Conluio desfeito

Advocacia exalta 'juiz das garantias', enquanto magistratura se mostra receosa

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25 de dezembro de 2019, 12h58

O presidente Jair Bolsonaro sancionou ontem (24/12) a lei apelidada "pacote anticrime". Pelo menos no primeiro momento, o que mais chamou a atenção foi a confirmação da criação do juiz das garantias — usado em outros países, na instrução, para garantir o distanciamento na hora de julgar. A iniciativa é separar o juiz que se envolve na investigação do que vai, efetivamente, aferir a existência ou qualidade da prova e da acusação.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Presidente Jair Bolsonaro sancionou na noite de Natal lei que cria juiz de garantiaTânia Rêgo/Agência Brasil

Trata-se de uma nova divisão de trabalhos em um processo. Um juiz toma as medidas necessárias para a investigação criminal. Depois, outro magistrado recebe e a denúncia e, se for o caso, dá sentença. 

A medida desagrada o ministro da Justiça, Sergio Moro. Este, quando juiz, destacou-se na operação "lava jato" por atuar em todas as fases do processo. A advocacia celebra de forma quase unânime, enquanto a magistratura não parece contente. 

Visão da magistratura
Do lado dos juízes, a recepção parece não ser tão calorosa. Fernando Mendes, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), ressalta que a entidade era contrária à medida, mas que o importante é agora regulamentar. 

“Em relação ao juiz de garantias, tema mais polêmico do pacote, embora a posição da Ajufe fosse contrária ao instituto, uma vez incorporado ao Processo Penal pela Lei 13.964/19, o importante agora é a sua regulamentação. Ela terá de ser uniforme. Não faz sentido ter juiz de garantias apenas nas Capitais e para os crimes de colarinho branco. Se o instituto é importante, tem se ser aplicado para todos, seja nos processos da lava jato, seja nos processos de crimes comuns, que são milhares e que tramitam no interior do país e que precisam ter as mesmas garantias. A Justiça Federal terá de redesenhar a estrutura de sua competência penal para tornar isso possível e Ajufe vai colaborar nessa agenda", diz Mendes. 

A Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) divulgou nota se posicionando contra o juiz de garantia. A entidade acredita que a medida irá criar custos desnecessários. 

"A implementação do instituto “juiz de garantias” depende da criação e provimento de mais cargos na Magistratura, o que não pode ser feito em exíguos trinta dias, prazo da entrada em vigor da lei. A instituição do “juiz de garantias” demanda o provimento de, ao menos, mais um cargo de magistrado para cada comarca — isso pressupondo que um único magistrado seria suficiente para conduzir todas as investigações criminais afetas à competência daquela unidade judiciária, o que impacta de forma muito negativa todos os tribunais do País, estaduais e federais", diz a AMB.

Medida comemorada
Para o criminalista Pierpaolo Bottini, o instituto preserva a autonomia e independência do juiz. "Faz com que o juiz, que determina as medidas cautelares no momento da investigação, não seja o mesmo que julga. Isso é fundamental para consagrar o sistema processual acusatório em que o juiz é o mesmo destinatário das provas produzidas ou requeridas pelas partes".

Davi Tangerino, criminalista, vê neste quesito um dos únicos pontos positivos do que chama de "pacote populista" proposto por Moro. "A construção da narrativa da investigação, quando não unilateral, é preponderantemente da acusação. E o juiz se deixa perpassar por essa narrativa. É uma questão humana, não de má fé. O juízo de garantia nasce da singela constatação de que julgadores são humanos e que há arranjos mais eficientes para mitigar a inafastável condição humana da falibilidade", considera.

Na análise do criminalista Conrado Gontijo, o juiz de garantias é fundamental para a preservação da imparcialidade dos juízes no âmbito penal. Ele diz que o juiz vem sendo adotado cada vez mais sistemas jurídicos de nações desenvolvidas, por isso é "importante para legitimar a atuação do Poder Judiciário e assegurar o efetivo equilíbrio de forças na dinâmica processual".

