"Chefe de quadrilha"

Em parecer, Juarez Cirino contesta denúncia contra presidente da OAB

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30 de dezembro de 2019, 17h12

Egberto Nogueira
O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz
Egberto Nogueira

O Ministério Público Federal do Distrito Federal denunciou no último dia 18 o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, por crime de calúnia em fala sobre o ministro da Justiça, Sérgio Moro.

A declaração que motivou a ação foi dada quando ele comentou a operação "spoofing", da Polícia Federal. “[Moro] usa o cargo, aniquila a independência da Polícia Federal e ainda banca o chefe da quadrilha ao dizer que sabe das conversas de autoridades que não são investigadas."

Além da denúncia por calúnia, o MPF também solicitou o afastamento de Santa Cruz de suas funções no Conselho Federal da OAB como medida cautelar.

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O criminalista Juarez Cirino dos Santos
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Em parecer enviado à ConJur e reproduzido abaixo, o criminalista Juarez Cirino dos Santos contesta a denúncia.

I. O FATO IMPUTADO
1. Por representação de Sérgio Moro, ministro da Justiça do governo Bolsonaro, o MPF imputa a Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, o crime de calúnia definido no artigo 138, CP, que teria sido cometido mediante expressões verbais publicadas na coluna de Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, edição de 26 de julho de 2019, assim descritas:

“usa o cargo, aniquila a independência da Polícia Federal e ainda banca o chefe de quadrilha ao dizer que sabe das conversas de autoridades que não são investigadas”.

2. O presidente da OAB, em nota oficial publicada em 8 de agosto de 2019, faz o seguinte esclarecimento relevante sobre o fato:
a) que a declaração não teve a motivação de ofender a honra do ministro Sérgio Moro;

b) que as expressões utilizadas representavam uma crítica jurídica e institucional realizada por meio de uma analogia, sem imputação de qualquer crime ao ministro.[1]

Além de excluir a intenção especial de ofensa à honra alheia, essencial para caracterizar o tipo subjetivo do delito, a nota oficial menciona entrevista do presidente da OAB ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na qual reafirma a analogia utilizada.

II.      ANÁLISE DO FATO IMPUTADO
1. A ação imputada não configura calúnia.
1.1.   A ação atribuída ao presidente da OAB não configura o crime de calúnia imputado na denúncia: o legislador descreve no tipo legal, após qualificar a conduta de caluniar alguém, a ação incriminada correspondente: imputando-lhe falsamente fato definido como crime. Logo, a pergunta em relação à declaração de Felipe Santa Cruz é esta: qual foi o fato definido como crime imputado falsamente ao ministro da Justiça pelo presidente da OAB?

1.2.   Como diz a Denúncia, o fato imputado falsamente consistiria na expressão “e ainda banca o chefe de quadrilha, usado pelo presidente da OAB. Assim, em primeiro lugar, é preciso saber se bancar o chefe de quadrilha constitui um fato, no sentido da lei penal; em segundo lugar, é preciso saber se a ação imputada é definida como crime pela lei penal. A resposta a essas perguntas destrói a imputação da Denúncia.

2A ação imputada não constitui fato
2.1. Primeiro, a locução bancar o chefe de quadrilha não constitui fato, no sentido da lei penal. Qualquer dicionário da língua falada no Brasil indica que o sentido mais comum da palavra bancar é fazer o papel de, ou passar por, ou ainda fingir, ou simular o chefe de quadrilha, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.[2] Assim, o que o presidente da OAB imputa ao ministro da Justiça seria a atitude de fazer o papel de, ou de passar por, ou ainda a atitude de fingir, ou desimular ser chefe de quadrilha. Portanto, imputar a atitude de bancar o chefe de quadrilha, com o significado de fazer o papel de, ou de passar por, ou ainda de fingir, ou de simular ser chefe de quadrilha, não é o mesmo que imputar o fato de ser chefe de quadrilha. Aliás, considerando o uso linguístico popular da palavra bancar, todo e qualquer cidadão atribuiria à locução o significado de fingir, ou de simular alguma coisa — e jamais o significado de ser alguma coisa, como pretende a denúncia.

2.2.   Logo, se o presidente da OAB está imputando a atitude de bancar o chefe de quadrilha ao ministro da Justiça, então está imputando a atitude de fazer o papel de, ou de passar por, ou ainda de fingir, ou de simular ser o chefe de quadrilha — ou seja, segundo o uso linguístico comum da palavra empregada, não está imputando o fato de ser o chefe de quadrilha, como exige a lei penal.

