Direito do Agronegócio

A reforma tributária e o diálogo com o agronegócio

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

27 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Para a coluna desta semana, diante das discussões existentes quanto à “Reforma Tributária”, independentemente de qualquer juízo de valor a respeito da sua eficiência ou constitucionalidade, chegou o momento de apresentar algumas ponderações em relação ao seu diálogo com a tributação no agronegócio.

Não há dúvida de que o sistema tributário atual merece reflexão e alteração, pois, caminha em sentido inverso dos demais países desenvolvidos ou em desenvolvimento.

O Brasil, do ponto de vista tributário, mais do que possuir uma alta carga tributária, que permeia em torno de 32,6% do PIB, sofre de inúmeros vícios ou pontos negativos, entre eles: (i) – possui alta quantidade de tributos; (ii) – inúmeras obrigações acessórias que implicam em altos custos de conformidade; (iii) – complexidade no cumprimento de tais imposições, gerando um alto grau de litigiosidade; (iv) – tributos com distorções de cumulatividade além de incidência por dentro; (v) – problemas e restrições nos regimes não cumulativos, inclusive, com acúmulos de créditos sem utilização ou ressarcimento; (vi) – inúmeros benefícios e regimes especiais.

Os problemas e vícios acima descritos de forma exemplificativa acabam por gerar um alto custo com redução da produtividade e competividade, especialmente, no cenário internacional, além de dificultar investimentos, onerar exportações e gerar enorme insegurança jurídica por força do elevado grau de litigiosidade.

É certo a necessidade de mudanças em nossa legislação tributária a fim de tornar o sistema tributário menos complexo e oneroso, mais seguro e simples, sem deixar de atender ainda aspectos ligados à transparência, isonomia e justiça fiscal, mantendo sempre as garantias de proteção aos direitos dos contribuintes, seja por alterações por meio da reforma constitucional[1] ou infraconstitucional.

Dentro desta perspectiva, existem, principalmente, dois Projetos de Emenda à Constituição, ou seja, PECs 45 (Câmara dos Deputados) e 110 (Senado Federal).

A PEC 45/20019, que parte de trabalho realizado pelo Centro de Cidadania Fiscal – CCIF –[2], em linhas gerais, visa a extinção progressiva de 5 tributos (PIS/COFINS, IPI, ISS e ICMS) mediante a criação de um único tributo de base nacional denominado de IBS – imposto sobre bens e serviços -, semelhante ao IVA, cuja receita seria partilhada pela União, Estados e Municípios, tendo como principais características: a. incidência não-cumulativa sobre uma base ampla de bens e serviços; b. adoção do regime de crédito financeiro, pelo qual todo o imposto incidente em etapas anteriores sobre os bens e serviços utilizados na atividade empresarial gera crédito; c. desoneração completa das exportações e dos investimentos; d. incidência “por fora”, ou seja, sobre o preço dos bens e serviços sem imposto; e. devolução tempestiva de créditos acumulados, no prazo máximo de 60 dias; f. podendo alcançar 180 dias em caso de investigação sobre fraude na constituição dos créditos; g. alíquota única – em tese 25%; h. não utilização do imposto para fins extrafiscais; i. convivência com o Simples Nacional; j. convivência com um Imposto Seletivo Federal para produtos geradores de externalidades negativas;

Segundo proposta, o IBS seria, portanto, um imposto não-cumulativo, como um IVA, que incidiria, sem exceções ou regimes especiais, salvo exportações, em toda a cadeia econômica, quando da realização de operações onerosas com bens e serviços por pessoas jurídicas e físicas, por meio de uma alíquota única, havendo o direito ao crédito financeiro de todo imposto incidente para ser abatido, além de existir uma previsão expressa de ressarcimento do acumulado em prazo determinado.

Dentro destas características, o IBS seria disciplinado de forma nacional por meio de uma lei complementar, podendo estrutura-lo do seguinte modo: (i) – sujeito ativo: União em coordenação com Estados e Municípios.(ii)– sujeito passivo: pessoa física e jurídica; (iii) – critério material: realizar operação onerosa com transferência de bens e/ou serviços, cessão ou licenciamento de direitos de uso, importação de bens, serviços e direitos; (iv) – – base de cálculo: valor da operação com incidência por fora, podendo-se abater créditos da operação anterior (crédito financeiro), cuja escrituração seria centralizada; (v) – alíquota: única fixada pelo somatório de União, Estados e Municípios (25%); (vi) – não cumulatividade: permissão de créditos, os quais poderão ser restituídos no prazo de até 60 dias; (vii) – não será possível a concessão de incentivos fiscais.

