Justiça tributária

Direito tributário em 2019: entre o compasso de espera e o punitivismo

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

30 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Recebi expressa delegação do Raul Haidar, com quem divido esta coluna, para desejar a todos os leitores um Feliz 2020, e fazer um breve resumo dos fatos mais importantes deste ano que finda.

O direito tributário brasileiro viveu em compasso de espera em 2019, a despeito do turbilhão de fatos impactantes ocorridos, muitos dos quais buscaram punir criminalmente o contribuinte.

Desde os primeiros dias do ano discute-se reforma tributária, sempre no âmbito constitucional, como se desejássemos refundar o país de forma a-histórica, deixando de lado os debates já ocorridos e as experiências vividas nos mais de 30 anos da Constituição de 1988.

Duas propostas galvanizaram as atenções. A PEC 45, proposta pelo deputado Baleia Rossi, com base em um projeto elaborado pelo CCiF – Centro de Cidadania Fiscal, capitaneado pelo economista Bernard Appy, e a PEC 110, apresentada por um conjunto de senadores, tendo a frente o Presidente do Senado, Davi Alcolumbre, tendo por base o projeto do ex-deputado Luiz Carlos Hauly. Ambas visam acabar com o ICMS e em seu lugar criar dois tributos sobre o consumo: o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, e um imposto seletivo, que tem distintas configurações em cada projeto. A matéria foi bastante discutida, tendo a proposta do Senado já recebido parecer favorável da Comissão encarregada de sua análise.

O Poder Executivo não apresentou uma proposta, apenas ideias para debate, tendo inclusive flertado em diversos momentos com a volta da famigerada CPMF, o que acarretou a exoneração do Secretário da Receita Federal, Marcos Cintra.

No apagar das luzes de 2019 foi criada uma Comissão Mista para análise das duas PECs em conjunto com as ideias apresentadas pelo Poder Executivo, o que se reveste de uma boa iniciativa, pois dá direção aos trabalhos e unifica o trâmite, permitindo que os debates possam fluir com maior eficácia. Espera-se que a Comissão interaja com a sociedade a fim de aparar eventuais excessos arrecadatórios e inconstitucionalidades que estavam presentes nos dois projetos.

O excessivo foco na mudança constitucional tributária desvia a atenção do muito que há a ser feito no âmbito infraconstitucional, para melhorar o clima dos negócios. É uma pena que esse prisma de atuação não esteja na mira do governo.

Dois aspectos, contudo, não saem da alça de mira do Ministro Paulo Guedes. Restabelecer a incidência de imposto de renda sobre lucros ou dividendos, o que, se aprovado, modificará substancialmente o regime jurídico das empresas brasileiras, trazendo de volta o debate sobre DDL – Distribuição Disfarçada de Lucros, que havia sido soterrado desde 1994 (Projeto de Lei n° 6037/19), e acabar com dedução de gastos com saúde e educação no Imposto de Renda de Pessoas Físicas. Aguardemos.

Um assunto de relevo que decidido pelo Congresso em 2019 foi a Reforma da Previdência, cujos reflexos tributários já foram submetidos ao STF através de diversas ADIs nas quais se discute o efeito confiscatório da alíquota de 22% estabelecida para quem receber acima do teto constitucional de R$ 39 mil mensais. Embora todos saibamos que existem servidores públicos que recebem acima do teto constitucional, confesso ser curioso regular a matéria através da tributação; melhor seria usar o direito para impedir a existência de qualquer fura-teto, mas parece ter sido isso o que foi possível de ser feito. O relator das ADIs é o Ministro Roberto Barroso.

Também foi destaque a propalada determinação do Poder Executivo de não aprovar mais qualquer Refis. Todavia, foi editada a Medida Provisória 899, que regula a transação tributária, denominada de contribuinte legal, que cria uma espécie de Refis permanente, pois permite que o Poder Executivo, a qualquer momento, lance um edital para que os contribuintes que nele se enquadrem obtenham parcelamentos e redução de multas e juros. Sem dúvida é uma iniciativa positiva, mas o afastamento do Poder Legislativo de todo esse processo é um salvo conduto para o Poder Executivo incluir quem bem entender nesse rol. É muito poder concedido ao Executivo sem o contrapeso institucional do Legislativo.

Foi também aprovada a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19), com pequeno temário tributário, destacando-se a criação de um comitê para gerar súmulas que vinculem o CARF, a RFB e a PGFN, e normas referentes à desconsideração da pessoa jurídica.

Outro aspecto relevante, que deixou a sociedade em compasso de espera, foi a decisão do STF sobre a modulação dos efeitos do RE 574.706 (tema 69) já transitado em julgado, sobre a utilização do ICMS na base de cálculo do Pis e da Cofins. A matéria chegou a ser pautada para julgamento em 2019, mas foi transferida para 1º de abril de 2020 – será que, em face da emblemática data escolhida, o contribuinte fará o papel de bobo e verá seu direito protelado a perder de vista?

