Retrospectiva 2019

O protagonismo do Supremo e a Constituição — uma retrospectiva de 2019

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25 de dezembro de 2019, 7h00

ConJur
Em constante evidência, o Supremo Tribunal Federal encerrou as suas atividades correspondentes ao ano de 2019.

Mantendo fortemente o seu protagonismo relativamente aos demais Poderes Públicos, o STF concluiu julgamentos envolvendo temas extremamente polêmicos e naturalmente relevantes, tanto do ponto de vista jurídico-constitucional, quanto sob a ótica política e social.

Aquele protagonismo decorre do fato de o Poder Legislativo ainda estar fragilizado política e socialmente e de modo especial, por ainda não corresponder de modo eficiente e eficaz às demandas “da maioria” que elegeu os seus membros, bem como ao seu significativo envolvimento em atos ilícitos em face da Administração Pública direta e indireta.

Ademais, a atual conjuntura de polarização ideológica tem provocado frequentes demandas de alguns partidos políticos (principalmente da oposição) acerca de questões “interna corporis”, as quais deveriam ser decididas no Parlamento e que acabam desembocando no Supremo, congestionando a pauta da Corte e contribuindo para a judicialização da política e em alguns casos, para a politização da justiça.   

Tais pressupostos permitem afirmar com certa segurança que o Poder Judiciário (leia-se STF) está cada vez mais forte e longe de ser um mero poder moderador, até porque, o Poder Executivo que historicamente, sempre foi determinante no Brasil encontra-se também vulnerável, fazendo com que o “terceiro gigante” de Mauro Cappelletti cresça ainda mais.

O crescimento da intervenção judiciária, tanto no Poder Legislativo, quanto no Poder Executivo, para além das causas de natureza política aqui elencadas decorre da necessidade de um controle efetivo e simultâneo da constitucionalidade das leis criadas pelo Poder Legislativo e da legalidade dos atos do Poder Executivo.

Constata-se igualmente, o inevitável aumento da responsabilidade da justiça constitucional para fazer face às demandas cada vez mais complexas a serem satisfeitas pelos Poderes Legislativo e Executivo, a partir do momento em que a sociedade civil brasileira despertou para a importância da sua participação política e tem acompanhado o desempenho daqueles Poderes, por meio de um constante controle da operacionalização de políticas públicas de seu interesse.

A repaginação do fenômeno da globalização, o avanço tecnológico e o crescimento econômico provocaram profundas mudanças nas relações das pessoas entre si, e, estes com o Estado.

A complexidade daquelas relações aliadas as suas crescentes demandas decorrentes daqueles acontecimentos aumentaram as pressões sobre o Governo (Poder Executivo, Legislativo e o próprio Judiciário), quando à satisfação de suas necessidades de saúde, educação e outras que finalmente foram assimiladas como os seus direitos fundamentais e que não estão sendo suficientemente satisfeitas pelo Poder Legislativo – responsável pela elaboração de projetos de leis – e Executivo – executor de políticas públicas.

Diante do atual contexto, o Poder Judiciário brasileiro se viu obrigado a participar desse processo, disponibilizando o acesso da população à justiça, para complementar as ações daqueles Poderes, especialmente, quanto ao alcance dos seus direitos fundamentais.

Partindo do pressuposto de que a atual conjuntura política demonstra que vários interesses estão em jogo e se enfrentando para aumentarem o seu poder, nada mais natural do que tais disputas cheguem ao Poder Judiciário para serem devidamente analisadas e julgadas pela sua mais alta instância.

Exemplos nesse sentido não faltam. Só para limitar aquela constatação, julgamentos recentes ratificam aquela assertiva sobre as decisões de prisão após o trânsito em julgado da sentença condenatória (ADC’s nº 43, 44 e 54 – controle abstrato de constitucionalidade), o compartilhamento de dados da Receita Federal e da Unidade de Inteligência Financeira sem prévia autorização judicial (RE-1055941 com repercussão geral reconhecida), além da obrigatoriedade da defesa de réus delatados apresentarem as suas alegações finais após as dos réus delatores, ainda sem a definição de parâmetros para a sua aplicação (HC-166373).

 

Aquele fortalecimento já vem crescendo desde 2018, com a decisão de restrição do foro por prerrogativa de função para crimes cometidos durante o mandato e em razão da função pública, no que se refere aos parlamentares federais (QO na AP-937) além do início do julgamento (2018) sobre a possibilidade de candidatura avulsa (sem partido) que será concluído muito provavelmente no primeiro semestre de 2020 (ARE-1.054.490)

Observe-se que aquelas decisões antecedem a pauta do Poder Legislativo sobre os mesmos temas ou ratificam a legislação já existente em razão de demandas judiciais ajuizadas pela defesa de réus com expressividade política ou econômica.

