Opinião

Em 2019, instituições democráticas acenderam o farol amarelo

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28 de dezembro de 2019, 6h02

O ano de 2018 culminou com a eleição improvável à presidência de político notabilizado por atuação marcada por desprezo à democracia e aos valores fundamentais. 2019, seria, então, ano de provação das instituições da República, do Estado Constitucional Democrático de Direito.

As instituições demonstraram seu amadurecimento e independência; o Judiciário, em 2019, passou por desafios importantes, como nos casos da homofobia, transfobia, presunção de inocência, anulação de sentenças da operação "lava jato", suspeição de juiz federal, compartilhamento de informações entre Coaf e o Ministério Público, criminalização do ICMS próprio declarado, enfim.

Já em fevereiro, após anos de tramitação, a Suprema Corte pautou o julgamento da “criminalização da homofobia e transfobia”. Naquela oportunidade, reconheceu o papel positivo da Constituição, a qual não funciona mais como mera reguladora negativa da relação entre Estado e cidadãos, assumindo, outrossim, sua função de concretizar direitos fundamentais.

Nesse sentido, considerando a Constituição dispor que a “lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (artigo 5º, XLI), o Supremo reconheceu que, assim como o racismo, a homofobia e transfobia configuram violações a direitos e liberdades fundamentais. Portanto, enquanto inexistente lei sobre o tema, condutas de discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero serão crimes equiparados ao racismo.

Em maio, o Supremo Tribunal Federal decidiu que as prerrogativas de deputados federais de serem presos somente em flagrante delito por crime inafiançável e com aprovação da Câmara se estende aos deputados estaduais, tendo a Assembleia Estadual do Rio de Janeiro (Alerj) votado por revogar decisão judicial de prisão proferida nos autos da operação furna da onça – desdobramento da operação "lava jato". Deste modo, nas palavras do eminente professor e ministro Ricardo Lewandowski, “estamos aqui nesta discussão diante da proteção de um dos mais consagrados direitos da cidadania que é precisamente a imunidade dos parlamentares que representam a soberania popular”.

No meio do ano, vieram à tona, por meio do site The Intercept Brasil, conversas do Telegram entre os membros da força-tarefa da "lava jato", escancarando aquilo que grande parte dos criminalistas sentiram na pele e denunciavam: os agentes estatais abusavam de seu poder e havia confusão entre as funções de julgar e acusar, com contato íntimo e direto entre os procuradores e o julgador do caso – que, ainda por cima, transnudou intento político, tornando-se ministro da Justiça.

Desde antes aludida operação vem sofrendo reveses e é alvo de relevante ressalva pelo Supremo Tribunal Federal, que anulou sentenças ao reconhecer o direito de os réus delatados se manifestarem após os delatores. Em julgamento realizado em 2 de outubro de 2019, decidiu o Supremo Tribunal Federal ser direito do acusado-delatado apresentar alegações finais por último, isto é, após o Ministério Público e o delator. Cumpre destacar mais uma brilhante sustentação oral do nobre causídico Alberto Zacharias Toron, que, primeiro, conquistou o direito de a proferir; depois, conquistou os votos de quatro ministros e libertou o cliente de um martírio indevido vivido há mais de ano por conta de prisão cautelar indevidamente decretada.

Apesar de toda polêmica envolvida, sobretudo por afetar diretamente diversas condenações, o Supremo Tribunal Federal consagrou a morfologia já aplicada no curso da ação penal. Importante lembrar que após a reforma processual penal de 2012 ficou definindo ser direito do acusado se manifestar por último, tanto na fase instrutória, em interrogatório, como também na ordem das alegações finais, consagrando a proteção aos direitos fundamentais da ampla defesa e do contraditório.

Nas palavras do insigne ministro Dias Toffoli: “O direito de defesa constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais, que materializa uma das expressões do princípio da dignidade da pessoa humana e, havendo justo receio de serem eles infringidos, devem assumir máxima efetividade na ordem constitucional”. Remanesce, todavia, a modulação acerca do alcance dos efeitos do julgado, com a condição de anulação das sentenças e se será necessária a demonstração de prejuízo.

