Opinião

Juiz de garantias, imparcialidade e a iniciativa probatória

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31 de dezembro de 2019, 7h31

No plano legislativo, a principal notícia do Natal de 2.019 foi a publicação da Lei 13.964/2019, apelidada de “pacote anticrime”.

Após a publicação da lei, sem mais qualquer jogo de futebol importante, todos os brasileiros passaram a “opinar” acerca do “juiz de garantias”. E, é preciso se que se registre, quanta bobagem se falou acerca dessa figura. As notícias acerca do assunto mais desinformam do que informam.

A criação do juiz de garantias é um avanço. Isso é inegável. Mas também é inegável que tal mudança, tão positiva, dificilmente será implementada com sucesso nos 30 dias compreendidos entre o Natal de 2019 e o final da vacatio legis prevista na lei referida. Nem Papai Noel conseguiria atender tal pedido.

Lamentavelmente os debates acerca da Lei 13.964, por enquanto, estão sendo pobres em conteúdo. A maior parte das críticas dirigidas ao referido diploma legal, concentrada na questão do juiz de garantias (artigo 3º- B do CPP), é fruto de paixão e de muita desinformação. Pouco — ou quase nada — se fala do resto da lei. O que se pretende nesse pequeno texto, sem grandes pretensões, é jogar um pouco de luz em cima de outra mudança implementada pela Lei 13.964/19.

A alteração, objeto desses breves comentários, é aquela introduzida no Código de Processo Penal, com o acréscimo do artigo 3º-A prevendo que “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

Como ensina Geraldo Prado, “a rigor a exigência de imparcialidade do juiz no processo penal não deveria ser causa de tormentos acadêmicos e dificuldades práticas”[1]. Contudo, embora estejamos falando de uma condição de validade do processo penal, não são raros os questionamentos acerca da ausência de imparcialidade do juiz decorrentes da participação do magistrado na produção de provas, que agora passa a ser vedada diante da determinação expressa da proibição da atuação do juiz em “substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

No sistema processual acusatório — e o processo penal brasileiro deve ter essa estrutura — existe uma clara distinção entre as funções de acusar e julgar. Logo, a iniciativa probatória deve ser das partes. A postura do juiz em relação à produção das provas, deve ser passiva.

No Brasil ainda convivemos com algumas deformações em relação à estrutura do nosso sistema processual penal. Embora a Constituição Federal de 1988 indique que o sistema processual penal brasileiro é de natureza acusatória — o que agora é expressamente previsto no CPP (artigo 3º-A) — ainda convivemos com a prática de realização das provas por determinação do juiz, expressamente prevista no artigo 156 do Código de Processo Penal, inexplicavelmente não modificado pela Lei 13.964/19.

O sistema processual acusatório deve ser marcado pela distinção entre as funções de acusador e julgador. A iniciativa probatória deve ser atribuída às partes e não ao juiz. O juiz tem que ser um terceiro imparcial, alheio à iniciativa probatória das partes.

Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 10º) “toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.

Para que a imparcialidade seja preservada é necessário “além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória”[2]. Isso porque a estrita observância do modelo acusatório exige o afastamento das funções de acusar e julgar e impõe que a iniciativa probatória seja das partes e não do juiz[3]. Daí os aplausos à mudança introduzida no CPP para vedar que o juízo do caso atue em “substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

A existência de um órgão encarregado de fazer a acusação, marca bem a posição do juiz no processo, como um sujeito imparcial. Os sujeitos parciais são as partes. O correto desenvolvimento do processo exige que este se desenvolva mediante a atuação dos sujeitos parciais (partes) perante esse terceiro imparcial (o juiz).

O juiz não é cientista. Não lhe cabe sair pelo mundo a procura de dados (provas) para confirmar seu entendimento. Valendo lembrar que existe uma tendência normal do ser humano de, ao analisar fatos passados, primeiramente criar hipóteses para depois buscar elementos que as confirmem.

É natural que toda pessoa persiga a conformidade entre o seu conhecimento e a sua opinião, evitando qualquer contradição entre ambos, em prol de um equilíbrio cognitivo[4]. Essa tendência gera dois efeitos, o primeiro, denominado efeito perseverança, que leva o sujeito a dar mais valor às informações que confirmam a hipótese escolhida. O segundo efeito seria a busca seletiva de informações, que conduz a busca de informações à perseguição de dados que confirmem a hipótese abraçada pelo julgador.