O tema do foro por prerrogativa de função está congelado na Câmara dos Deputados e a possibilidade de prisão após a condenação em segunda instância está sendo debatida imediatamente após a decisão do STF em ambas as Casas Legislativas, em razão das pressões de grande parte da sociedade civil.

Quanto à questão do compartilhamento de dados da Receita Federal, a Corte acabou corroborando o seu anterior reconhecimento da constitucionalidade dos artigos 5º e 6º, da Lei Complementar nº 105/2001.


 

No que diz respeito ao compartilhamento de dados da UIF (antigo COAF), a decisão foi ao encontro da Lei nº 9.613/1998.

 

Em ambos os casos, o STF desperdiçou o seu precioso tempo num julgamento, cujo desfecho seria óbvio do ponto de vista legal, uma vez que o Poder Legislativo já havia legislado sobre aqueles temas, além da jurisprudência da própria Corte.   

Com relação à ordem das alegações finais de réus delatados e réus delatores, o STF “legislou” sobre o tema, à revelia do Poder Legislativo, por meio da reinterpretação de dispositivo de processo penal aos moldes das alegações finais da acusação e defesa, criando assim, uma nova jurisprudência.

Por fim, em 2018, o Supremo iniciou o julgamento sobre a possibilidade de candidatura avulsa que no presente momento é objeto de debate em audiência pública de iniciativa do Ministro Relator Luís Roberto Barroso, pois o Inciso V do § 3º do artigo 14, da Constituição brasileira prevê claramente, que uma das condições de elegibilidade é a filiação partidária.

Ademais, a competência constitucional de modificar aquele entendimento é do Poder Legislativo. 

Conforme se pode depreender, tais temas foram ou estão em iminência de serem julgados pelo Supremo, antes de qualquer iniciativa ou agilização do debate e aprovação do Poder Legislativo competente para tal.

Trata-se, portanto, de uma anomalia institucional que vem ocorrendo com frequência e de forma constante no âmbito daqueles Poderes, provocando consequências jurídico-políticas negativas, tanto para o Poder Judiciário, quanto para o Poder Legislativo, independentemente do prevalecimento da “razão” ou da “vontade da maioria”, respectivamente.

Em síntese: o Supremo se antecipa ao Legislativo decidindo sobre temas inéditos ou ratificando legislação preexistente, em razão da incapacidade institucional daquele Poder em resolver as suas próprias questões, além das inúmeras demandas sociais não atendidas em tempo hábil e que se transformam em ações judiciais, provocando sobre ambos os aspectos, a judicialização da política

 

No primeiro caso “legislando” no lugar do Legislativo e adotando direta ou indiretamente um ativismo judicial, uma vez que as demandas reclamam a efetividade da sua jurisdição.

No segundo, debatendo sobre a legislação já consolidada, contribuindo para o congestionamento de seus processos, levando-se em conta a fila de ações constitucionais e demandas recursais à espera de julgamento.

Além daqueles temas aqui comentados, o STF julgou em 2019 outras demandas igualmente relevantes, tais como:

– a competência da Justiça Eleitoral para julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos – Inq-4.435 AgR quarto;

– a decisão[1] de que o registro de partido político na Justiça Eleitoral não pode ser suspenso automaticamente por falta de prestação de contas. Há que se instaurar procedimento e o seu registro só será suspenso após o trânsito em julgado da decisão, conforme Inciso III, do artigo 28, da Lei nº 9.096/1995 (Ref. na MC na ADI-6032).

– a responsabilidade objetiva do Estado por atos de tabeliões e com dever de regresso no caso de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa – RE-842846;

– o entendimento de que a expressão “procuradores” contida no inciso XI do artigo 37 compreende os procuradores municipais, cujo teto remuneratório é de 90,25% dos Ministros do STF – RE-663.696;

– as prerrogativas processuais dos entes públicos, tais como prazo recursal em dobro e intimação pessoal não se aplicam aos processos em sede de controle abstrato, mesmo na hipótese de interposição de recurso extraordinário – ADI-5.814 MC AgR-AgR – ARE-830.727 AgR;

– o MP é o órgão legitimado para promover a execução de pena de multa, perante a Vara de Execução Criminal, observado o procedimento descrito pelos artigos 164 e seguintes da Lei de Execução Penal – ADI-3.150 – AP-470- QO- décima segunda;

– a proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência – RE-1.054.110 – ADPF-449;

– é constitucional a norma estadual que estabeleça a obrigação de as empresas prestadoras de serviço de telefonia e internet informarem aos consumidores dados dos funcionários que executarão os serviços demandados em suas residências ou sedes – ADI-5.745;


 

– a lei não pode permitir a exposição de empregadas grávidas e lactantes a trabalho em condições insalubres – ADI-5.938;

 

– em regra, não se exige o status de militar como requisito de prosseguimento de ação penal que apura a prática de crime militar próprio – HC-137.741 AgR e AgR-segundo;

Um dos últimos julgamentos do STF foi a possibilidade de criminalização do não recolhimento do ICMS anteriormente declarado pelo contribuinte, sujeito passivo da obrigação tributária.

