Limite penal

Entenda o impacto do Juiz das Garantias no Processo Penal

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

27 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Em menos de 30 dias entrarão em vigor reformas no CPP e no CP decorrentes da Lei 13.964/2019. Por isso decidimos aproveitar as colunas de janeiro para analisar em tópicos, iniciando com o Juiz das Garantias (art. 3º, B, C, D e E). Não iremos fazer um juízo do que poderia ter sido feito e sim do que temos. Falaremos das mudanças no cotidiano forense, em especial em processos iniciados por magistrados que acumulavam as funções de garantia e julgamento que não poderão mais julgar as ações penais em que tenham servido na fase preliminar, por força do impedimento, causa objetiva de nulidade da decisão, prevista no art. 3º-D. Se julgarem, as decisões serão anuladas.

Desde já cabe sublinhar a divisão, sem comunicação, entre as fases procedimentais e personagens diversos. Aplica-se a todos os procedimentos, excetuado os Juizados Especiais Criminais (CPP, art. 3º-C). Restou declarado expressamente no art. 3º – A. “O processo terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase da investigação e a substituição da atuação probatória do órgão da acusação”. Na fase de investigação e recebimento da acusação, atuará o Juiz das Garantias, enquanto na fase de julgamento, o Juiz de Julgamento não receberá, nem se contaminará pelo produzido na fase anterior, já que somente as provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas e antecipação de provas serão encaminhados. O restante deverá permanecer acautelado no Juiz das Garantias (CPP, art. 3-B, § 3º), com acesso às partes (CPP, art. 3-B, §4º), acabando-se com o uso manipulado de declarações da fase de investigação, porque só vale o produzido oralmente perante o Juiz de Julgamento. Trata-se de um pleito por nós defendido há décadas – da exclusão física dos autos do inquérito – que finalmente é recepcionada. Só assim estará assegurada a distinção entre atos de investigação e atos de prova e, por consequência, efetivado o direito de ser julgado com base em ´prova´, produzida em contraditório judicial.

Nem se invoque o art. 155 do CPP porque a disposição atual muda a estrutura da lógica de aproveitamento do inquérito policial ou flagrante. Abandona-se o procedimento escrito/inquisitório em nome da oralidade que deverá presidir os pedidos, normalmente em audiências presenciais ou por videoconferência (exceção justificada).

O Juiz das Garantias é responsável (civil, penal e administrativamente) pelo controle de legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (reserva de Jurisdição), competindo-lhe especialmente:

a) Controle da Legalidade do Flagrante e da Prisão Cautelar: receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal (quem deixa de fazer incide em abuso de autoridade – art. 12 lei 13.689/19), bem assim o auto de prisão em flagrante para controle da legalidade da prisão, observando o art. 310, na nova redação: receber o APF, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro horas) após a realização da prisão, sob pena de punição § 3º, art. 310 c/c art. 9º, parágrafo único, incisos, da Lei 13.689/19), o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do conduzido, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público (desobedecida abuso de autoridade art. 15, parágrafo único, inciso II, Lei 13.689/19), e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; ou II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares da prisão, vedada a prisão de ofício (CPP, art. 311), ou, III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (vide art. 9º, Lei 13.689/19). O não recebimento do APF nas 24 horas a contar da prisão, implica em relaxamento da prisão ilegal (4º, do art. 310, CPP), apuração de responsabilidades, podendo-se decretar depois, nos autos, prisão preventiva. Se a investigação necessitar de mais de 15 dias para finalização, a prisão deverá ser relaxada (CPP, art. 3-B, § 2º) Anote-se que foi acolhida pela nova redação do art. 312 do CPP, no 2º, a necessidade de fundamentação concreta de fatos novos ou contemporâneos, vinculados ao processo, sendo abuso de autoridade a prisão desprovida de motivação e fundamentação adequadas, entendidas por não fundamentadas, na forma do art. 315, §2º, do CPP, as que se limitam a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar a sua relação com o caso concreto, empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso, invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão, não enfrenta os argumentos deduzidos, limita-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos e deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente sem apostar a distinção ou superação, conforme os fatos do caso (vide art. 9º, Lei 13.689/19). A prisão obrigatória em face da conduta (CPP, art. 310, §2º) viola a proporcionalidade conforme diversas decisões do STF, valendo citar a ADIN 3.112. No caso de pedido de prisão ou prorrogação, deverá ser garantido o contraditório em audiência pública e oral.

b) Controle das investigações e violação da duração razoável: A investigação criminal deve ser informada ao Juiz das Garantias, pouco importando se no âmbito do Ministério Público ou outra Instituição, devendo-se controlar os respectivos prazos (CPP, art. 3-B, IV c/c § 2º), requisição de documentos e andamento (CPP, art. 3-B, X), trancando investigações desprovidas de fundamentos (CPP, art. 3-B, IX).

c) Garantir os direitos do investigado e conduzidos: Além de observar pelos direitos do preso, inclusive podendo determinar seja trazido, a qualquer tempo, para esclarecimentos vinculados à violação de direitos, deve garantir acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos na investigação, salvo as diligências em andamento. Em caso de dúvidas, deve realizar o exame de sanidade mental (CPP, art. 3-B, XIII). Deverá vedar o uso da imagem do preso, até porque abuso de autoridade (art. 13, I e II, da Lei 13.689/19). Será competente para conhecer e julgar dos habeas corpus impetrados antes do recebimento da denúncia (ato também do Juiz das Garantias, inc. XIV).

