Opinião

STF deve proteger direitos do contribuinte em caso de ICMS na base de PIS e Cofins

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26 de dezembro de 2019, 7h02

Grande parte das empresas brasileiras vivem uma situação de expectativa e insegurança jurídica desde que o Supremo Tribunal Federal confirmou o seu entendimento pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins no julgamento do Recurso Extraordinário 574.076, e a União Federal apresentou embargos de declaração.

Com os seus embargos de declaração a União Federal visa reverter ou minimizar os efeitos da decisão proferida pelo STF, que finalizou uma discussão que tramitava havia décadas no Judiciário.

Entre os pedidos deduzidos pela União em seus aclaratórios, destaca-se o de modulação dos efeitos da decisão para que produza efeitos somente para fatos geradores ocorridos após o julgamento dos embargos de declaração. O objetivo é impedir que os contribuintes recuperem os indébitos tributários decorrente dos recolhimentos de PIS e Cofins indevidos, que fizeram no passado, devido à inclusão do ICMS em sua base de cálculo. Busca-se esvaziar a eficácia da decisão, permitindo à União que se locuplete de valores que indevidamente recebeu.

A União fundamenta o seu pedido de modulação nos argumentos de que teria havido mudança de entendimento jurisprudencial e, ainda, que o efeito retroativo da decisão teria sérios impactos nos cofres públicos.

Data vênia, ambos os argumentos não se sustentam quando analisados em face do que dispõe a legislação e, notadamente, nos posicionamentos anteriores do STF sobre o tema.

A possibilidade de modulação dos efeitos de decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo está prevista no artigo 27 da Lei 9.868/99, verbis:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

O artigo 27 da Lei 9.868/99 vincula a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão que julga inconstitucional determinada lei ou ato normativo à ponderação vinculada a “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. ”

A modulação dos efeitos, no controle de constitucionalidade, é instituto excepcional, que não pode ser utilizado de forma casuística, apenas com o objetivo de minimizar efeitos econômicos de normas ou atos inconstitucionais perpetrados pelo Poder Público.

Inclusive, no caso em questão, é falacioso o argumento de que haveria mudança de entendimento jurisprudencial, que teria surpreendido a União Federal e promovido mudança no sistema tributário.

A discussão sobre a inclusão do ICMS na base de cálculo do ICMS é antiga, e a União Federal sempre teve conhecimento da solidez da argumentação dos contribuintes. Já em 2006, o Pleno do STF, ao julgar o Recurso Extraordinário 240.785, sem repercussão geral, já tinha construído a maioria de seis votos pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na receita bruta tributável. Este julgamento não se encerrou, em 2006, devido à vista requerida pelo ministro Gilmar Mendes.

Com o retorno dos autos à pauta de julgamento, em 2014, confirmou-se o entendimento da corte. Mas como se tratava de processo sem repercussão geral reconhecida, outro recurso foi alçado para a análise do Pleno (RE 574.706), cujo julgamento em 15 de março de 2017 confirmou novamente o posicionamento do tribunal.

Qual a surpresa na reiteração do posicionamento da corte?

Claramente a União Federal adotou a postura de postergar ao máximo o efeito do reconhecimento da inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, continuando a recolher valores que sabidamente não lhe eram devidos. Provavelmente fazendo o cálculo de que um percentual dos contribuintes não iria buscar o reconhecimento do seu direito no Judiciário, mantendo os correspondentes valores indevidamente pagos nos cofres do Tesouro Nacional.

Tanto é essa a postura adotada pela União Federal que, mesmo após o julgamento do RE 574.706, a Receita Federal continua a exigir a inclusão de valores do ISSQN na base de cálculo do PIS e da COFINS, apesar de ser indiscutível que o mesmo entendimento se aplica ao imposto municipal, cuja discussão já tem repercussão geral reconhecida pela STF no RE 592.616 (Tema 118).

A respeito é sólida a jurisprudência dos tribunais, conforme exemplifica o entendimento já consolidado no Tribunal Regional Federal da 1ª Região de que:

5. Ademais, o egrégio Supremo Tribunal Federal, em julgamento submetido ao rito do art. 543-B do Código de Processo Civil de 1973, reafirmou que: “O ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS e da COFINS” (RE 574;706/PR, Relatora Ministra Carmen Lúcia, Plenário, 15/03/2017).