Com relação à administração do imposto e contencioso, haveria uma centralização na União, coordenada em conjunto com Estados e Municípios, sendo o processo administrativo de primeira instância estadual e segunda instância nacional.

Por sua vez, a Emenda Constitucional 110/2019, tendo como inspiração o Projeto de Luiz Carlos Hauly, também busca uma simplificação de tributos, porém, criando a partir de um IBS extingue 9 tributos (PIS, COFINS, IPI, ICMS, ISS, IOF, CIDE, Salário-educação e CSLL), tendo por lei complementar a fixação de alíquotas que não seria única, mas múltiplas.

Fato incontestável é que tais alterações propostas causaram significativa mudança na estrutura tributária aplicável ao agronegócio, com nítida probabilidade de aumento da carta tributária.

O agronegócio, como é de conhecimento, representa parcela significativa das relações econômicas do Estado Brasileiro, chegando na atualidade ao patamar de 23,5% do PIB (CEPEA), de tal sorte que, incondicionalmente, qualquer alteração no sistema de tributação gerará significativos impactos no setor e, por conseguinte, na própria economia nacional, com reflexos até mesmo internacionais, em decorrência da forte participação dos produtos agropecuários no cenário global, pois o Brasil é grande exportador.

Do ponto de vista tributário, por força até mesmo do texto constitucional vigente[3], ele possui inúmeras peculiaridades que visam fomentar referido setor.

Portanto, embora não se possa afirmar que se trata privilégio[4], mas a simples concretização de políticas de incentivos fiscais que objetivam viabilizar economicamente o exercício desta atividade, dadas as peculiaridades e variantes que passam desde aspectos climáticos e meio ambiente (secas, chuvas, entre outras) como também de mercado como variações de preços mundiais e estoque, variações cambiais entre outros pontos, há inúmeros atos normativos de imunidade, isenção, suspensão, diferimento, créditos presumidos, entre outros.


 

Como forma de ilustrar, tais peculiaridades que podem ser alteradas, faremos breve descrição sem intuito de esgotar o tema.

 

Começando pelos tributos federais, há o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI -, previsto no art. 153, IV, da Constituição Federal.[5]

Neste setor, em geral, os produtos agropecuários, seja de pessoa jurídica ou física, não estão sujeitos à tributação, pois são “in natura” e, por conseguinte, não sofrem processo de industrialização, aspecto material deste imposto. São classificados, assim, pela TIPI como NT (“não tributados”)[6]. Por sua vez, os produtos derivados da agroindústria estão sujeitos à alíquota zero (0%)[7]. Da mesma forma, no tocante ao regime de créditos da não cumulatividade: (i) – as operações de venda de tais produtos agropecuários in natura não concedem direito ao crédito (regra geral) aos adquirentes; (ii) – as operações de venda de produtos com alíquota zero ou isenção, bem como nas exportações, há manutenção do crédito, que poderá ser utilizado para compensação de outros tributos federais ou ressarcimento em espécie (Lei n. 9.779/99, Art. 11; art. 153, § 3º, inciso III, da CF/88).

Temos ainda as contribuições para a seguridade social tributadas sobre o faturamento e/ou receita bruta, nos termos do art. 195, da Constituição Federal. Para este caso, podemos lembrar da COFINS[8], além do PIS/PASEP.[9]

Tais contribuições são incidentes sobre o faturamento e/ou receita buta auferida mensalmente por pessoas jurídicas, havendo ainda, no caso do regime não cumulativo, que é a regra, a possibilidade de abatimento de créditos.

Por um lado, dentro da sistemática aplicável a todo e qualquer contribuinte do PIS e COFINS, o agronegócio possui aspectos específicos na forma de apuração e tributação no regime não cumulativo, uma vez que, em geral: (i) – boa parte dos custos, despesas e dispêndios são de pessoa física e sem tributação, não gerando crédito pela regra geral da não cumulatividade, embora existem custo tributário agregado a estes (“resíduos tributários da cadeia”); (ii) – mesmo as hipóteses que permitem a geração de crédito, dada a peculiaridade do setor, há inúmeras controvérsias e questionamentos.