Grande celeuma foi causada pela decisão do STF no RHC 163.334, relatado pelo Ministro Roberto Barroso, no sentido de criminalizar o não pagamento do ICMS próprio, tendo sido fixada a seguinte Tese: “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”. Observa-se, contudo, que, ao incluir no texto aprovado expressões referentes à contumácia e ao dolo, obrigará a ser perquirido no curso da ação penal se o contribuinte agiu dessa forma. Foi criminalizada a situação dos devedores contumazes, assunto sob análise no Congresso através do Projeto de Lei 1646/19, o que é diferente da situação da imensa maioria dos empresários, que só ocasionalmente se tornam inadimplentes. O erro está em que todos serão processados criminalmente, e só no curso da ação é que tais requisitos terão que ser comprovados pela defesa. O crime de apropriação indébita, que era objetivo, passou a ser subjetivo nesta hipótese. Para usar uma frase antiga, o perigo é o guarda da esquina, que vai criminalizar a todos, e quem quiser e puder, que prove não ter agido de forma contumaz e sem dolo. Ou seja, a presunção de inocência foi para o ralo, em mais uma etapa do punitivismo que assola a sociedade brasileira.

É nesse sentido que foi considerado constitucional o compartilhamento dos relatórios do COAF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, resguardado o sigilo das informações (RE 1055941). Ou seja, o Poder Judiciário, através desta decisão do STF, decidiu se auto restringir em prol do Executivo, o que é temerário. Mais uma vez é um excesso de poder no Executivo sem o contrapeso institucional do Judiciário.

Outras decisões do STF também foram destaque na matéria tributária. As ADIs 3786 e 3845, relatadas pelo Ministro Alexandre de Moraes, estabelecendo que qualquer alteração na forma de cobrança da dívida ativa (seja ela tributária ou não-tributária) exige lei em sentido estrito, não sendo suficiente uma Resolução do Senado. Também merece destaque a SS 5.282, relatada pelo Ministro Fux, que concedeu liminar reconhecendo a legitimidade do voto de qualidade no CARF, o que é uma decisão inadequada, pois vai contra todo o peso histórico do mítico voto de Minerva, sendo que, no caso, se trata de um voto duplo, o que reforça sua iniquidade. E foi confirmado através do RE 940769/RS, relatado pelo Ministro Edson Fachin, que sociedades de advogados têm direito ao regime do ISS sob alíquotas fixas, o que sepulta um debate que remanescia junto às municipalidades brasileiras.

O STJ também se destacou em 2019, com relevo para duas decisões. A que definiu prazo de cinco anos para cobrança tributária de sócios e administradores, e a aprovação de três novas súmulas sobre prazos decadencial e prescricional.

Uma ida-e-vinda de 2019 ocorreu através da MP 892, que dispensava a publicação de balanço de companhias abertas em jornais impressos de grande circulação. A MP foi rejeitada pela Comissão Mista do Congresso, sob o fundamento de ser inconstitucional, e, posteriormente, perdeu sua validade, pois não foi convertida em lei dentro do prazo máximo de 120 dias, a despeito de seus efeitos já estarem suspensos por decisão do STF (ADI 6.229).

Em um ponto não houve compasso de espera em 2019: foi mantida a fúria arrecadatória brasileira. A Receita Federal passou a cobrar IOF de recursos vindos do exterior, encarecendo as exportações. Aliás, existe forte ameaça, vinda do Congresso, de permitir que os Estados voltem a tributar as exportações, o que seria nefasto. A Receita Federal também passou a tributar doações feitas a residentes ou domiciliados no exterior. E passou a ser necessário que todas as sociedades nacionais e estrangeiras identifiquem seus beneficiários finais à Receita Federal do Brasil, com algumas exceções, conforme a IN 1.863.

Nesse panorama, acrescido da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, não surpreende que tenha havido queda das exportações brasileiras em 2019, o que se intensificará com as sobretaxas estabelecidas pelos norte-americanos.

Em contrapartida, a arrecadação federal vem crescendo, o que implica em dizer que as pessoas físicas e as empresas terão pago mais tributos à União em 2019 do que em 2018. O mesmo cenário é previsto para Estados e Municípios. Deve-se aguardar os resultados consolidados para poder fazer afirmações peremptórias, mas esta é a tendência verificada a partir daqui.

Enfim, 2019 foi um ano em que o Direito Tributário viveu em compasso de espera, principalmente em razão dos debates sobre a Reforma Tributária e a decisão sobre a modulação dos efeitos da retirada do ICMS da base de cálculo do Pis e da Cofins. As novidades, ruins, ficaram por conta do aumento da carga tributária e da criminalização de comportamentos fiscais dos contribuintes. Pontualmente, aqui e ali, algumas decisões positivas foram tomadas, pelo governo e pelos Tribunais.

Espera-se que esta tendência ao punitivismo fiscal se reverta, arrefeça a busca por aumento de arrecadação, e o governo descubra que pode fazer a reforma tributária necessária sem alterar substancialmente a Constituição. Se estes passos forem tomados, certamente 2020 será um ano em que a espera se transformará em aceleração.

PS: Embora a responsabilidade pelo texto seja minha, agradeço aos meus atuais e ex-orientados a colaboração na lembrança de diversos dos fatos acima narrados.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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