Vácuo de poder

Após "zelotes", Receita tomou espaço do Carf e impôs a sua agenda

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29 de dezembro de 2019, 8h35

Spacca
Os reflexos da "operação zelotes", deflagrada em 2015 para investigar um esquema de corrupção envolvendo conselheiros do Carf, vão além da crise na imagem institucional do órgão.

Na análise do advogado tributarista Gileno Barreto, ex-conselheiro do Carf e atual diretor jurídico do Serpro (processamento de dados do governo federal), o Conselho passou a ser burocrático e formalmente rígido.

Em geral, a nova composição do conselho foi formada por acadêmicos, que ficaram "à solta" por lá, sem amparo dos antigos. Com isso, diz o advogado, a Receita Federal encontrou uma forma de impor sua agenda.

"A nova geração chegou literalmente solta. Eles chegaram com uma Receita Federal que permaneceu lá. Não existe vácuo de poder, então obviamente a Receita impôs sua agenda", diz o advogado, que entende que hoje o conselho está em processo de amadurecimento após repercussão negativa.

A OAB, segundo Gileno, "jogou para a torcida" ao criar regra de impedimento para o advogado do Carf. A consequência disso foi "perder os melhores advogados".

Natural de Sergipe, Gileno estudou economia na Bahia. Foi perto da virada do milênio, em 1998, que recebeu convite para chefiar o gabinete de um deputado. Morando em Brasília, decidiu fazer faculdade de Direito, tendo depois especializado em Direito Tributário Internacional.

Durante dez anos foi sócio da PricewaterhouseCoopers (PwC), empresa de auditoria e consultoria que presta serviços em 158 países diferentes. Saiu de lá para abrir escritório com outros ex-sócios e só saiu no início deste ano para assumir a diretoria do jurídico do Serpro, maior empresa pública de tecnologia de dados do país. 

Em entrevista à ConJur, o advogado de 47 anos contou as implementações necessárias para cuidar da empresa responsável pela segurança digital da Receita Federal, Ministério da Economia, Banco do Brasil dentre outros. 

No Serpro, ele cuida do compliance, do contencioso administrativo e judicial da empresa. Recentemente, foi escolhido para liderar o projeto de implementação de uma plataforma já adaptada à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entra em vigor em agosto de 2020. 

De acordo com Gileno, o Brasil tem "pouquíssimos vazamentos", se comparado ao resto do mundo. Mas ressalva: "se estratificar entre União, estados e municípios, a medida que tem menos infraestrutura, menos conhecimento, menos investimento em segurança. Então esses vazamentos podem ser mais frequentes".

Em seu currículo, também agrega passagens pelo conselho do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) entre 2004 e 2014. Também foi consultor da Receita Federal; das agências reguladoras (Aneel e ANTT); e entidades de classe (CNI, CNA, CNF).

Leia a entrevista:

ConJur — Como vê as mudanças de procedimento no Carf depois da operação "zelotes"?
Gileno Barreto —
Quando estive no Carf, ele era muito mais instrumental. À época acredito que se prestava um serviço melhor aos contribuintes, em geral. Quando estourou a "zelotes", eu já não atuava mais lá. Vejo que depois da operação houve uma inversão muito grande e o conselho passou a ser formalmente rígido, com regras de contato entre contribuintes. Burocratizou. 

Antes, a informalidade do Carf permitiu que ele fosse dominado por algumas figuras estranhas, foram poucas, mas o dano foi grande. Com a rigidez do Carf, a Receita Federal passou a atuar de uma forma mais centralizada. Foi nessa centralização que reduziu espaço para discussões técnicas, que sempre fez parte do DNA do Carf. As discussões continuam existindo, mas hoje o contribuinte se vê numa situação em que se a linha central adotada é X, não importa o que ele vai falar, provavelmente vai perder. 

