Opinião

Lei do processo administrativo paulista completa 21 anos

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30 de dezembro de 2019, 7h25

Nascida aos 30 de dezembro de 1998 para regular os processos administrativos no âmbito da Administração Pública Estadual, a Lei Paulista 10.177 é um instrumento essencial ao exercício da cidadania e da defesa de todos particulares contra os atos arbitrários praticados no âmbito da Administração Pública.

O aniversário de 21 anos pode provocar várias reflexões, destacamos, entretanto, apenas duas. A primeira refere-se à relevância da Lei, a segunda é um breve olhar sobre o cumprimento da sua missão ao longo dessas décadas.

Antecipa-se que a partir da vigência da referida lei, os cidadãos e instituições alcançadas pelos atos praticados por agentes públicos passaram a ter fortes argumentos para impugnação dos atos ilegais. A existência de uma conduta possivelmente irregular por parte de determinado cidadão ou instituição não é por si só motivo para desconsiderar direitos inegociáveis, reforçados na mencionada lei.

O contexto do nascimento da aniversariante é memória importante. Era 28 de janeiro de 1993 quando o Diário Oficial do Estado de São Paulo noticiou o anteprojeto da mencionada Lei Paulista, convocando a sociedade civil para contribuições e críticas ao texto já elaborado por uma comissão formada pela Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania, constituída por juristas como Carlos Ari Sundfeld, Clóvis Beznos e Ruy Homem de Mello.

Entre as primeiras justificativas encontrava-se o ressentimento dos diversos entes federativos em relação à ausência de regras orientativas da atuação da Administração Pública e do seu relacionamento com os particulares, bem como a necessidade de mecanismos para implementação de uma administração eficiente.

Referida preocupação fazia todo sentido. Afinal, a Constituição Federal de 1988 inseriu no rol dos direitos fundamentais a garantia do contraditório, da ampla defesa e a expressa proibição de ser privada a liberdade ou bens de alguém sem que antes se percorra o devido processo legal. Alerta similar também foi antecipada na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948).

Apesar disso, em 1993 eram praticamente inexistentes os regulamentos e diretrizes acerca das garantias do cidadão quando do seu relacionamento com o Estado. Existiam apenas leis esparsas que abordavam o tema processo administrativo em contexto específico (lei de licitações e contratos administrativos, Estatuto do Servidor Público etc..).

Assim, em 1998 com o empenho e assinatura do governador Mário Covas e Belisário dos Santos Junior, à época Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania, e o apoio das demais secretarias envolvidas, nasceu radiante e repleta de planos a aqui referenciada Lei Paulista, antecedendo, inclusive, a regulamentação federal que chegou um mês após (Lei 9.784/1999).

O seu surgimento refletia o marco da redemocratização, afastando a timidez das normas paulistas vigentes à época, que quando muito autorizavam o cidadão a obter certidões e acessar suas informações nominais (Decreto-lei 104/969 e a Lei 5.702/1987).

Consolidando o entendimento do Judiciário, notadamente do Supremo Tribunal Federal, que na época já rechaçava os atos arbitrários praticados pelos representantes da Administração Pública, a Lei Paulista trouxe diretrizes claras, determinando que não se iniciará qualquer atuação em relação aos particulares sem a prévia formalização e o fundamento objetivo do ato praticado.

Para impedir atos com viés pessoal e contrários aos ditames da legislação em vigor, a comemorada lei determina, ainda, a existência de relação lógica entre a causa e o motivo da decisão administrativa.

Buscando concretizar os princípios constitucionais, a Lei Paulista também exigiu que os atos sejam praticados para atender à verdadeira finalidade da lei. Não podendo os agentes públicos praticarem atos movidos por interesses pessoais, políticos ou fundamentem suas condutas em dispositivos aleatórios de outra lei que não guarde relação com a situação concreta.

A permissão de ampla participação do cidadão no processo administrativo e o direito de recorrer sempre que esse for afetado por uma decisão do administrador público evidencia a garantia do direito à ampla defesa e do contraditório e a tentativa de obstar os atos desproporcionais.

Aliás, o prestígio à participação do cidadão e organizações da sociedade civil no processo decisório do administrador público tem espaço especial na Lei festejada. O administrador público é incentivado a realizar consultas e audiência pública e promover outros meios de participação das organizações interessadas na decisão administrativa. Valor extremamente caro e infelizmente sempre afrontado.

