Segunda Leitura

O Direito adota palavras adocicadas para dizer o amargo

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

22 de dezembro de 2019, 10h24

Spacca
De uns tempos para cá, passaram os profissionais do Direito a assumir um linguajar um tanto quanto estranho, passando a atribuir inusitados e caramelados nomes às condutas e às partes envolvidas nos processos. Vejamos alguns exemplos.

Ações propostas na esfera cível abandonam o clássico e objetivo contra (Fulano propõe esta ação contra Beltrano, porque …) e adotam um estranho “em face de”. Vai daí que ficamos a imaginar o autor na frente do réu, cara a cara, fazendo um pedido ao juiz.

José Maria da Costa abordou o assunto, registrando que o Código de Processo Civil utiliza a palavra em diversos artigos (arts.178, § 6º, II); art.178, § 6º, XI), 178, § 10, VI, 1.185, 1.307, 1.313, 1.318, 1.337 e 1.798) e, citando vários autores, evidencia a irrazoabilidade da inovação.i

No âmbito criminal não é raro que se utilize a mesma terminologia, muito embora o art. 43 seja explícito ao referir-se à palavra contra. Quando a denúncia era ofertada contra João porque causou lesões corporais em Paulo, qualquer pessoa da mais baixa instrução entendia que ele estava sendo processado por agressão. Mas agora, se a inicial for “em face de”, muitos não entenderão o que acontecerá com o agressor.

O mesmo se dá em ações judiciais de natureza diversa, onde, vez por outra, usa-se a expressão “em desfavor de”. Segundo o Dicionário informal, ela pode significar “Perda do favor de que se desfruta junto a alguém; desgraça; desdém, desprezo; apreciação desfavorável; desabono, descrédito, prejuízo”.ii Imagine-se a cobrança de uma execução fiscal com uma inicial que, quase a pedir desculpas por cobrar o devedor, afirma que o pedido é a seu desfavor. Como se houvesse ação contra alguém que fosse a favor. Não faz sentido.

A interdição, que significa proibir os atos da vida civil daqueles que não têm condições de administrar o seu patrimônio, passou a chamar-se pedido de tomada de decisão apoiada (art. 1.783-A do Código Civil, com a redação da Lei 13.146, de 2015), e o interdito passou a ser apoiado. É verdade que a lei citada inovou, dispondo sobre a hipótese de a pessoa eleger pelo menos duas pessoas idôneas para dar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil. Mas, verdade é da mesma forma, que o nome poderia ser interdição parcial e parcialmente interdito, com o que todos saberiam do que estariam tratando. Com o nome adotado de apoiado, só os especialistas da área de Direito de Família e Sucessões deterão o poder do conhecimento.

Nas ações penais, substitui-se aqui ou ali o velho e conhecido processo por persecução criminal. Será que o funcionário da farmácia da esquina entende o que é isto? Com certeza, não. No entanto, se é obrigação dele conhecer as leis brasileiras, da mesma forma tem o direito de entendê-las. E trocar uma palavra de uso comum por outra, cujo significado é difícil de difícil compreensão e não se encontra na maioria dos dicionários.iii

Ainda. Na área dos jovens que praticam atos previstos na legislação penal, reguladas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.609/90), passou a ser abandonado o nome claro e direto de infratores por jovens em conflito com a lei. Além disto, mesmo que preveja sanções por fatos infracionais (art. 112), que podem ir da advertência pelo furto de um chocolate na padaria até a internação pelo assassinato de pessoas, não usa a palavra condenado um só momento (vide artigos 187 e 190). Nem cria uma palavra substituta, como se a decisão judicial que determina a reprimenda seja um ato de caridade.

Bem, para que servem esses afagos que surgem aqui e ali de forma crescente? Melhoram a vida das pessoas? Fazem-nas felizes? Óbvio que não. São rótulos que em nada alteram a realidade.

Na verdade, eles não passam de versões mal direcionadas do politicamente correto, que, na essência, é o fato de alguém seguir as leis e princípios éticos, evitando, por exemplo, críticas à raça ou inclinação sexual de terceiros. O problema é que esse tipo de conduta tem ido além das propostas e alcançado situações extremas, como criticar, porque seria politicamente incorreto, um comediante que se atribuiu a sua condição de gordo.iv

Bom seria que todos os que se preocupam com a situação triste de pessoas em situação de dificuldade, procurassem, no limite de suas possibilidades, minorar o sofrimento dos menos afortunados. Neste passo, os que ocupam cargo público (v.g., magistrados, agentes do MP e outros) poderiam direcionar atitudes para que os carentes de saúde, patrimônio ou afeto, pudessem melhor viver em sociedade. Ir além do cumprimento do horário, usando o poder da melhor forma, ou seja, criando oportunidades aos que sofrem.

Na esfera privada, os cidadãos poderiam dedicar-se a serviços voluntários. Por exemplo, advogados poderiam dedicar horas da semana para o atendimento de familiares desses hipossuficientes. Empresários poderiam dar um voto de confiança a menores infratores, dando-lhes a oportunidade de trabalharem nos seus empreendimentos, ainda que isto possa representar um risco. E quem não tem meios de ajudar diretamente, pode, simplesmente, fazer doação a entidade de confiança que deles cuide. Por exemplo, são muitos os idosos senis, sem condições de cuidar de seus interesses, e que são recebidos por instituições (v.g., Sociedade São Vicente de Paula) que vivem às voltas com dificuldades financeiras.

Pois bem, problemas temos de sobra e soluções não virão da substituição de nomes caramelados por outros já utilizados e conhecidos, conduta esta que nada mais é do que uma ingênua e inútil mudança.

Em suma, os rótulos não alteram a essência. E o amor ao próximo se dá por ações concretas, quase sempre muito difíceis, e não pela adoção de um nome elegante. A personagem Julieta, na famosa obra de Shakespeare, “Romeu e Julieta”, diz a seu amado: “Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação, teria igual perfume”.


i Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Gramatigalhas/10,MI89842,91041-Em+face+de+ou+contra. Acesso em 21/122019.

ii Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/diferenca-entre/contra/desfavor/. Acesso em 20/12/2019.

iii Dicionário da Língua Portuguesa, comentado pelo prof. Pasquale Barueri: Golden Ed., 2009, p. 448.

iv Significado do politicamente correto. Disponível em: https://www.significados.com.br/politicamente-correto/. Acesso em 22/12/2019.

Autores

  • Brave

    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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