Se o juiz sair da sua posição de terceiro imparcial na busca de provas das alegações de uma das partes, certamente estará perseguindo elementos para justificar uma hipótese já escolhida, ou seja, será uma busca por elementos que confirmem uma opinião já formada pelo magistrado acerca das alegações das partes. Logo, nada pior que permitir ao juiz que produza provas visando confirmar a hipótese que já escolheu antes mesmo do final da instrução do processo.

Lembrando Lenio Streck[5], o processo não se interessa por fatos da mesma forma que as ciências exatas. O processo não pode ser espelho da realidade e não precisa estar estruturado para a descoberta da verdade dos fatos. Tem sim que estar democraticamente estruturado para fornecer aos litigantes a resposta adequada à Constituição”[6].

Conceder poderes instrutórios ao juiz, permitindo iniciativa probatória a esse sujeito do processo — que deve ser imparcial — implica em entregar funções persecutórias a quem, ao final do processo, terá a tarefa de julgar o caso. Faz desaparecer a separação que deve existir entre juiz e acusação. Dá origem ao surgimento de juízes justiceiros, que acreditam que devem atuar como combatentes do crime. Tal modelo, como adverte Jacinto Nélson de Miranda Coutinho, torna todo juiz um Torquemada em potencial[7].

Há de se ter em mente que a realização de prova, de ofício, por determinação do juiz, sempre será sempre prejudicial ao réu, que, na ausência de prova das alegações da acusação, é presumidamente inocente. Se o juiz está em dúvida, por ausência de prova das alegações da acusação, o resultado da produção de novas provas nunca trará qualquer benefício para o réu.

Não é a toa que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que “não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado”. Isso porque “já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência”[8].

A inocência do réu é “uma verdade pré-estabelecida no processo”[9] que deve ser desfeita pela acusação. Por consequência, é lógico que o ônus da prova deve ser atribuído ao órgão acusador, que para se desincumbir dessa tarefa, não deve contar com a ajuda do juiz. É inegável que da presunção de inocência decorre a atribuição de carga da prova exclusivamente à acusação[10], que agora, por força da lei, não pode ter a sua atuação substituída pela do juiz.

É digna de elogios a mudança introduzida no CPP (artigo 3º-A) pela Lei 13.964/19. Mas precisamos avançar um pouco mais. A ideia, ainda presente no pensamento de muitos, de que o juiz não deve ser um espectador inerte na produção de provas precisa ser superada. Não é compatível com os princípios contidos na Constituição Federal de 1988. E agora está expressamente vedada no processo penal brasileiro.


1 PRADO, Geraldo. Entre a imparcialidade e os poderes de instrução no caso Lava Jato: Para além da iniciativa probatória do juiz. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 122/2016. P. 135 – 169. São Paulo: Revista dos Tribunais. Set – Out / 2016

2 LOPES JUNIOR, Aury. A tridimensionalidade da crise do processo penal brasileiro: crise existencial, identitária da jurisdição e de (in)eficácia do regime de liberdade individual.Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 143/2018. P. 117 – 153. São Paulo: Revista dos Tribunais. Maio/2018

3 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 12ª; ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 545.

4 SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coord. Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p.206.

5 STRECK, Lenio Luiz. Processo judicial como espelho da realidade? Notas hermenêuticas à teoria da verdade em Michele Taruffo. Revista Sequência – Estudos políticos e jurídicos.

6 Idem.

7 COUTINHO, Jacinto Nélson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho. O novo processo penal à luz da constituição: análise crítica do projeto de Lei n. 156/2009, do Senado Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 09

8 STF – HC 84580 – 2ª T. – Rel. Min. Celso de Mello – DJ 18.09.2009. Disponivel em www.stf.jus.br.

9 NASSIF, Aramis. Sentença penal: o desvendar de Themis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 123 e ss.

10 AMARAL, Augusto Jobim do. A pré-ocupação de inocência no processo penal. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 62, p. 85-115, jan.-jun. 2013. p. 94. 

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