Opinião

Juízo das garantias não é novidade, ao menos em São Paulo

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  • Ulisses Augusto Pascolati Junior

    é juiz de Direito do TJSP professor de Direito Penal doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca e em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura (EPM).

30 de dezembro de 2019, 8h21

Como “presente de natal” a todos aqueles que buscam um processo penal de estrutura tipicamente acusatória, dentro de um Estado verdadeiramente democrático e de direito, o presidente da República sancionou a Lei 13.964 que contempla, dentre outras figuras, o “Juiz das Garantias”.

Não há dúvidas de que se trata do maior avanço processual penal dos últimos anos uma vez que, de forma definitiva, afasta o “juiz julgador” do “juiz investigador”. Referida figura, nem bem terminada a comilança das sobras da ceia de natal, já desperta inúmeros questionamentos, notadamente quanto a sua aplicação logística e financeira.

Não obstante o ardoroso debate, vale salientar que esta figura não é nova na cidade de São Paulo. Na capital, desde 1984/85 (provimento 167/84 do CSM e Provimento 11/85 do OE), os operadores do direito convivem harmonicamente com o “Juiz da Garantias”. É certo que a atividade jurisdicional não é exercida com este nomen juris, contudo, há mais de 30 anos, é exercida pelos juízes do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária, famoso DIPO.

Na cidade de São Paulo, o processo penal é de natureza trifásica: a) a investigação fica a cargo da Polícia Judiciária, por meio do Inquérito Policial, ou do Ministério Público, por meio dos PIC’s — Procedimento Interno de Controle (anote-se que agora obrigatoriamente estes deverão ser distribuídos — artigo 3º-B, IV); b) as medidas constritivas de direito, ou seja, aquelas que flexibilizam garantidas constitucionais (liberdade, privacidade, intimidade, honra, etc) são decididas por juiz que atua no DIPO e este juiz controla o trâmite e regularidade das investigações; c) a instrução e julgamento, por sua vez, é realizada por outro juiz, o qual, ressalte-se, não manteve contato com a investigação.

Em São Paulo, portanto, embora não com as integrais competências trazidas pela nova legislação, o juiz do DIPO atua no sentido de não permitir a contaminação ou qualquer influência do juiz de julgamento (“de instrução”) pelas provas colhidas na fase inquisitiva/investigatória.

Diferente da nova figura o Juiz do DIPO, por exemplo, não atua na fase de recebimento da denúncia (artigos 395/399 do CPP) e, ademais, o Juiz das Garantias será o competente para atuar na homologação dos acordos de não persecução penal (artigo 3º-B, XVII).

Em São Paulo, saliente-se, com o DIPO, busca-se preservar a imparcialidade total do Magistrado, regra de ouro para o funcionamento de qualquer sistema de justiça. Assim, sob um olhar material, não há dúvidas de que a medida sancionada pelo Presidente da República, que agora será expandida para todo território nacional, é constitucional e adequa-se a uma visão moderna de Estado de Direito. Tanto a lei mostra-se materialmente constitucional que as críticas não são de essência ou de conteúdo, mas sim laterais relativamente a sua aplicação ou eventual aumento de gastos.

É certo, outrossim, e esta crítica mostra-se adequada, que uma alteração de processo de tamanha envergadura mereceria um tempo maior de vacatio legis para que os tribunais pudessem melhor se adaptar. Entretanto, a despeito desta crítica, cremos que as demais quanto a gastos ou logísticas devem ser absorvidas, a uma porque não há reforma processual penal sem a implementação de gastos e, a duas, pode haver soluções que não importem gastos substanciais desde que haja, por exemplo, reorientação de atividades jurisdicionais já existentes, ou mesmo distribuição cruzada on line entre comarcas próximas ou contíguas de inquéritos digitais ou mesmo, como existe há mais de 30 anos, a criação de centrais de inquéritos semelhantes ao DIPO encarregados desta fase de “pré-mérito”. Anote-se que o CNJ, antecipando-se ao problema, criou, por meio da portaria 214, grupo de trabalho para elaboração de estudo relativo aos efeitos de aplicação da nova legislação.

Portanto, um avanço democrático dessa natureza que, de uma vez por todas, colocará termo às incontáveis alegações de parcialidade do Magistrado, não pode ficar resumido a discussões laterais solucionáveis; ademais, o Tribunal de Justiça de São Paulo, na vanguarda, mostrou que é possível o funcionamento desta nova figura, isto há mais de 30 anos, o que mostra não se tratar genuinamente de uma “novidade”.

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