Contas à Vista

O Direito Financeiro em 2019: o Brasil em transe

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

24 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Para fazer um balanço do ano de 2019 e, ao mesmo tempo desejar aos caros leitores desta coluna, que dividido com Elida Graziane Pinto, um Feliz Natal e um excepcional 2020, me valho do título do filme de Glauber Rocha, Terra em Transe, de 1967. De fato, 2019 foi um ano em que o Direito Financeiro viveu um transe quase lisérgico, a partir das tentativas de mudança de paradigma que vêm sendo propostas. De um Estado Social busca-se chegar a um Estado Liberal, o que, além de indicar a adoção de padrões que já foram referência em algum momento do passado, vários são contrários à Constituição de 1988, que tem como norte o uso dos dinheiros públicos visando a redução das desigualdades sociais e regionais.

De um Estado organizado pela Constituição cuja preocupação é diretamente voltada ao bem estar coletivo, busca-se chegar a este mesmo lugar através do incremento da liberdade individual, através da bandeira do empreendedorismo individual, o que desloca o foco para o mercado, o que é positivo, porém com imensas dificuldades de implementação no Brasil em face da enorme desigualdade social. Quem, em sã consciência, acredita que nosso enorme exército de excluídos conseguirá ultrapassar as barreiras socioeconômicas e se tornar um empreendedor? Só se for para se tornar entregador de comida ou motorista ad hoc, via aplicativos que geram riqueza fora do Brasil. O país está melhorando para os poucos, dentre os 210 milhões de brasileiros, que estão acima desse nível de pobreza, o que pode ser visto nas lojas, aviões e restaurantes, mas isso não é para todos, o que se pode constatar com o incremento do número de pessoas que perambulam pelas ruas e dormem nas calçadas. Para estes, tudo indica que a rede de amparo social se esgarçou e se tornou mais uma promessa não realizada. Seguramente se ouvirá que a culpa é dessas pessoas que não se prepararam para ultrapassar estas barreiras socioeconômicas, mas, na verdade, mostra a falência das políticas anteriores, que também não conseguiram transformar o inegável potencial de riqueza econômica e humana que temos, em verdadeira riqueza para todos. Todavia, os erros do passado podem não estar sendo corrigidos, mas aprofundados com os novos rumos que estão sendo propostos. O tempo dirá se estes rumos são adequados, mesmo sem considerar a análise jurídica, usualmente tardia.

O ponto central dessa virada pode ser visto nas três Propostas de Emenda Constitucional apresentadas pelo Ministro Paulo Guedes, que solapa aspectos do federalismo fiscal e do financiamento dos direitos sociais, conforme apontado nas diversas colunas Contas a Vista deste ano. Espera-se redobrada atenção do Congresso Nacional em sua discussão, com os olhos voltados ao bem comum.

Para se ter uma ideia, a despeito de o STF ter decidido em janeiro ser inadequado incluir despesas com inativos dentro do gasto mínimo com educação (ADI 6129), isso só foi retirado das PECs do Guedes no último segundo. E mais, sob o discurso lógico e racional de melhor utilização dos recursos públicos, se quer colocar na mesma arena de disputa orçamentária as verbas para educação e saúde, unificando os pisos para tais gastos. Mais uma vez: quem, em sã consciência, conhece Estado ou Município em que a saúde e a educação públicas estejam em condições ideais? Ao colocar tais recursos em disputa veremos uma luta entre gladiadores maltrapilhos no Coliseu orçamentário.

Outro ponto importante é a tentativa de regular as renúncias fiscais, porém como o fazer de forma macroeconômica, tal como proposto no art. 167, XIV, da PEC 188? Um incentivo fiscal concedido gera um direito individual de gozo àquela empresa por prazo certo, então, como se pode reduzir tal benefício no curso da concessão? Isso foi esboçado pelo Planalto no art. 2º, do Decreto 9.682/19, regulamentando a Lei 13.799/19, que prorrogou os incentivos fiscais para as áreas da SUDAM e SUDENE nos primeiros dias do ano. Penso que haverá alguma dificuldade em sua concretização entre o macro e o microjurídico.

Busca-se também extinguir todos Fundos Especiais atualmente existentes, onde há muito dinheiro represado (R$ 219 bilhões, segundo a Justificativa da PEC 187), fruto do contingenciamento que vem sendo realizado pelos sucessivos governos, o qual foi utilizado para pagamento do serviço da dívida pública. Isso visa apenas regularizar o que já foi feito, através de um writ off dos valores contabilizados.

E por falar em Fundos, o destaque deste ano foi o torpedo (ADPF 568) dado pela Procuradoria Geral da República e pelo STF no pretendido Fundo do Deltan, no valor de R$ 2,5 bilhões, para gestão pela força tarefa de Curitiba.

A saída do governo em face da carência de dinheiro tem sido pela venda das joias da Coroa. Isso ocorre através da venda de ações das empresas estatais, como ocorreu com a TAG, na qual o STF decidiu que a exigência de autorização legislativa e de licitação não se aplica à alienação do controle das subsidiárias, (ADI 5624), sendo que dias após foram descobertos novos campos de gás em Sergipe. Ocorre também através da busca de alienação dos recursos naturais não renováveis, como o petróleo, cujo leilão foi um fiasco, com a venda para a Petrobrás, ou seja, uma privatização com recursos públicos. Seguramente novas propostas de alteração do marco regulatório do setor virão em 2020.

Outro caminho trilhado pelo governo em face da carência de recursos tem sido buscar represar gastos com servidores públicos, tendo sido frustrada a expectativa de solução jurisdicional através da ADI-MC 2.238. Isso motivou novo embate através das PECs 186 e 188, que aguardam deliberação parlamentar. Foi também modificada a fórmula de reajuste do salário mínimo, que passou a repor apenas a inflação, sem qualquer acréscimo – a seguir esta trilha, em breve o salário mínimo retornará aos 70 dólares, como em 2002.