Sem dúvidas, trata-se de uma das leis mais relevante no estado e a consequência da não observância das suas diretrizes é a anulação do ato (guarda-se aqui as exceções de situações regulamentadas por leis especiais).

Assim, não pode, por exemplo, um agente público praticar determinado ato e/ou aplicar uma multa, seja ela qual for, sem registrar com clareza os motivos e fundamentos legais pelos quais está agindo. Igualmente não poderá haver negativas de requerimentos formulados pelo particular sem que os fundamentos legais sejam expressos. Isso parece óbvio? Deveria, mas não é.

Nesse ponto, sem desprezar que a relevância da Lei Paulista merece uma abordagem mais ampla dada a importância no marco da redemocratização, seguimos para a segunda reflexão que diz respeito ao cumprimento da sua missão ao longo dessas décadas.

Sobre o alcance da sua missão, são visíveis os esforços dos integrantes da Administração Pública direta e indireta. Os processos administrativos caminham — quase sempre — com a participação dos interessados. As decisões administrativas têm se aperfeiçoado e as ferramentas internas da Administração Pública também parecem seguir a modernização (processos eletrônicos).

Contudo, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público e motivação dos atos administrativos, anunciados na CF/88 e na lei paulista são continuamente descumpridos, o que coloca a Administração Pública na liderança das litigâncias no Judiciário brasileiro.

Em relação ao efetivo cumprimento da Lei, vale destacar duas frustrações. A primeira diz respeito ao tema transparência. A garantia de acesso às informações interesse particular, ou de interesse coletivo, aos registros administrativos e/ou atos de governo, descumprida continuamente por diversos órgãos da Administração Pública, precisou de Lei Federal para reforçá-la (Lei 12.527/11) e regulamentação específica no estado (Decreto Estadual 58.052/2012).

A segunda frustração que me atrevo a ilustrar diz respeito à quantidade de demandas no Judiciário com o fundamento da não observância das suas diretrizes por seus próprios agentes. Mas essa não deve ser vista como um problema único da Lei Paulista ou falha na sua edição. Ao contrário, suas orientações são claras e completas. A problemática é mais complexa e pode ter diversas explicações — merecedoras de estudo especial.

Além das pesquisas oficiais que confirmam o número de litigância envolvendo a Administração Pública, basta uma busca rápida no Tribunal de Justiça de São Paulo, limitando a pesquisa aos temas da comentada lei, que se perceberá centenas de casos em que o Judiciário anula atos administrativos, seja porque não há clareza nos fundamentos indicados para autuação de um particular, seja porque houve desvio da finalidade e/ou existe prova sólida de impessoalidade. O descumprimento à garantia do direito ao contraditório e à ampla defesa é um dos motivos mais constantes de anulação.

Os assuntos arguidos para anulação são diversos, passam por multas de trânsito e chegam aos milionários créditos administrativos decorrentes de discussões oriundas do não pagamento de taxas, impostos etc.

Tudo isso poderia ser evitado pela própria Administração se os processos fossem conduzidos com base nas diretrizes da Lei 10.177/98. Aliás, o seu próprio texto antecipa que o administrador público poderá anular os seus próprios atos quando identificada a ilegalidade, mas há forte resistência por parte da Administração Pública em relação ao reconhecimento das falhas dos seus agentes.

A busca por soluções efetivas para as litigâncias administrativas, prezando a consensualidade também é um caminho a ser mais utilizado e que poderá evitar a extensão dos conflitos levados ao Judiciário.

É possível que as novas orientações da Lei de Introdução às Normas Brasileiras (13.655/2018), que rechaça qualquer atuação do administrador público com base em valores abstratos e sem a exposição clara de motivos, sirva para fortalecer os fundamentos já existentes na Lei aniversariante, mas ainda é muito cedo para diagnósticos nesse sentido. 

Por fim, haveria outros motivos para críticas em relação a não ou a má aplicação da Lei Paulista, mas é aniversário e nesta data apenas elogia-se.

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  • Brave

    é advogada, especialista em direito administrativo pela PUC/SP, Conselheira da Transparência Brasil, sócia do escritório Rubens Naves Santos Jr.

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