidadania ainda presente na sociedade brasileira, que, no caso, mesmo após a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, ainda encontra dificuldade para fazer com que as reivindicações populares sejam ouvidas pelas estruturas de poder do Estado. O sistema político ainda se encontra fortemente blindado em relação aos movimentos que ocorrem nas ruas, distanciando cada vez mais os representantes políticos das pessoas comuns.

Essa situação foi observada recentemente por Marcos Nobre, em seu livro Imobilismo em Movimento, por meio de um novo conceito para compreender o modus operandi do sistema político brasileiro. Segundo ele, após a redemocratização, o sistema político passou a operar de forma autônoma em relação à sociedade, buscando arrefecer os conflitos sociais e as disputas políticas que ocorrem naturalmente numa democracia. Esse fenômeno foi denominado por Nobre como “peemedebismo”[3]. O mais interessante é que, apesar de posições metodológicas bem diferentes, de certo modo os diagnósticos de Marcos Nobre e Faoro sobre os problemas do sistema político brasileiro apresentam um ponto em comum: seja por meio do peemedebismo ou do estamento, os dois autores demonstram que o sistema político encontra-se fechado para a maior parte das demandas populares[4].

Nesse ambiente dominado pelo peemedebismo — ou pelo estamento, de Faoro —, as pautas reivindicatórias de setores marginalizados da sociedade brasileira não encontram espaço nas instituições públicas. São sufocadas prematuramente por grupos de pressão que sempre alcançam maioria entre os parlamentares, transitam bem entre juízes ativistas e controlam partes importantes do governo, impedindo, assim, que as classes populares consigam apresentar suas posições. Ou seja, a redemocratização não foi capaz de abrir por completo as instituições políticas brasileiras e mantém até hoje um grau significativo de blindagem do sistema político em relação à sociedade.

A maneira como Faoro empregou os conceitos de estamento e patrimonialismo não é a única forma de compreender a realidade brasileira. No entanto, isso não quer dizer que o legado do autor deve ser ignorado. Um dos componentes desse legado é a crítica que Faoro sempre fez às ameaças que uma elite dirigente, sempre imersa numa relação promíscua entre público e privado, pode apresentar à consolidação do Estado de Direito. E é nesse ponto que se evidencia a importante contribuição de Faoro para uma discussão crítica sobre Teoria do Estado no Brasil.

Faoro e os todos os demais clássicos do pensamento político brasileiro sempre devem ser lidos. É assim na literatura, na filosofia e nas diversas teorias sociais. Não interessa o tempo que passou e o quanto suas posições já foram questionadas ou revistas por outros autores. A obra clássica sempre terá algo importante para dizer ao leitor mais atento. Isso não quer dizer que os clássicos devem ser encarados de maneira dogmática, como se nada pudesse ser questionado neles.

No enorme esforço intelectual que todos nós devemos fazer para construir nossas próprias ideias, podemos aprender muito mais com os clássicos quando os lemos sem qualquer postura sectária ou dogmática. Até porque, entre o leitor dogmático que sacraliza seus autores prediletos e o leitor que apressadamente diz estar superado aquilo que mal conhece, existe um campo enorme para o aprendizado e a construção de novas ideias que podem jogar um pouco mais de luz sobre as complexas relações humanas. É por tudo isso que ainda continuamos lendo Faoro!


[1] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed., São Paulo: Globo, 2001, p. 824.
[2] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed., São Paulo: Globo, 2001, p. 357.
[3] Apesar desse conceito fazer referência ao PMDB, Nobre destaca que o fenômeno do peemedebismo não se reduz somente a esta organização partidária, mas é utilizado em sua obra para explicar o funcionamento do sistema político brasileiro.
[4] As aproximações e divergências entre as análises de Marcos Nobre e Raymundo Faoro precisariam ser tratadas em outra coluna. Infelizmente não há espaço na coluna de hoje para aprofundar essa discussão.

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    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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    é professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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