ConJur — A OAB decidiu à época que conselheiros do Carf não poderiam advogar. O senhor concorda com a medida? Qual foi o principal impacto da decisão?
Gileno Barreto —
Houve uma “limpa” no Carf. A culpa disso foi da OAB, porque os advogados podiam advogar na época contra a União, por exemplo, podiam advogar livremente no setor privado, então os melhores advogados iam para o Carf. Depois, a OAB jogou para a torcida. Criou oportunisticamente uma regra de impedimento que exigia que o advogado desse baixa na carteira da Ordem. A consequência foi perder os melhores advogados. 

Chegou uma geração muito boa, mas formada de mestrandos e doutorandos, generalizando. A remuneração de R$ 7 mil era atrativa para essa classe de advogados que estava em fase de formação acadêmica, mas não para advogados experientes, já talhados e curtidos na labuta tributária. Começou a chegar colegas muito bons tecnicamente, com toda a academia na cabeça, mas que nunca tinha visto um Darf na vida, preenchido uma declaração de imposto de renda, ou visto uma obrigação acessória. Isso conta para um processo em que precisa de experiência prática para alcançar a verdade material e saber se houve erro de obrigação acessória, erro de preenchimento, se teve dolo ou é uma declaração fraudulenta. 

A nova geração chegou literalmente solta, porque todos os antigos tinham ido embora. Eles chegaram com uma Receita Federal que permaneceu lá. Não existe vácuo de poder, então obviamente a Receita impôs sua agenda. Vejo que hoje o Carf está num processo de amadurecimento. Não espero que conselho volte exatamente ao que era, mas que evolua para se preocupar mais com a verdade material e ser mais preciso tecnicamente. 

ConJur — Como foi sua transição da área tributária para a diretoria jurídica de uma empresa pública que lida com dados?
Gileno Barreto —
Interessante e natural. Eu já tinha sido consultor do Serpro pela PwC e entrei com o interesse de evolução profissional. Também já tinha conhecimento especial no Direito Tributário, e acredito que hoje qualquer consultor e advogado tributário precisa ter domínio de sistemas de informação para conseguir ter os dados necessários para exercer sua prática.

ConJur — O Snowden conta em seu livro sobre a cooperação de grandes companhias com o governo americano (CIA), e relata como o governo se protege, monitora e vigia inimigos, como traficantes e terroristas. O braço informático do governo brasileiro tem algo nesse sentido? Como é a engenharia jurídica para garantir a legalidade desse trabalho?
Gileno Barreto —
Os contextos são muito distintos. Os Estados Unidos após o ataque de 11 de Setembro criaram o Patriot Act  [Ato Patriota], que deu abertura para o governo americano mexer onde quisesse. E em 2001 não tinha o nível de sofisticação que tinha hoje, a discussão sobre uso de dados privados começou a acontecer, vamos dizer, há menos de dez anos. Por outro lado, os Estados Unidos têm no arcabouço jurídico, do próprio sistema de common law, a proteção aos direitos individuais. Lá eles optaram por não ter uma Lei Geral de Proteção de Dados, entendendo que a Constituição americana e toda a derivação jurisprudencial protege seus cidadãos.

Já o Brasil é conhecido pela tradição pacífica e para qualquer necessidade de defesa nacional tem o Gabinete de Segurança Institucional, o GSI. O Serpro é uma empresa e não tem nenhuma ligação com qualquer política de defesa do Governo Federal. Aliás, historicamente ela foi criada para ser ligada ao Ministério da Economia e ser a empresa ‘braço de tecnologia’ da informação dele.

ConJur — Por que vazam tantos dados do brasileiro?
Gileno Barreto —
Se comparado ao resto do mundo, o Brasil não é um problema, temos pouquíssimos vazamentos. Do setor público posso dizer que não creio que há muitos vazamentos. Se estratificar entre União, estados e municípios, a medida que tem menos infraestrutura, menos conhecimento, menos investimento em segurança. Então esses vazamentos podem ser mais frequentes. Já do lado privado, muito se especula sobre quem está lucrando com os vazamentos mais recentes.  E se essa “turma do submundo” está hackeando para buscar informações e, quando a lei entrar em vigor, eles chantagearem as empresas. 

