Segunda leitura

Reflexos e reflexões sobre o juiz das garantias na Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

29 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
O Projeto de Lei 882 de 2019, originário do Ministério da Justiça e Segurança Pública, conhecido como “pacote anticrime”, foi aprovado e com isso sobrevieram importantes e benéficas mudanças no Código de Processo Penal. Contudo, uma inovação desperta preocupação e manifestações, a do “Juiz de Garantias”.

Esta figura foi introduzida na Câmara dos Deputados por proposta  da deputada Margarete Coelho (PP-PI). Quando do exame pelo presidente da República, não foi vetada. Portanto, entrará em vigor no próximo dia 23 de janeiro.

Garantismo, segundo Luigi Ferrajolli, são técnicas previstas no ordenamento para possibilitar a máxima efetividade de todas as normas em plena coerência com os princípios constitucionais.[i] Para fortalecer a aplicação do garantismo,  criou-se na Espanha a figura do juiz de garantias, no que foi seguida pelo México, Chile e Bolívia. Por ser novo e desconhecido, o tema vem despertando curiosidade e discussões.

De uma forma simples, face à redação dada ao artigo 3º do CPP,  pode afirmar-se que a este juiz cabe receber, autorizar ou negar todas as iniciativas de investigação policial que afetem interesses do investigado, como quebra de sigilo bancário, colaboração premiada, escuta telefônica, captação ambiental e agente infiltrado. Concluídas as investigações ele passa os autos a outro juiz para a instrução do processo e sentença.

O ministro Dias Toffoli,  presidente do CNJ, criou uma comissão de juristas para avaliar os efeitos da nova ordem legal, fixando em 15/1/2020 o prazo para apresentação de proposta de ato normativo.[ii]O ato deverá uniformizar procedimentos da Justiça Federal, Estadual, Eleitoral e Militar, para três instâncias do Poder Judiciário, ou seja, Varas, Auditorias Militares e Zonas Eleitorais, TRFs, TJMs, TREs, STM e STJ. Mas não poderá fixar regras a respeito para o STF, pois este Tribunal não é subordinado ao CNJ.

O ato administrativo do CNJ com certeza seguirá o modelo da Divisão Técnica de Distribuição, Informação e Protocolos Criminais – DIPO, do TJ-SP, onde um dos setores recebe todos os inquéritos da capital e decide atos de rotina ou incidentes.[iii]

O juiz de garantias, portanto, está previsto em lei, o Congresso agiu no âmbito de sua competência e o presidente da República exerceu o poder que lhe faculta o artigo 66, parágrafo 1º da Constituição. Assim, salvo eventual suspensão pelo STF, onde entidades de classe já anunciaram que direcionarão seus pedidos, dia 23 próximo o juiz de garantias será uma realidade. Algumas premissas e dúvidas merecem ser destacadas, para que tenhamos uma visão ampla do tema. Vejamos:

A lei deve ser adotada a todos os processos imediatamente, pois leis processuais têm vigência imediata. Conforme lição de Carlos Maximiliano, ela não se aplicaria se fosse mais restritiva.[iv] Não é o caso, pelo contrário, ela é mais benéfica ao acusado, dá-lhe mais garantias.Neste sentido o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

A nova lei se aplica a todas as instâncias e tribunais colegiados. Sendo lei mais garantista, não teria sentido que um investigado na Polícia fosse mais beneficiado do que outro no TJ, STJ ou STF, isto seria grave ofensa ao princípio constitucional da isonomia. É certo que isto criará alguns problemas. Por exemplo, consta que no STF  o ministro Edson Fachin atua em mais de 100 investigações. À medida que sejam recebidas as denúncias todas deverão ir para a outra Turma (artigo 3º-C do CPP).

Nas comarcas de uma Vara, não será simples a vinda de um juiz de outra comarca.Imaginemos Boca do Acre, Estado do Amazonas, a 1.028 km de Manaus, 4 dias e 10 hs de barco.[v] A comarca mais próxima é Lábrea e “O tempo estimado do percurso da viagem entre as duas cidades é de aproximadamente 21h41min”.[vi] Não será muito simples o juiz de uma ir até a outra para atuar como juiz de garantias. E poucos brasileiros sabem que em muitos locais da Amazônia não há internet e, portanto, processo eletrônico.

Mas os reflexos podem ser igualmente nocivos em outros locais.No Sudeste, o estado de Minas Gerais possui 176 comarcas com uma vara única. Isto significa que um colega de outra comarca terá que ser convocado para ser o juiz de garantias. Isto significa idas e vindas de sério impacto financeiro, com viagens de policiais ou servidores da Justiça. E quando este segundo juiz sair de sua comarca os seus processos param.

Há mais. Nos Tribunais há centenas de cargos vagos, seja porque nunca se aprova no número correspondente às vagas, seja porque o Tribunal não dispõe de previsão orçamentária para pagamento. Só na Bahia há 493 cargos vagos de magistrado.[vii]Ainda.  Há centenas de juízes afastados da jurisdição, prestando serviços nos Tribunais Superiores, direção do foro, associações de classe, escolas da magistratura ou em  gozo de licença médica.

