Opinião

Juiz das Garantias: um grande avanço civilizatório

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27 de dezembro de 2019, 6h10

A figura do Juiz das Garantias, prevista na recém promulgada Lei nº 13.964, também conhecida como Lei Anti-Crime, tem gerado enorme polêmica na mídia, parte dela por conta de efetivos problemas que precisarão ser enfrentados na sua implantação, parte dela por causa da falta de melhor compreensão do que efetivamente seja o instituto.

O conceito é simples. O juiz que atua e profere decisões durante o inquérito policial não será o mesmo que presidirá a futura ação penal. A razão para isso é clara: assegurar maior concretude para um princípio fundamental do processo: o da imparcialidade do julgador.

Juízes não são autômatos, mas, sim, humanos, que têm emoções e interagem psicologicamente com os fatos sob seu julgamento, de forma não voluntária, do mesmo modo como ocorre com qualquer outro de nós. Atribuir a um magistrado a função de conduzir toda a fase de investigação e a outro magistrado distinto a função de julgar o caso é uma maneira de isolar qualquer influência psicológica que o primeiro possa ter recebido ao, durante essa fase de cunho inquisitorial, apreciar fatos ainda incompletos e determinar medidas mais ou menos gravosas como a busca e apreensão, quebra de sigilos bancário ou telefônico, prorrogação do prazo de investigação, prisão preventiva, dentre outras que possam  afetar o íntimo do juiz acerca da sua convicção sobre a culpa do investigado. O juiz que julgará a causa, não tendo participado do inquérito, estará com a mente limpa de influências anteriores e ouvirá cada uma das partes – acusação e defesa – com a mesma sensação de novidade, dadas as mesmas oportunidades de manifestação de cada qual, assegurando assim outro princípio fundamental do processo: a isonomia entre as partes.

Não se trata, pois, o Juiz das Garantias, como alguns setores da mídia vêm apresentando, de um magistrado que irá rever as decisões de outro juiz, chegando alguns mesmo a compará-lo, no esforço de explicar ao público leigo esse seu equivocado entendimento, com a também recém criada figura do VAR, no futebol. Na verdade, os juízes atuarão em momentos diferentes: um na fase do inquérito policial; outro, na fase da ação penal, se vier a ser ajuizada.

O Juiz das Garantias, ao contrário do que muitos têm afirmado, não é sequer uma figura nova no mundo jurídico. Na Comarca Central de São Paulo há muitos anos a condução dos inquéritos é atribuída aos juízes do Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), função que a nova lei atribui ao Juiz das Garantias, e o comando das ações que a eles se seguirem caberá a outros juízes, que ocupam as Varas Criminais da Capital.

Soam igualmente equivocadas algumas afirmações também veiculadas nos meios de comunicação de que a nova lei seria inconstitucional por vício de origem, já que avançaria sobre matéria ligada à organização da magistratura, cuja competência para início do processo legislativo foi reservada ao Supremo Tribunal Federal. Com o devido respeito pelos que assim afirmam, não há nenhuma relação possível entre uma coisa e outra, posto que a nova lei nem afeta a estrutura dos cargos judiciais, nem tão pouco regula a carreira dos magistrados. A nova norma se restringe a tratar de questão tipicamente processual, qual seja, o impedimento dos magistrados.

A propósito, nem sequer se pode dizer que a lei trata de competência dos órgãos judiciais, como outros têm afirmado, às vezes até em defesa do novo instituto. Competência é atributo de órgão judicial, enquanto o impedimento atinge a pessoa do magistrado, independentemente do órgão que ocupe. Pois, então, é na verdade de impedimento, e não de competência, que fala a lei, ao vedar que a mesma pessoa que presidiu o inquérito policial aprecie e julgue a posterior ação penal.

Registre-se, ainda, que a lei, com induvidosa clareza, determina que “o juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal”. Ou seja, deixa em aberto para a organização judiciária estabelecer regras e critérios que definam quais juízes conduzirão quais inquéritos, fixando a nova lei tão somente que estes estarão impedidos de julgar a causa.

É preciso reconhecer, porém, que são válidas as críticas sobre a falta de estrutura do Poder Judiciário como um todo, para implementação do Juiz das Garantias nas Comarcas menores. De fato, muitas delas não têm sequer um magistrado, quanto mais um segundo, para ocupar essa nova função. Note-se, entretanto, que a lei não deixou de antever essa situação, estabelecendo, em resposta , que os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados nas comarcas em que há apenas um juiz.

Nesse ponto, é possível opor que o projeto não concedeu um prazo razoável para que o Poder Judiciário se estruturasse para dar conta desse novo instituto. O prazo geral de 30 dias para entrada em vigor da lei é por demais exíguo.

Mas, por outro lado, não se pode admitir que, por conta dessa ausência de estrutura, se combata a própria figura do Juiz das Garantias, um grande avanço civilizatório enquanto instrumento de aperfeiçoamento da imparcialidade do juiz, como se fosse admissível jogar o problema nos ombros da cidadania, mitigando ou suprimindo o direito a um devido processo legal, apenas porque o Estado não consegue enfrentar as suas próprias mazelas, deixando sempre para um amanhã distante o cumprimento de seus deveres e responsabilidades, dentre os quais, aquele que lhe é mais inerente, o de prestar Justiça.

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