Opinião

Limites da caracterização de Ntep e seus efeitos no Fator Acidentário de Prevenção

Autor

  • Paulo Roberto Coimbra Silva

    é sócio do Coimbra Chaves & Batista Advogados professor associado de Direito Tributário e Financeiro da UFMG doutor e mestre em Direito Tributário pela UFMG e pós-graduado pela Harvard Law School.

21 de dezembro de 2019, 6h30

O cálculo do índice do Fator Acidentário de Prevenção (FAP) é objeto de frequentes controvérsias entre os contribuintes e o Fisco. Após a divulgação, no final do mês de setembro, do FAP a ser aplicado ao exercício de 2020, foi aberto prazo para sua contestação até 13 de dezembro[1]. O momento é oportuno para uma análise pormenorizada dos elementos que impactaram o cálculo do índice, a fim de que eventuais incorreções ou fatores controversos sejam questionados, inclusive judicialmente, conforme o caso.

A legislação autoriza que sejam caracterizados acidentes do trabalho por meio de Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (Ntep) a ser reconhecido (ou não) em perícia médica do Instituto Nacional de Seguridade Social, que deve identificar a relação porventura existente entre a moléstia ou acidente e a atividade da empresa na qual trabalha o segurado. Uma vez caracterizado o acidente do trabalho e concedido benefício previdenciário, haverá repercussão gravosa no índice do FAP e consequente aumento do custo previdenciário ao qual o contribuinte estará submetido, por meio da majoração da contribuição devida por Riscos Ambientais do Trabalho (RAT) a ser recolhida.

Nesse contexto, importa compreender quais são os limites para o estabelecimento de Ntep, identificando os seus fundamentos e finalidades, bem como as suas repercussões no cálculo do FAP.

Dentre os diversos direitos assegurados aos trabalhadores urbanos e rurais pela Constituição da República, destaca-se a garantia à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, nos termos do artigo 7º, inciso XXII, da Constituição[2].

Nesse contexto, o legislador buscou dar concretude ao mencionado direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio da Lei 8.213/91, que dispõe acerca dos Planos de Benefícios da Previdência Social, prevendo, em seu artigo 19, parágrafo 1º, a responsabilidade da empresa pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador. O mesmo dispositivo, em seu caput, conceituou o acidente do trabalho como aquele que “ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa (…), provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”.

A Lei 8.213/91 ainda prevê, em seu artigo 20, que são consideradas como acidente do trabalho (i) a doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, (ii) a doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação acima mencionada, e (iii) em caso excepcional, doença não incluída na relação retro mencionada, mas que resulta das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente.

A par do dever do empregador de comunicar quaisquer acidentes do trabalho à Previdência Social[3], a perícia médica do INSS poderá assentar a caracterização da natureza acidentária da incapacidade quando constatar ocorrência de Ntep entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação entre a atividade da empresa e a entidade mórbida motivadora da incapacidade elencada na Classificação Internacional de Doenças (CID), em conformidade com o artigo 21-A da Lei 8.213/91.

Nesse diapasão, foi estruturada a Lista C do Anexo II do Decreto 3.048/99, na qual são elencados os intervalos de códigos da CID em que se reconhece NTEP, em correlação com as classes de atividades indicadas em conformidade com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE).

Por outro lado, a instituição do FAP também foi uma das medidas pelas quais forneceu-se guarida ao direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho. A Exposição de Motivos da Medida Provisória 83/2002, convertida na Lei 10.666/2003, atual diploma normativo acerca do tema, esclarece que a flexibilização de alíquotas de contribuição em razão do desempenho dos contribuintes na prevenção dos acidentes de trabalho busca garantir que a empresa que assume o risco da atividade econômica seja responsabilizada pelas consequências das enfermidades contraídas e acidentes do trabalho sofridos pelos empregados. A medida também tem por objetivo o estímulo ao investimento em prevenção e melhoria das condições do ambiente de trabalho, mediante a redução, em até 50%, ou acréscimo, em até 100%, da alíquota do RAT.

O FAP é calculado com base no desempenho de cada estabelecimento na prevenção de acidentes de trabalho, apurado comparativamente com os demais contribuintes que desempenham a mesma atividade econômica, de modo que aqueles mais eficientes na prevenção dos acidentes tenham o índice menor do que os que demostraram menor eficiência e acumularam piores indicadores nas ocorrências de acidentes e doenças correlatas e decorrentes das atividades laborais de seus colaboradores.

A Lei 10.666/2003 determina que o cálculo do FAP – que impacta diretamente a alíquota RAT e, portanto, o custo previdenciário a que está submetido o contribuinte – deve ser realizado em conformidade com os índices de frequência, gravidade e onerosidade atribuídos a cada estabelecimento do contribuinte, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS)[4].

O índice é apurado anualmente considerando elementos fáticos (especialmente os acidentes de trabalho e benefícios previdenciários decorrentes de afastamentos) relativos aos dois anos anteriores àquele no qual o índice é divulgado, devendo ser aplicado no ano imediatamente subsequente.