d) Produzir antecipadamente provas: se houver necessidade de produção de provas, a requerimento das partes/jogadores, nunca de ofício, demonstrada a urgência, relevância e proporcionalidade, o ato pode ser realizado, garantido o contraditório e direito ao confronto, em decisão concretamente fundamentada (STJ, Súmula 455).

e) Analisar as cautelares probatórias: Cabe ao juiz das Garantias analisar os pedidos de (i) interceptação telefônica; (ii) afastamento dos sigilos (fiscal, bancário, de dados e telefônico); (iii) busca e apreensão domiciliar; (iv) acesso à informações sigilosas e outros meios de provas.

f) Homologar delação premiada e acordo de não persecução penal: Faremos uma coluna específica sobre o tema. Mas o que importa no momento é que será da competência do Juiz das Garantias quando formulada no decorrer da investigação. Teremos problemas de acomodação no caso do julgamento com foro de Prerrogativa de Função, mas nada que impeça a utilização da lógica de separação de funções.

g) Receber a denúncia: O Juiz das Garantias receberá a denúncia e determinará a citação do acusado, analisando a absolvição sumária. Superada esta fase, remetará ao juiz de Julgamento para realização de instrução e julgamento (CPP, art. 3º-B, XIV), art. 3º-C, §1º). A cisão aqui é funcional e serve para não contaminar os atos probatórios realizados oralmente das decisões antecedentes que embora possam ser revistas (CPP, art. 3º-B, §2º),

Por fim cabe dizer que a mentalidade inquisitória deve se opor ao cumprimento da Reforma. Antecipamos que a dificuldade logística não se sustenta. O argumento de que o juiz das garantias não é viável porque temos muitas comarcas com apenas um juiz é pueril. Na verdade, brota de bocas ingênuas, que ignoram as soluções (simples, inclusive) ou de gente que manipula o argumento, pois no fundo quer apenas manter hígida estrutura inquisitória, a aglutinação de poderes e o justicialismo (obvio que o juiz das garantias é uma tragédia para um juiz justiceiro…). E quais são as soluções?

  • Existem diversas comarcas com apenas um juiz, mas que já deveriam ter dois, dado o volume de processos criminais e cíveis (logo, faz uma distribuição cruzada). A reforma justifica a abertura de concursos que estão represados e são necessários. Não se faz uma reforma processual ampla e séria sem investimento. Mas não se preocupem, sigam lendo que vamos mostrar outras soluções sem precisar aumentar gastos…
  • Existem centenas de comarcas com apenas um juiz, mas com comarcas contíguas (as vezes a menos de 100 km) em que existem dois ou mais juízes, que poderiam atuar como juiz das garantias (inclusive online, inquérito eletrônico).
  • Em outros casos, existem comarcas contiguas com apenas um juiz, onde também poderia haver uma distribuição cruzada (inclusive com atuação online).
  • Em todos os casos, diante da ampla implementação dos processos e inquéritos eletrônicos, é possível criar centrais de inquéritos em comarcas maiores para atender as comarcas pequenas na mesma região.
  • Enfim, com o processo (e inquérito) eletrônicos, não interessa mais o lugar, o “onde”, mas apenas o “quando”, isto é, estar na mesma temporalidade. Ora sabemos todos nós desse novo referencial, basta ver que trabalhamos o tempo todo no virtual, com várias pessoas em tempo real e o que menos importa é “onde” se está. Eis um “novo” paradigma que na verdade já integra o nosso cotidiano há décadas.

Não estamos inventando a “roda”. As razões do veto ao § 1º, ao art. 3-B, sob o fundamento de que é possível o uso de videoconferência (STJ, RHC 77.580), bem demonstram que é possível a realização dos atos indicados na figura do Juiz das Garantias. Mas existem Tribunais que nem sequer fazem audiência de custódia, ainda. E quem não fizer custódia terá os conduzidos soltos por se tratar de prisão ilegal expressa, sendo ainda que os que não relaxarem a prisão devem responder por abuso de autoridade. Voltaremos ao tema, sublinhando, também, duas possíveis manipulações: a) criação de Varas Colegiadas que aparentemente superam o Juiz das Garantias, nos termos da redação dada ao art. 1º-A da Lei 12.694/12 pela reforma; b) a falácia da produção de provas em favor da defesa.

Pelo reduzido espaço antecipamos as primeiras impressões, já que estamos atualizando nossos livros: Direito Processual Penal (Saraiva, Aury) e Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos (EMAis, Alexandre). Achamos que estaríamos em férias. Pelo menos o livro segue em breve para gráfica. Mas ficamos felizes em parte porque mitigou-se um atraso histórico. As externalidades da promulgação ser verão em diversos processos, dentre eles o de Flávio Bolsonaro, porque o Juiz atual não poderá julgar. Aliás, nas colunas próximas vamos sugerir um modelo de chamamento à ordem dos processos em andamento. 2020 nem começou e promete. Feliz ano novo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!