6. Igualmente indevida a inclusão do ISSQN na base de cálculo do PIS e da COFINS, vez que, sendo tributo devido em razão da prestação de serviço de qualquer natureza, quanto à composição da base de cálculo para as referidas contribuições, possui características idênticas ao ICMS, restando aplicável o mesmo entendimento firmado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal.” (Apelação/Remessa Necessária (1728) 1004147-40.2017.4.01.3800, 7ª Turma do TRF-1, julgamento em 27 de março de 2018.)

O mesmo entendimento tem sido sufragado em acórdão prolatados pelos outros Tribunais Regionais Federais.

Se a questão é evitar surpresas ou efeitos financeiros com pedidos de repetição de indébito, já não deveria a União Federal ter deixado de exigir a inclusão do ISSQN na base de cálculo do PIS e da Cofins? Parece-nos que sim.

O Supremo Tribunal Federal tem o papel de zelar pela eficácia e respeito ao texto constitucional, não podendo exercer competência de tal relevância com vistas a repercussões de caixa para os entes públicos, notadamente na seara tributária.

O dever de recolher tributos, inerente ao status de cidadania, tem como pressuposto inafastável de que o exercício do poder de tributar se dê nos estritos termos determinados pelo texto constitucional. Não é compatível com o sistema de garantias fundamentais dos contribuintes que o seu direito de recuperar valores indevidamente recolhidos aos cofres públicos, notadamente no caso de cobrança em desacordo com a Constituição, seja afastado ou reduzido com base em argumentos de conveniência de caixa do ente público.

Além disso, é imprescindível que o STF mantenha a coerência da sua jurisprudência, de forma que os jurisdicionados tenham não só os seus direitos garantidos, mas também a segurança jurídica decorrente da previsibilidade do posicionamento da Corte Maior.

A análise de decisões anteriores do STF, em casos tributários de relevante repercussão, demonstra que o tribunal, via de regra, não considera que impacto no caixa do ente tributante ou impacto orçamentário, configurem excepcional situação de interesse social ou segurança jurídica.

Por isso, não é possível a avaliação desta questão sem a correta a análise de precedentes do STF, no qual a corte enfrentou pleitos de modulação efetuados pela Fazenda Nacional com a dedução de argumentos análogos àqueles trazidos nos embargos de declaração pendentes de julgamento.

Paradigmático, nesse sentido, o que aconteceu no julgamento do Recurso Extraordinário 559.937, no qual se julgou inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e Cofins-Importação.

Também naquele caso a Fazenda Nacional requereu, em sustentação oral e depois em embargos de declaração, a modulação dos efeitos da decisão de forma prospectiva, para alcançar apenas as situações ocorridas após o julgamento. E fundamentou o seu pedido exclusivamente com base no impacto financeiro da decisão para a União Federal.

Arguiu o procurador da Fazenda Nacional:

Senhor presidente, com o devido respeito e acatamento, a Fazenda Nacional pede à corte a possibilidade de modulação dos efeitos deste julgamento, tendo em vista os valores que giram em torno de R$ 34 bilhões que atingirão os cofres da seguridade social.

Contudo tal requerimento foi indeferido de forma unânime pelos ministros, nos termos do voto do relator, ministro Dias Toffoli:

A pretendida modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade é, no entanto, medida extrema, que somente se justifica se estiver indicado e comprovado gravíssimo risco irreversível à ordem social. As razões recursais não contêm qualquer indicação concreta, nem específica, desse risco. A mera alegação de perda de arrecadação não é suficiente para comprovar a presença do excepcional interesse social a justificar a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade na forma pretendida. Note-se que modular os efeitos, no caso dos autos, importaria em negar o próprio direito ao contribuinte de repetir o indébito de valores que eventualmente tenham sido recolhidos.

Os ministros consideraram que “mera alegação de perda de arrecadação não é suficiente para comprovar a presença do excepcional interesse social a justificar a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade na forma pretendida”.

A mesma linha de entendimento foi utilizada, por exemplo, para se negar o pedido de modulação da decisão que julgou inconstitucional a sub-rogação do adquirente na obrigação de recolher a contribuição social incidente na receita da venda de bovinos, por produtores rurais pessoas físicas, nos autos do RE 363.852.

O posicionamento dos ministros naquele julgamento é bastante relevante pela profundidade com que analisaram o tema da modulação de efeitos de decisão que julga inconstitucional determinada incidência tributária.