Todavia, o governo marcou um ponto nesse embate sobre redução dos gastos com servidores públicos com a aprovação da Reforma da Previdência, bastante discutida desde o período Temer. O governo marcou um gol, a despeito da expectativa de poupança ter caído substancialmente, e de já ser prevista a necessidade de nova reforma em médio prazo.

Além disso, o governo não apresenta um norte claro na eleição de suas prioridades. Ao mesmo tempo em que promove a Reforma da Previdência, incentiva a aprovação da Reforma da Previdência Militar com parâmetros completamente distintos, o que, de certa forma, aponta para a existência de dois pesos e duas medidas na condução financeira. Este procedimento errático se vê no incentivo à construção de um novo autódromo no Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que é realizado um enorme contingenciamento de verbas para educação. Isso também ocorre na aprovação de um Fundo Eleitoral de R$ 2 bilhões para as eleições de 2020, ao mesmo tempo em é proposta a extinção de todos os Fundos (PEC 187).

Essa condução sem norte se acentua com as implicâncias governamentais, como se vê na abrupta extinção do seguro obrigatório DPVAT e no veto à participação do jornal Folha de São Paulo na licitação para o serviço de mailing público. Frases e ações polêmicas por parte do Poder Executivo não faltaram em 2019, inclusive com a tentativa de ampliação da falta de transparência governamental.

Por outro lado, a inação governamental e o discurso incisivo contra a preservação ambiental geraram enormes polêmicas, que resultaram na ampliação das queimadas da Amazônia, o repúdio ao financiamento de países estrangeiros – Fundo Amazônia, além de outros problemas como o das manchas de óleo que infestaram o litoral sem explicação plausível e sem ações governamentais efetivas para seu combate. Nesse passo se vê a invasão de territórios indígenas por garimpeiros, os quais, seguramente, não representam o setor mineral, que está ameaçado de ser financeiramente mais onerado, seja pela tributação das exportações, seja pelo aumento dos royalties.

Um capítulo muito discutido em 2019 foi o da corrupção, que tem aspectos importantes no âmbito do Direito Financeiro. Os efeitos econômicos dos acordos de leniência permanecem em aberto, não se sabendo ao certo como os contabilizar, como se vê nas disputas no CARF, além dos debates sobre quem deve presidi-los. Os julgamentos e rejulgamentos sobre a prisão em segunda instância, que teve o ex-presidente Lula no centro dos debates, também afetou as expectativas econômicas, tendo sido fortemente influenciado em todo este processo pelas informações da Vaza-Jato, promovidas pela Intercept Brasil, relatando as relações pouco ortodoxas entre o Ministério Público e o Poder Judiciário em todos os polêmicos processos conduzidos em Curitiba. Isso gerou um impacto econômico sem tamanho, como reconheceu o Ministro Toffoli e se vê na recuperação judicial de diversas empresas envolvidas, como a Odebrecht. Volta-se a discutir um plano de ação para o salvamento do projeto nacional de infraestrutura, título de um livro escrito em 2015 por Walfrido Jorge Warde Júnior, Gilberto Bercovici e José Francisco Siqueira Neto, que, infelizmente, não teve a repercussão necessária.

Ponto positivo: a queda da taxa pública de juros, embora ainda esteja em patamares estratosféricos, como se verifica no tabelamento dos juros do cheque especial em 8% ao mês. A situação fica kafkiana com a imposição de cobrança de 0,25% por mês para quem tem cheque especial com limite acima de R$ 500,00, mesmo que não o utilize. Não lhes parece estranho?

De todo modo, o Brasil continua endividado. A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) deve chegar ao fim deste ano a 80,8% do PIB e continuar subindo ano a ano até atingir o pico de 81,8% do PIB em 2022. Contudo, o que a União emprestou ao BNDES, pegou de volta antes do tempo, pois foram devolvidos R$ 40 bilhões ao Tesouro, o que gerou um considerável reforço de caixa.

No âmbito internacional destacam-se algumas notícias relevantes com impacto financeiro: O fim do mais longo shut down orçamentário dos Estados Unidos, e dois aspectos de impacto: o improvável impeachment de Trump, em face de sua maioria no Senado, embora o processo já tenha sido aberto pela Câmara e ele se tornado o primeiro presidente norte-americano a ser processado nesse sentido, e a guerra comercial travada entre aquele país e a China, com impactos em todo o mundo. E, finalmente, a novela do Brexit deve findar, após a esmagadora vitória de Boris Johnson nas eleições de dezembro.

O fato é que, depois de não ter sido aprovada nenhuma Emenda Constitucional em 2018, seis Emendas foram aprovadas em 2019, das quais se destacam: a 100, tornando obrigatória a execução da programação orçamentária das emendas parlamentares estaduais e reforçando o caráter impositivo do orçamento; a 102, sobre a divisão federativa dos royalties de petróleo, minério e energia hidroelétrica; a 103, com a Reforma da Previdência; e a 105, para autorizar a transferência de recursos federais aos entes subnacionais através de emendas ao projeto de lei orçamentária anual.

Essas Emendas Constitucionais aprovadas, bem como as propostas, acrescidas ao pano de fundo da tentativa de mudança de paradigma acima descrita, apontam para um Brasil ainda mais em transe no ano de 2020, como no filme de Glauber Rocha.

Ficarei muito feliz se estiver errado. Aguardemos.

PS: Embora a responsabilidade pelo texto seja minha, agradeço aos meus atuais e ex-orientados a colaboração na lembrança de diversos dos fatos acima narrados.

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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