Faz coro a Tangerino a advogada Daniella Meggiolaro. “Um dos pouquíssimos pontos positivos do pacote anti-crime foi acertadamente mantido pelo presidente. Uma grata surpresa, nesses tempos de flerte com o autoritarismo e retrocessos em termos de política criminal.”

O criminalista Fabrício de Oliveira Campos também comemora a medida, mas faz alguns alertas. "A inserção do juiz das garantias é um passo importante para o aprimoramento do Processo Penal, que passa também a incorporar de modo explícito a sistemática acusatória, acentuando e organizando os papéis separados de acusar e julgar. Entretanto, o fato do juiz das garantias ter sido extraído de um projeto de CPP concebido há bastante tempo e, portanto, um projeto que pensava em agregar todas as leis processuais, pode trazer percalços sistêmicos. Exemplo é a lei de interceptações telefônicas (Lei 9.296/96), que no art. 1º diz que o juiz que determina a interceptação deve ser o juiz da ação principal. Nesse ponto, há um risco sério de insegurança jurídica porque o texto da lei de interceptações telefônicas ainda está mantido", aponta.

"Outro problema do juiz das garantias é a possível concentração de poderes em fase pré-processual, com a criação de “super varas” ou, ainda pior, “super varas” exercendo meras funções de deferimento dos pedidos ministeriais. A criação de procedimentos que permitissem alguma rotatividade ou mesmo distribuição interna entre mais de um juiz das garantias poderia minimizar esse risco de que ele se torne mera extensão da atividade policial."

Fernando Augusto Fernandes, advogado,  vê como "um grande e importante passo para as garantias individuais no país, significando que o juiz que julgará a causa não pode ter participado das medidas na fase de investigação, como a prisão. Ao mesmo tempo foi uma enorme derrota para os juízes deixam a imparcialidade e passam a comandar operações e confabular com o acusador. Um claro recado ao Sergio Moro”. 

Para o advogado Antônio Sérgio de Moraes Pitombo, esta talvez seja a maior evolução do processo penal dos últimos tempos. "A manutenção do juiz de garantias mostra-se uma decisão corretíssima do Presidente da República, a qual garantirá mais controle quanto à imparcialidade na jurisdição e à admissibilidade de acusações."

O advogado Rodrigo Mudrovitsch entende que o instituto alinha a prática processual penal brasileira ao que já é feito em outros ordenamentos. "Não há qualquer correlação lógica entre impunidade e a criação do juiz de garantias e certamente haverá, a partir de agora, uma conformação institucional mais adequada para os direitos fundamentais do investigado no âmbito do processo penal."

Outros pontos 
Não foram só advogados que já expressaram contentamento com a medida. Marco Antonio Ferreira Lima, procurador de Justiça, afirma que o juiz de garantias é essencial. Mas também celebrou a consolidação da audiência de custódia com a lei. 

"A audiência de custódia é garantia do preso e da sociedade. Acaba com as afirmações muitas vezes infundadas de torturas ou de ilegalidade nas prisões. É também uma forma de se dar maior segurança ao devido processo legal. A identificação criminal há muito deveria já estar acompanhada da coleta dos dados genéticos. Outra questão importante é o acordo da não persecução penal. O Ministério Público assume as investigações e até o arquivamento do inquérito o que assegura a imparcialidade do juiz. E também na semelhança do “plain bargain” alivia o estado de questões menores que devem ser resolvida sem processo mas por meio de acordos especialmente nas questões patrimoniais e crimes não violentos", diz Lima.

Para André Luís Alves de Melo, promotor de justiça em Minas Gerais, o projeto pecou por não atuar em temas do cotidiano  como simplificar as intimações, ainda muito arcaicas. "Também não simplificou as audiências de instrução e que provocam prescrição em quase 70% dos processos . Uma novidade pouco comentada é a nova redação do artigo 28 do CPP. Mas, permaneceu a redação do Artigo  24 na qual se baseia o mito da obrigatoriedade da ação penal, embora fale em atribuição e não em obrigação". 