2.3. Em outras palavras: imputar a atitudede fazer o papel de, ou a atitudede fingir ou de simular ser o chefe de quadrilha não pode ser definida pela denúncia como imputar o fato de ser o chefe de quadrilha — exceto no sentido da analogia mencionada por Felipe Santa Cruz, como uma atitude de fingimento, ou uma aparência de fato, que não pode exprimir, ao mesmo tempo, um fato verdadeiro. Em suma, a denúncia parece confundir uma aparência de fato com um fato verdadeiro, talvez de modo inconsciente, talvez por conveniência processual: na perspectiva da acusação, ignorar o conteúdo semântico do signo bancar, no sentido usual próprio da linguagem popular,tal como empregado pelo presidente da OAB na locução bancar o chefe de quadrilha, parece condição necessária para caracterizar o crime de calúnia na ação descrita — mas uma condição necessária obtida pela mutilação do significado semântico da palavra empregada.

2.4. Afinal, se a ação imputada na Denúncia exprime a atitude de fazer o papel de, ou de passar por, ou ainda de fingir, ou de simular ser o chefe de quadrilha — e não a atitude verdadeira de ser o chefe de quadrilha —, então o Presidente da OAB não imputou nenhum fato ao ministro da Justiça.

3. A ação imputada não constitui fato definido como crime
3.1. A resposta à segunda perguntaesclarece outro ponto relevante da imputação: nenhuma lei penal define a locução chefe de quadrilha como crime.

3.2. Antes de tudo: se não há imputação de fato ao ministro da Justiça, não parece possível acrescentar o adjetivo que definiria esse substantivo como crime: afinal, a lei exige a imputação falsa de fato definido como crime.

3.3. Depois, atribuir a atitude de fazer o papel de, ou de passar por, ou ainda de fingir ou de simular ser o chefe de quadrilha, não é definida em nenhuma lei penal como crime — a outra condição necessária para caracterizar o crime de calúnia atribuído: imputar falsamente fato definido como crime.

4. As interpretações delirantes da denúncia
Essa interpretação normal da forma linguística empregada, que exprime o significado subjetivo da locução bancar o chefe de quadrilha no psiquismo do presidente da OAB, parece explicar a necessidade lógica de estruturar a denúncia mediante deturpação ou adulteração da locução original, com  modificação das palavras empregadas para forjar o conteúdo ofensivo do crime de calúnia, inexistente na linguagem do presidente da OAB.

4.1. A primeira interpretação da denúncia sobre a ação realizada, definida como “afirmar que a conduta do Ministro da Justiça assemelha-se a alguém que exerce a função de ‘chefe de uma quadrilha’, (Denúncia, p. 5), se baseia em adulteração da locução original: a verbalização genérica “ainda banca o chefe de quadrilha”, empregada pelo presidente da OAB, aparece metamorfoseada na locução “exerce a função de chefe de uma quadrilha”, utilizada na denúncia. A formulação linguística “bancar o chefe de quadrilha”, usada pelo presidente da OAB, não é equivalente à forma  linguística exerce a função de ‘chefe de uma quadrilha’, imputada na denúncia: o verbo bancar não pode ser substituído pela locução exercer a função de, e a fórmula genérica ou abstrata de chefe de quadrilha não é permutável pela forma específica ou concreta de chefe de uma quadrilha.

4.2. A segunda interpretação da denúncia sobre a ação realizada, pela qual a justificativa do presidente da OAB no PIC instaurado corrobora a intenção de acusar o Ministro da Justiça, porque indicaria que Sérgio Moro era, realmente, o chefe de uma organização criminosa (Denúncia, fl. 5), representa exercício abusivo da livre cognição do Ministério Público, incompatível com a natureza jurídica da denúncia, que deve expor o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias — e não inventar um fato criminoso, com novas e velhas circunstâncias. Afinal, a forma linguística “bancar o chefe de quadrilha”, usada pelo presidente da OAB, também não pode ser traduzida na forma linguística inventada de que Sérgio Moro “era, realmente, o chefe de uma organização criminosa”, empregada na denúncia.