Já há maioria formada para ratificar a criminalização daquele tipo de conduta, como crime de “apropriação indébita tributária previsto no artigo 2º da Lei nº 8.137/1990.

Como as penas previstas são de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa, o agente poderá usufruir do instituto da transação penal ou da suspensão condicional do processo, além da substituição desse tipo de pena, por penas restritivas de direitos.

Por outro lado, o agente não será mais réu primário, na hipótese de reincidência.

A decisão da Corte valerá como “precedente jurisprudencial”, uma vez que remete a um recurso em habeas corpus (163334), no âmbito de um caso subjetivo, isto é, a um processo em particular, não tendo pois, efeito vinculante para os demais processos como ocorre em sede de controle abstrato de constitucionalidade (ADC’s, ADI’s ADPF’s).

Contudo, a “tese” do Ministro Relator Luís Roberto Barroso esclarece que, assim como o presente caso há que se provar o dolo, ou seja, a vontade do agente em não “recolher” o tributo descontado ou cobrado (conforme prevê a redação do artigo 2º da referida lei), pois não existe apropriação indébita “culposa”.

É importante destacar que o Presidente Dias Toffoli deu prioridade ao julgamento de processos ligados aos direitos fundamentais, tais como a dignidade humana traduzida na criminalização da homofobia, o Princípio de Presunção de Inocência concretizado na prisão somente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e o direito à privacidade e à intimidade relativizado com a decisão de compartilhamento de dados diante do cometimento de atos ilícitos em face da Administração Pública, além de outros aqui listados.

Da mesma forma, realizou-se o julgamento de vários temas de natureza institucional, processual e econômica que proporcionaram a finalização de vários processos outrora estagnados.

As considerações críticas expostas no presente artigo denunciam o fato inequívoco do fortalecimento do STF traduzido numa postura cada vez mais ativista, abandonando paulatinamente a figura do juiz escravo da lei de Voltaire ou a de que o juiz é a boca da lei de Montesquieu.

A autocontenção judicial está sendo substituída por um certo ativismo judicial, não necessariamente pejorativo a depender do tema julgado e que evidencia uma discreta transição do sistema jurídico brasileiro para um ponto de convergência entre o “civil law” e o “common law”, no que diz respeito à aceitação dos precedentes jurisprudenciais e o uso da interpretação teleológica como um dos métodos de integração de lacunas existentes na legislação ou mesmo na compreensão das normas- princípios, em que a redação de algumas delas é propositadamente ampla e aberta para que se possa lançar mão, não apenas dos vários métodos de interpretação, como também, dos precedentes jurisprudenciais e da realidade fática que deve servir de orientação para o jurista concretizar a Carta Magna e sobretudo promover a sua atualização, conforme afirma o conceituado jurista alemão Konrad Hesse.

O sistema jurídico “civil law” privilegia o rigoroso atendimento às leis, relativamente as demais fontes do direito, como os costumes e a jurisprudência.

Por sua vez, o sistema jurídico “common law” utiliza todas aquelas fontes e dessa forma acaba incentivando o chamado ativismo judicial, “por proporcionar a adaptação do direito diante de novas exigências sociais e de novas pautas axiológicas, em contraposição ao “passivismo”, que, guiado pelo propósito de respeitar as opções do legislador ou dos precedentes passados, conduziria a estratificação dos padrões de conduta normativamente consagrados”, afirma Ramos, em sua obra “Ativismo Judicial – Parâmetros Dogmáticos”. 

Se de um lado, as razões aqui expostas evidenciam o aumento da judicialização da política e a adoção de um certo ativismo judicial – conveniente ou não na atual conjuntura política e social, do outro demonstram cabalmente a tensão entre a “razão” e a “vontade da maioria”, as quais deverão ser ponderadas e decididas pela manutenção da independência e a necessidade de cooperação entre os Poderes Públicos como condição para a promoção de todas as faces do desenvolvimento de um Estado Democrático de Direito.

São as regras do jogo…

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