O ministro Marco Aurélio Mello, com sabedoria, consignou: “Presidente, tenho me pronunciado, até em processos objetivos, quanto à necessidade de se adotar uma postura pedagógica, não se estimulando o cumprimento da Carta Magna. Tenho votado no sentido da eficácia da Lei Maior tal como se contém, independentemente da guarda – e se tem a guarda, e não a possibilidade de mitigação – atribuída ao Supremo. ”

O ministro Cezar Peluso, por sua vez, trouxe argumento que reconhece que o resguardo ao direito de repetição de indébito do contribuinte é elemento estrutural do sistema tributário: “Com o devido respeito aos votos divergentes, só quero dizer que essa generalização da modulação dos efeitos, em matéria tributária, na prática implica, pura e simplesmente, na abolição do instituto da repetição do indébito. Se, em todos os casos de decisão de inconstitucionalidade, em matéria tributária, o tribunal dispuser que só valerá daqui para a frente, a repetição de indébito tributário e a prescrição não servem de mais nada!”

Também merece destaque o posicionamento da ministra Cármen Lúcia: “ (…) a não ser em situações excepcionalíssimas, em que a execução do que nós decidimos gere [m]ais problemas sociais, principalmente, não econômicos ou financeiros, mas sociais, que realmente poderiam ensejar uma prática dessa natureza em caráter excepcionalíssimo, nós temos de manter até o que é pedagógico para os órgãos do Estado. Não se pode afrontar a Constituição, nem nós aqui, que nos submetemos à Constituição, nem o Congresso Nacional, nem o Poder Executivo. [Errando], eu pago na minha vida pessoal, e o Estado paga também quando ele erra. Então, não se pode fazer realmente disso uma prática comum”.

O atual presidente do STF, ministro Dias Toffoli, também reconheceu, naquela oportunidade, o descabimento da modulação, com argumentos que também se aplicam ao presente caso: “O tribunal, ao dar provimento ao recurso extraordinário, declarou essa norma inconstitucional e, evidentemente, isso vai gerar, e gera, direitos: aqueles que forma à Justiça e aqueles que eventualmente pretendam ir à Justiça futuramente. Não vejo como determinar a modulação de efeitos a fim de impedir que as pessoas busquem um direito reconhecido pela mais alta corte do país. ”

A modulação de efeitos, tal como pretendida pela União Federal, traz, na verdade, nefastos efeitos sociais, ao fragilizar a visão dos cidadãos da garantia constitucional de ter os seus direitos garantidos pelo Judiciário. Já que o seu direito à repetição de valores recolhidos em desacordo com a Constituição estará sendo impedido por exclusiva conveniência de caixa da União Federal.

Não se desconhece que o STF já efetuou a modulação de decisões em matéria tributária, mas não com a abrangência requerida, no presente caso, pela União.

No julgamento mais destacado em que houve modulação, nos autos do Recurso Extraordinário 556.664, que julgou com efeito ex nunc, inconstitucionais os artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, o STF, mesmo considerando haver situação excepcional de impacto e segurança jurídica, ao modular ressalvou o direito dos contribuintes que tinham ajuizado suas ações antes do julgamento do Pleno.

A confiança dos cidadãos e dos contribuintes na eficácia do texto constitucional não pode ser menosprezada, principalmente numa discussão tributária de tal magnitude, que por sua natureza paradigmática tem enorme caráter pedagógico e valorativo, no que se refere à eficácia do sistema jurídico.

Portanto, espera-se que o Pleno do Supremo Tribunal Federal mantenha a coerência no que se refere à salvaguarda dos direitos dos contribuintes, evitando que o instituto da modulação de efeitos seja deturpado, funcionando como válvula de escape para interesses financeiros do Poder Público.

A correta aplicação do artigo 27 da Lei 9.868/99 implica na negativa de qualquer modulação ao caso, já que tal providência é que atentaria às razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, trazidas como pressuposto pela norma.

Caso contrário, a confiança dos contribuintes estará sendo abalada e, ao mesmo tempo, estar-se-á estimulando a autoridades legislativas e tributárias a buscar o aumento de arrecadação com base em medidas inconstitucionais, com a expectativa de que, mesmo reconhecido o vício de validade, os valores indevidamente recolhidos possam continuar nos cofres públicos.

Autores

  • Brave

    é sócio do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogado, doutorando em Direito Público pela PUC/MG e mestre em Direito Tributário pela UFMG. Professor em cursos de pós-graduação do IBMEC, Faculdades Milton Campos e PUC/MG. Autor dos livros “O Dever Fundamental de Recolher Tributos no Estado Democrático de Direito” e “Estudos de Custeio Previdenciário”.

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