Mas o problema não é diferente onde há duas varas. Começa que tendo os juízes 2 meses de férias por ano, durante 4 meses só haverá 1 juiz e outro deverá vir de fora. Mas, quando estão os dois, em muitos casos 1 atua no cível e outro no crime (v.g., Rio Negrinho, SC). Na nova sistemática o magistrado do cível será juiz de garantias, área que não faz parte de sua realidade e que exigirá novos estudos. No momento em que estiver a tratar de pedidos criminais, evidentemente não terá tempo de tratar dos casos do cível. Perda na produtividade com certeza e prejuízo às partes.

Na Justiça Eleitoral não será diferente. Comarca de 1 juiz obrigará a designação de outro colega para atender os crimes eleitorais. Tudo se repetirá, mas tem mais. Este segundo juiz receberá a gratificação eleitoral pelo exercício da função, ou seja, R$ 5.390,00 por mês. Fácil é perceber que a União — e não apenas os estados — sofrerá sério impacto financeiro ao pagar para mais centenas de magistrados exercerem tal função.

Dir-se-á que a Polícia poderá fazer tudo de forma eletrônica em contato com os juízes de garantias. Seria bom se fosse realidade. Quantos estados estão fazendo inquéritos desta forma? Alguns sim, 100% (v.g., Paraná)[viii], outros começam agora a implantar o sistema, começando pelas Delegacias da Mulher (v.g., Mato Grosso)[ix] e outros não chegaram a implantar (v.g., Acre, conforme minuciosa pesquisa no site da Polícia Civil).[x]Há um longo percurso a ser percorrido.

Aplica-se o juiz de garantias na Justiça Militar? Esta Justiça tem CPP próprio. Todavia, o STF entendeu que a ela se aplica a Lei dos Juizados Especiais (HC 117.335, Rel. Min. Gilmar Mendes).Supondo-se que se dê o mesmo entendimento ao juiz de garantias, como será em regiões de uma só uma auditoria? Explico. Cada Auditoria Militar Federal tem um juiz titular e um substituto. Por exemplo, no Recife situa-se a Auditoria da 7ª CJM, que abrange PE, AL, PB e RN. Em 4 meses do ano um dois estará em férias. Isto obrigará a vinda de um auditor do Ceará para atuar com juiz de garantias. Detalhe: são 12 Circunscrições, destas 4 tem mais de uma Auditoria e 8 só tem uma auditoria.[xi]

O artigo 3º-C, § 3º, afirma que “Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo…”. Disto se deduz que haverá mais uma secretaria (ou cartório). Então, mesmo não havendo um juiz específico, sugerindo a lei um rodízio (artigo 3º-D, parágrafo único), haverá uma estrutura, ou seja, sala, servidores, computadores, etc. Há espaço e verba para sustentar esta nova dependência? Novos servidores para compor as novas secretarias? Em um país no qual até estados ricos (v.g., RS) estão insolventes?

O artigo 3º-C, parágrafo 4º diz que as partes terão acesso aos autos acautelados na nova secretaria. Não fala no juiz da instrução, o que leva a crer que ele estará proibido de olhar o que se apurou. Pela primeira vez em nossa história o juiz que julga presume-se suspeito por lei.

No lado oposto, o artigo 3º-B, inciso IV, dispõe que o juiz de garantias será informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal. Supõe-se que esta informação fique na secretaria a ser criada. Pois bem, considerando que haverá um rodízio de juízes onde mais de um não houver, pressupõe-se que em 1 ano terão passados 12 juízes pela secretaria, com acesso a informações sobre os mais graves crimes, como os de facções criminosas, grandes corrupções ou terrorismo. O sigilo será resguardado?

Pois bem, mais haveria a falar sobre a inovação processual. Por exemplo, a ausência de manifestação do Colégio de Presidentes de Tribunais de Justiça, respeitável entidade que poderia ter dado contribuição ímpar para informar detalhes sobre as atividades na Justiça dos Estados, a que mais sofrerá impactos em sua organização.[xii]

Mas, como ressaltam Callabrich, Fischer e Pelella, a teoria garantista não existe apenas para a proteção dos interesses e direitos fundamentais individuais, mas também os interesses coletivos e os deveres fundamentais do Estado e dos cidadãos, previstos na Constituição.[xiii] Assim, cabe-nos, sem perder o otimismo, aguardar a evolução dos fatos.

 


[i] FERRAJOLI, Luigi Derecho como sistema de garantias. 5ª. Edição. Madri. Ed. Trotta, 2006, p. 25.

[ii] Disponível em :https://static.poder360.com.br/2019/12/portaria214-cnj.pdf. Acesso em 28/12/2019.

[iii] Vide entrevista da juíza Patrícia Álvarez Cruz, diretora do DIPO, à revista eletrônica Consultor Juírico, em 18/2/2018, disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-18/entrevista-juiza-patricia-alvarez-cruz-chefe-dipo-sp. Acesso em 27/12/2019.

[iv] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 9ª. Edição. Rio de Janeiro Forense, 1981, p. 329.

[vii]  Estratégia concursos, 20/09/2019, disponível em: https://www.estrategiaconcursos.com.br/blog/concurso-magistratura-ba/. Acesso em 28/12/2019.

[ix] Disponível em: http://www.pjc.mt.gov.br/noticia.php?id=20853. Acesso em 27/12/2019.

[xii] Disponível em: http://www.colegiodepresidentes.jus.br/. Acesso em 27/12/2019.

[xiii]CALLABRICH, Bruno, FISCHER Douglas e PELELLA , Eduardo. Garantismo Penal Integral. São Paulo: Atlas, 2015, p.39.

Autores

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    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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