O criminalista Ticiano Figueiredo comemora a criação do juiz de garantias como um avanço que há muitos anos merecia o direito brasileiro. Mas lamenta o espírito geral da nova lei. 

"O projeto, lamentavelmente, recrudesce penas e hipóteses de prisão, praticamente retomando a época do encarceramento obrigatório. Já cansamos de ver que endurecimento de norma não é solução para o fim da violência (do contrário não existiria mais crime hediondo desde 1992, quando da criação da lei). Seguramente as entidades que zelam pelas garantias constitucionais estarão atentas e ajuizarão todas as ações necessárias para defesa dos direitos fundamentais. Resta agora a torcida para que esse protagonismo do punitivismo de um tempo da nossa pauta diária e o governo de atenção as pautas sociais, as quais, essas sim, teriam um verdadeiro e efetivo impacto na diminuição da violência na sociedade", afirma Figueiredo. 

Para o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay), a sanção do texto representou uma "derrota acachapante para o ministro Sergio Moro".  "O ministro teve o seu projeto, apresentado sem nenhuma discussão séria, quase completamente modificado. Na realidade, o projeto que foi apresentado e aprovado foi fruto do enorme esforço do grupo de trabalho criado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. O GT ouviu a sociedade e especialistas e trabalhou com o projeto antes apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes", afirma.  "A estratégia do político Moro, de dar a impressão de que perdeu pouco, foi desmascarada quando o próprio presidente da República não vetou o juiz de garantias."

O presidente do Instituto do Direito de Defesa, Hugo Leonardo, afirma que a principal evolução da nova legislação é o juiz de garantias. Como faz questão de ressaltar, tópico inserido pelo Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados. Mas foi crítico a quase todo o restante da lei. 

"Com tristeza observo que a audiência de custódia foi mantida apenas para as prisões em flagrante, afrontando dois tratados internacionais em vigor no Brasil, com eficácia supra legal e infraconstitucional. Há outros pontos ainda muito problemáticos, como o dobro do prazo para o RDD, medida que impõe tratamento cruel e viola as regras de Mandela. No mais, não se esconde a prioridade do Presidente da República em atender os interesses de policiais ao vetar, por exemplo, hipótese de qualificadora do homicídio. O texto final ainda padece de muitos vícios de constitucionalidade que deverão ser corrigidos pelo Supremo Tribunal Federal", diz Leonardo.
Trata-se de mais uma legislação aprovada sem que tenha se aproximado da finalidade de combater as causas do crime. O direito penal e processual penal mais uma vez sendo objeto de um fetichismo midiático.”

O advogado Mauricio Silva Leite comemora a chegada do juiz de garantias, mas critica o fato de que ficará a cargo dele o recebimento da denúncia. 

“A ideia de instituir-se um juiz de garantias exclusivamente para a fase de inquérito policial é positiva, pois conferirá maior independência ao magistrado responsável pela ação penal, já que este não terá qualquer vinculação com as eventuais medidas cautelares anteriores deferidas em desfavor do acusado e poderá, assim, decidir livremente quando instaurado o processo judicial. No entanto, a lei sancionada foi infeliz ao submeter o recebimento da denúncia ao juiz de garantias. Tal providência, quanto à análise dos requisitos legais exigíveis para a instauração válida da ação penal, deveria ter sido reservada ao magistrado destinatário do processo judicial, justamente porque será o responsável pelo feito e não terá vinculação com atos anteriores praticados. Com a sanção da nova lei, é fundamental que o Poder Judiciário se estruture para viabilizar o cumprimento das novas regras, uma vez que a intervenção do juiz nas investigações é fundamental para o controle da legalidade dos atos praticados na fase de inquérito policial", afirma Silva Leite. 

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