Juntamente com tais aspectos, o PIS e a COFINS no agronegócio possui inúmeras leis específicas, as quais concedem diversos tipos de tratamentos tributários: (i) – operações com alíquota zero para diversos produtos (exemplo, art. 1º, da Lei n. 10.925/2004), com a possibilidade na hipótese de regime não cumulativo da manutenção do crédito para abatimento de tais contribuições ou mesmo pedido de compensação ou ressarcimento; (ii) – venda com suspensão dos tributos para bens de origem vegetal ou animal destinados como insumo para produção diversos itens para alimentação humana ou animal (art. 9º, da Lei n. 10.925/2004); (iii) – crédito presumido a ser utilizado com abatimento do PIS e COFINS, mas, excepcionalmente, para compensação ou ressarcimento, na hipótese de aquisição de bens de origem vegetal ou animal destinados como insumo para produção diversos itens para alimentação humana ou animal (art. 8º, da Lei n. 10.925/2004); (iv) – outras leis para determinados produtos como café, laranja, cana-de-açúcar, bovinos, suínos, aves, soja, entre outros com a possibilidade de venda com suspensão e créditos presumidos para abatimento de PIS e COFINS, ou mesmo ressarcimento ou compensação com outros tributos federais.

Além de tais créditos e exonerações, ainda temos a imunidade nas receitas de exportação (direta)[10] ou mesmo indireta, tratada como isenção.[11]

Saindo dos tributos federais, convém ainda lembrar do imposto estadual sobre circulação de bens e serviços – ICMS – previsto no art. 155, II, da Constituição Federal[12].

No caso do ICMS, embora exista uma Lei Complementar Nacional n. (Lei Kandir), cada Estado possui sua legislação, instituindo inclusive incentivos fiscais (diferimento, créditos presumidos, reduções de base de cálculo) e formas de tributação (por exemplo, regimes especiais) para produtos agropecuários ou de agroindústrias, sem contar hipótese de não incidência (imunidade – CF 155, § 2º, X, a).

De forma breve e exemplificativa podemos citar o Convênio ICMS 100/97[13], o qual dá o seguinte tratamento tributário aos principais insumos ligados ao setor, em especial, base de cálculo reduzidas, além de outras formas disciplinas em regulamento por meio de isenções (cesta básica) ou diferimento.

Lembramos, ainda, da imunidade nas exportações sobre mercadorias destinadas ao exterior (art. 155, § 2º, X, “a”, CF)[14].

Possível notar, assim, que, apesar das ponderações serem exemplificativas e não analisar toda a cadeia do setor, há inúmeras peculiaridades na forma de tributação, inclusive, do ponto de vista das exonerações tributarias visando o fomento de tais atividades de alta relevância economia, mas, sobretudo, humana e social.

Levando em consideração os projetos de reforma tributária e a instituição do Imposto sobre Bens e Serviços – IBS -, podemos notar que haveria uma mudança na sistemática de tributação do agronegócio.

Não há pretensão neste breve texto de concluir pela viabilidade ou mesmo inviabilidade, mas somente apontar algumas destas alterações e eventuais questões a serem enfrentadas, uma vez que o setor do agronegócio é relevante do ponto de vista econômico e social, tendo peculiaridades a serem observadas.

Entre as mudanças podemos apontar em especial: (i) – unificação de tributos federais e estadual (IPI, PIS/COFINS e ICMS) no IBS, diminuindo a complexidade da apuração e avaliação de incidências; (ii) – pessoa física produtora rural que, atualmente, não é contribuinte de alguns tributos (PIS/COFINS/IPI), ficará sujeita à tributação no IBS; (iii) – as operações de alíquota zero, suspensão, isenção, diferimento e redução da base de cálculo seriam extintas com a edição deste imposto.


 

Portanto, dentro deste diálogo é possível notar que o maior impacto estaria no fato de diversos incentivos e formas de tributação diferenciadas, especialmente, para PIS, COFINS e IPI, bem como ICMS, deixariam de existir e sofreriam a incidência com respectiva exigência de tributo, inclusive, para produtores rurais pessoas físicas, sem nenhuma diferenciação.

 

Portanto, neste ponto cabe reflexão, pois, embora a unificação seja positiva, a inserção de produtos e pessoas da cadeia do agronegócio nesta nova sistemática com tributação uniforme, como os demais setores, pode não ser um avanço positivo, sobretudo, pelo impacto que pode gerar pelas obrigações acessórias impostas e nova carga tributária.

Este aspecto, todavia, há de ser avaliado em conjunto com a não cumulatividade prevista, que permitirá créditos para abatimento de tal imposto nas operações e a possibilidade de ressarcimento em 60 dias no caso de acúmulo.