Não é só, o próprio Tribunal Regional Federal da 4ª Região procedeu à anulação de sentença de juíza federal substituta na 13ª Vara Federal em Curitiba, devido à utilização de trechos copiados de manifestação do Ministério Público Federal e de sentença proferida em outro caso como razão de decidir.

A suspeição do então juiz federal está para ser julgada na corte; ao que tudo indica, foi violado o sistema acusatório com evidenciadas intenções pessoais políticas com a condenação, o que afasta sua imparcialidade objetiva.

2019 também será marcado pelo ano em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do dispositivo processual penal que determina a execução da pena a partir do trânsito em julgado da condenação. Com isso, suspendeu a ideia difundida nos tribunais brasileiros, desde o ano passado, de que a Constituição permitiria a chamada “execução antecipada ou provisória da pena”.

Não, a Constituição é expressa ao dispor que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”; portanto, inconstitucionais todas as execuções antecipadas levadas a cabo a partir do entendimento de que bastaria condenação por órgão colegiado. Afinal, devem-se esgotar as vias e instâncias recursais, sob pena de ser criada corrosão e progressivo esfarelamento das garantias individuais à dignidade da pessoa humana e ao direito a liberdade até se efetivar a coisa julgada com processo devido e justo.

É verdade que a disputa sobre o alcance do princípio da presunção de inocência se deslocará para o Legislativo, havendo setores empenhados em mitigá-lo. Terá o Legislativo função precípua de evitar se altere a lei ou a Constituição de forma a ferir direta ou indiretamente o conteúdo essencial da cláusula pétrea.

Quer dizer, mesmo sob pressão advinda desde as redes sociais, seja por parte de exércitos digitais, robôs, seja até mesmo de membros do governo, nossa corte tem exercido sua função contramajoritária de preservação dos princípios democráticos, notadamente do devido processo legal e seus subprincípios.

Outra decisão emblemática foi o reconhecimento, em apertada maioria, de que “compete à Justiça Eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos”, conforme já preceitua o Código Eleitoral.

Em dezembro, há dois julgamentos do Supremo dignos de nota e com ampla repercussão social: (i) a permissão de compartilhamento de dados do Coaf diretamente ao Ministério Público; (ii) e a criminalização da conduta do contribuinte que – com dolo de apropriação – deixa de recolher ICMS declarado e cobrado do adquirente da mercadoria ou do serviço. Ao que tudo indica, a repressão estatal em relação à inadimplência fiscal virá com força no próximo ano, com desequilíbrio de forças em prol da acusação.

Com relação ao pacote anticrime, o Legislativo, graças ao grupo de trabalho formado por lúcidos e incansáveis parlamentares, evitou que fossem aprovadas normas inconstitucionais, com o viés inquisidor de seu propositor e ainda aprovou normas garantistas, como a do “juiz de garantias” (existente há anos no Tribunal de Justiça de São Paulo). Nesses tempos bicudos, chegou-se ao ponto de se comemorar o sucesso no retrocesso.

Há de se manter aceso o farol amarelo como alerta à preservação das instituições e da participação de entidades da sociedade civil, constitucionalmente asseguradas, pois é fundamental o papel desempenhado pelos juristas de resistir e conter o avanço de medidas autoritárias e contrárias ao Estado Democrático de Direito.

No desfecho do ano, a denúncia oferecida contra o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com invasivo pedido liminar para seu afastamento, representa medida inaceitável, mais uma represália com condão político infundada e inconcebível, praticada de forma excessiva por autoridade contra um dos pilares da Justiça, o que constrange a advocacia com intuito de amordaçar a liberdade de expressão.

Em 2020, “sem ódio e sem medo! Sigamos assim, em busca de dias melhores para nossa classe e para o nosso povo” (Felipe Santa Cruz, em seu discurso de posse).

Autores

  • é sócio do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados; conselheiro e Presidente da Comissão de Estudos sobre Corrupção, Crimes Econômicos, Financeiros e Tributários do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

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