4.3. A terceira interpretação da denúncia sobre a ação realizada, pela qual a conduta do denunciado se amolda ao tipo penal, porque afirma (a) que “Sérgio Moro age como chefe de quadrilha”, (b) que “faz parte de um grupo de três ou mais pessoas organizadas, de forma estável e permanente, visando a prática de outras condutas delituosas” (Denúncia, fl. 5) representa delirante imaginação punitiva do Procurador de Justiça signatário da denúncia, que projeta o resultado de fantasias psíquicas idiossincráticas sobre o mundo real, em absoluta incongruência com a realidade objetiva e subjetiva da ação realizada pelo Presidente da OAB, que apenas atribui ao Ministro da Justiça a atitude de fazer o papel de, ou de passar por, ou ainda de fingir ou de simular ser o chefe de quadrilha, as únicas definições capazes de exprimir o significado semântico da locução bancar o chefe de quadrilha, definida como analogia pelo presidente da OAB.

IIICONCLUSÃO
A locução bancar o chefe de quadrilha, no sentido léxico de fazer o papel de, ou de passar por, ou ainda de fingir, ou de simular o chefe de quadrilhanão constitui o tipo legal de calúnia imputado na denúncia, porque:

a) imputar a atitude de bancar o chefe de quadrilha, com o significado de fazer o papel de, de passar por, ou ainda de fingir ou de simular ser chefe de quadrilha, não é o mesmo que imputar o fato de ser chefe de quadrilha; logo, o presidente da OAB não imputou nenhum fato ao ministro da Justiça, como exige o tipo legal: imputar falsamente fato definido como crime;

b) atribuir a atitude de fazer o papel de, de passar por, ou ainda de fingir ou de simular ser chefe de quadrilha não é definida em nenhuma lei penal como crime — uma condição necessária para caracterizar o crime de calúnia atribuído: imputar falsamente fato definido como crime;

c) interpretara atitude imputada como equivalente a exercer a função de ‘chefe de uma quadrilha’ configura operação psíquica lesiva da premissa menor do silogismo jurídico: a formulação linguística “bancar o chefe de quadrilha”, usada pelo presidente da OAB, não é equivalente à forma linguística de exercer a função de ‘chefe de uma quadrilha’";

d) dizer que a justificativa do presidente da OAB corrobora a intenção de acusar, porque indicaria que Sérgio Moro era, realmente, o chefe de uma organização criminosa constitui abuso cognitivo incompatível com a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias (artigo 41, CPP),inconfundível com a invenção de um fato criminoso, como faz a denúncia;

e) concluir que o Presidente da OAB afirma (a) que “Sérgio Moro age como chefe de quadrilha”, (b) ou que “faz parte de um grupo de três ou mais pessoas organizadas, de forma estável e permanente, visando a prática de outras condutas delituosas”, representa delirante imaginação punitiva, com projeção de fantasias psíquicas sobre o mundo real, em absoluta incongruência com a realidade objetiva e subjetiva do ação realizada pelo Presidente da OAB, que apenas atribui ao ministro da Justiça a atitude de fazer o papel de, ou de passar por, ou ainda de fingir, ou de simular o chefe de quadrilha, as únicas definições capazes de exprimir o significado semântico da locução bancar o chefe de quadrilha, manifestada por Felipe Santa Cruz.

Este é o meu Parecer voluntário sobre o mérito da imputação.

 


[0]Este breve estudo sobre a natureza das imputações do MPF ao Presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, é uma singela contribuição pessoal para discussão do caso pela advocacia criminal brasileira, com pleno respeito às prerrogativas profissionais do ilustre Defensor constituído, que pode utilizar os argumentos apresentados, se julgar conveniente.

[1]“Minha afirmação não teve, em qualquer momento, a motivação de ofender a honra do ministro Sérgio Moro. Ao contrário, a crítica feita foi jurídica e institucional, por meio de uma analogia e não imputando qualquer crime ao ministro. Essa semana, no programa Roda Viva, da TV Cultura, reconheci que a analogia utilizada estava acima do tom que costumo usar, mesmo considerando os sistemáticos atentados contra preceitos do Estado democrático de direito que deram base à declaração. De todo modo, como disse na entrevista, mantenho, no mérito, minha crítica de que o ministro da Justiça não pode determinar destruição de provas e que deveria, para o bom andamento das investigações, se afastar do cargo, como recomendou o Conselho Federal da OAB.

Por fim, como já enunciei diversas vezes, entendo ser necessário o retorno à normalidade do debate democrático e sugiro ao governo — de forma geral — evitar o clima belicoso, restabelecendo a harmonia institucional no país. Felipe Santa Cruz

Presidente da OAB”

[2]https://dicionario.priberam.org/bancar

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