Apesar de ser uma forma de conceder uma neutralidade fiscal às operações no agronegócio, reduzindo o impacto tributário decorrente de uma tributação uniforme, diante da extinção de isenções, créditos presumidos, alíquotas zeros, entre outros, poderá afetar financeiramente o caixa de tais contribuintes no decorrer da cadeia, em especial, pelo fato de que tais atividades são sazonais (uma a duas safras ou mesmo após longo período coo café, eucalipto), tendo períodos antecipados de forte investimento e custos sem qualquer receita para abatimento dos créditos, sem contar, ainda, que, muitas vezes, quando da realização da operações esta será destinada à exportação.

Aliás, neste ponto, o IBS continua a manter a exoneração das exportações, com a possibilidade de manutenção e permissão para restituição dos valores em 60 dias. Importante, porém, para o setor que esta imunidade seja garantida expressamente inclusive nas exportações indiretas, que são a maioria no setor. Já com relação ao direito subjetivo de restituição em 60 dias do crédito, trata-se de medida imprescindível, mas que necessita de instrumentos jurídicos de cunho constitucional que garanta seu cumprimento, dado o histórico de mal pagador que o Poder Público possui, vaticinado em algumas ocasiões pelo Judiciário, sob pena de cair por terra a não cumulatividade proposta em referidas reformas.

Tais preocupações, inclusive, mediante tratamento diferenciado da tributação por lei complementar às atividades voltadas para o agronegócio, proteção na exoneração das exportações, bem como da cesta básica, entre outros aspectos, foram objeto de emenda pelo Deputado Sergio Souza.

Em verdade, um grande passo, mas, que, ainda, pode merecer estudos e ajustes.

Possível notar, portanto, que a reforma tributária proposta com a unificação de tributos mediante a criação do IBS, embora possa ter pontos positivos[15], não impede e impõe uma séria avaliação em face de seus impactos para o agronegócio, seja ponto de vista tributário, financeiro, econômico e social, a fim de que são sofra efeitos negativos decorrentes de eventuais alterações que se propõem, sobretudo, por ser tratar de um segmento de alta importância para a economia nacional e mundial, além de concretizar um dos maios relevantes direitos fundamentais ligados à dignidade da pessoa humana e vida, que é a alimentação.


[1] – Sobre o tema de reforma da Constituição: CALCINI, Fábio Pallaretti. Limites ao Poder de Reforma da Constituição. Campinas: Millennium, 2008.

[2] – Vide Nota Técnica n. 1 de agosto de 2017. http://www.ccif.com.br/wp-content/uploads/2017/08/NT-IBS-v1.1.pdf

[3] “Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: I – os instrumentos creditícios e fiscais”.

[4] CALCINI, Fábio Pallaretti. Tributação no Agronegócio não é privilégio. Coluna Direito do Agronegócio. CONJUR. https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio.

[5] CF/88 – Art. 153, inciso IV, §§ 1º e 3º; CTN Arts. 46 a 51; Legislação ordinária: Lei n. 4.504/64 (demais alterações legislativas); Legislação infralegal: Decreto n. 7212/2010 (RIPI); Tabela de Incidência do IPI – TIPI – Decreto n. 8.950/2016.

[6] V. por exemplo, Seção I e II da TIPI.

[7] V. por exemplo, Seção I e II da TIPI.

[8] Art. 195, I, alínea “a”, CF, Lei Complementar 70/91, Leis Ordinárias 9.718/98, 10.833/2003, entre outras.

[9] Art. 239, CF, LC 7/70; Leis ordinárias 9715/95, 9718/98 e 10.637/2002, entre outras.

[10] Art. 149, § 2º, CF; art. 5º e 6º, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003.

[11] Art. 5º e 6º, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003.

[12] Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir).

[13] Reduz a base de cálculo do ICMS nas saídas dos insumos agropecuários que especifica, e dá outras providências.”.

[14] CALCINI, Fábio Pallaretti. ICMS, PEC 37/2007 e o futuro das exportações no agronegócio.Coluna Direito do Agronegócio CONJUR. https://www.conjur.com.br/2018-fev-09/icms-pec-372007-futuro-exportacoes-agronegocio

[15] O que não significa que o caminho de uma reforma tributária infraconstitucional não seja uma também interessante em detrimento desta. Todavia, não é objeto de análise por não afetar, ainda, a tributação no agronegócio.

Autores

  • Brave

    é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

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