ConJur — A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é implementada no Brasil a tempo de coibir uso indevido de informações pessoais?
Gileno Barreto —
Para a troca de informações não existia um marco legal regulatório. No Brasil há essa tendência de alargamento dos limites da “micro LGPD”, que é o sigilo fiscal. Agora temos essa lei que traz medidas de combate à fraude, a proteção ao crédito, e passa a permitir o compartilhamento de dados do privado com o público quando for para a segurança nacional ou como mecanismo de defesa. Isso é muito bem recebido.

Banco Central, Receita, ministérios, todos os órgãos terão que se adaptar à LGPD em maior ou menor grau. Pela lei, estarão passíveis de auditoria pela agência e deverão demonstrar as regras e procedimentos que eles têm internamente para proteger esses dados e para evitar julgamentos. Isso envolve não só arcabouço legal, mas envolve sistemas com restrições de acesso, restrições físicas de acesso de empregados a determinados níveis, envolve a existência de logs de rastreamento. 

ConJur — Com maior conhecimento dos cidadãos sobre o uso de seus dados espera-se que haja aumento significativo da judicialização?
Gileno Barreto —
A experiência europeia mostrou aumento de 30% na judicialização e depois houve uma redução gradual. Aqui também é esperado um pico no início e depois a redução. A lei veio a tempo de evitar a judicialização extrema, evitar algo que ia explodir em breve se tivesse apenas o Marco Civil.

ConJur — Quanto a adaptação à Lei, o órgão pretende tornar os relatórios de uso de dados mais acessíveis para o cidadão que está no final da cadeia? As empresas privadas também devem fazer isso?
Gileno Barreto —
Todo o arcabouço técnico do Serpro está voltado para deixar mais transparente e pública nossas regras e procedimentos, por meio do site. O relatório de uso de dados provavelmente será disponibilizado por auditoria. Já uma empresa de Tecnologia da Informação privada não precisa necessariamente  fazer isso. 

Em geral, o modelo regulatório brasileiro atual é mais fechado. Cada país tem uma margem de atuação. Alguns já implementaram a ideia de dados abertos, inclusive tendo sua "LGPD própria", e tem também aqueles que entendem que o uso e compartilhamento tem que ficar transparente. Isso só vai acontecer no Brasil com a lei em vigor. Considerando a lei de transparência, qualquer cidadão vai poder chegar e pedir à agência ou diretamente no Serpro as informações referentes a ele. 

ConJur — O Denatran está na “cartela de clientes” do Serpro. Como o órgão poderá usar os dados da CNH do cidadão, por exemplo?
Gileno Barreto —
Em algum momento podem ser usados dentro do Serpro para fazer cruzamento de dados que geram em uma estatística para políticas públicas. O cidadão vai poder chegar aqui e fazer uma consulta para saber em quais relatórios, em quais estatísticas os dados dele estão sendo usados. E responderemos: usamos para gerar um relatório estatístico anonimizado, em que o seu dado específico não aparece. O Serpro está preparando uma plataforma eletrônica para lidar com esse volume de dados, contando, claro, com inteligência artificial.

ConJur — O Serpro está na lista de empresas que o governo quer privatizar. Quais os riscos da entrada de uma empresa privada e quais garantias o cidadão terá sob seus dados?
Gileno Barreto —
A decisão de privatização deve ser do acionista. Ele é quem vai decidir o que vai fazer, o Serpro não tem nenhuma ingerência sobre esse processo. Como empresa, a bagagem técnica e jurídica, principalmente pós-LGPD, garantirá que os dados do cidadão estejam seguros independente da entrada de uma empresa privada.

Como diretor jurídico, tenho certos limites de acesso a dados, por exemplo. O Serpro só acessa dados do Fisco mediante requerimento, em situações específicas, absolutamente controladas e sob as ordens do controlador, do dono daqueles dados, ou um pedido judicial. Talvez a vinda do capital privado possa resultar em maior força para investimentos. Sendo pública ou privada, a lei garante que isso não seja usado fora de contexto. Juridicamente não há qualquer preocupação, o cidadão não tem que se preocupar, porque a lei está aí para protegê-lo.

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