O Decreto 3.048/99 prevê, em seu artigo 202-A, parágrafo 4º, inciso I, que a metodologia aprovada pelo CNPS levará em conta para o índice de frequência, os registros de acidentes e doenças do trabalho informados por meio de Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) e de benefícios acidentários estabelecidos por nexos técnicos pela perícia médica do INSS, ainda que sem CAT a eles vinculados. Identifica-se, aqui, a via pela qual o Ntep impacta o FAP e o custo previdenciário ao qual estão submetidos os empregadores.

Dados disponibilizados pela Secretaria de Previdência do Ministério da Economia[5] indicam o aumento de 148% na concessão de auxílios-doença de natureza acidentária desde a implementação do NTEP em 2007. Nota do coordenador-geral de Monitoramento dos Benefícios por Incapacidade do Ministério da Previdência Social, Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira, indica ser o Ntep um avanço no sentido da gestão de desempenho, que busca reconciliar os resultados acidentários e as políticas públicas e privadas de prevenção e assistência[6].

Não obstante, é de se questionar se o referido aumento exponencial da concessão de benefícios com base em Ntep é amparado por completa regularidade, com efetiva observância das condições legais para sua caracterização, das quais se tem notícia de frequente violação.

O ato de imputação do Ntep pela perícia médica do INSS é um ato administrativo vinculado, assim compreendido em razão de sua prática ser sujeita à observância de lei. Se presentes os elementos fáticos para o convencimento sobre o nexo, ele deve ser obrigatoriamente reconhecido. Se ausente algum elemento fático considerado essencial para a caracterização do nexo, ele não pode ser reconhecido.

Trata-se de ato declaratório que (i) produz efeitos de direito, (ii) provém de agente público em exercício de suas prerrogativas e múnus público, (iii) tem a finalidade de desencadear consequências jurídicas previstas em lei para lhe dar cumprimento e (iv) é sujeito a controle de legalidade interno (administrativamente) e externo (judicialmente).

Considera-se válido o ato administrativo que seja plenamente ajustado aos termos legais que lhe definem, em relação a todos os seus elementos, a saber, competência, forma, objeto, finalidade e motivação.

No caso do Ntep, a lei prevê como motivação necessária à sua imputação a existência de relação de causalidade entre o trabalho e o agravo sofrido pelo segurado. O artigo 337 do Decreto 3.048/99 é cirúrgico ao prever, em seu parágrafo 3º, o estabelecimento de NTEP nos casos dispostos na Lista C de seu Anexo II. Para as hipóteses ali previstas, há presunção relativa de correlação entre a atividade da empresa e a entidade mórbida causadora da incapacidade, somente superável por prova em sentido contrário.

Por outro lado, caso a atividade de determinada empresa não esteja prevista na referida Lista C, eventual caracterização de Ntep demandará investigação dos fatos e produção de provas específicas, por meio das quais se demonstre a efetiva existência de nexo entre o trabalho e agravo. Inexistindo respaldo fático probatório, padecerá de nulidade o ato administrativo de imputação de Ntep, em razão da violação da motivação exigida pela lei.

Para a validade do ato, destaca-se, ainda, a necessária observância dos elementos de competência e forma. O artigo 21-A da Lei 8.213/91, ao prever a possibilidade de ser instituído Ntep, indica a competência do perito médico, que deve atuar na forma prevista pela legislação aplicável.

Devendo a perícia ser obrigatoriamente realizada por um médico, cabe observar a regulamentação do Conselho Federal de Medicina (CFM), responsável por zelar pelo perfeito desempenho ético, prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente, nos termos da Lei 3.268/57. A Resolução 2.183/2018 do CFM[7], que trata do estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, prevê que o médico deverá considerar, além da anamnese, do exame clínico (físico e mental), de relatórios e dos exames complementares (estes últimos quando necessários), uma série de fatores como a história clínica e ocupacional, o estudo do local e da organização de trabalho e os dados epidemiológicos[8].

É de se atentar ao fato de que a análise circunstanciada é um dever funcional do profissional de medicina, sendo estes requisitos impostos pela resolução do CFM indicativos da forma por meio da qual o Ntep deverá ser estabelecido.

Em especial, o estudo do local e da organização do trabalho, mediante inspeção in loco[9], é fator essencial para comprovação do nexo entre o trabalho e o agravo. Ressalta-se ser este procedimento imprescindível sempre que o nexo causal não decorrer da presunção (relativa) (pré)estabelecida na Lista C do Anexo II do Decreto 3.048/99. A sua inobservância ou omissão, como se tem notícia de ocorrer frequentemente, macula o ato administrativo, importando em causa de nulidade e invalidando os seus efeitos jurídicos.

Com efeito, a caracterização de Ntep mediante inobservância dos requisitos legais representa majoração de tributação sem seus pressupostos válidos, não merecendo prosperar o impacto no cálculo do FAP e sua consequente e exponencial repercussão no valor a ser pago a título de contribuição por RAT.

Por essa razão, revela-se conveniente o acompanhamento pelos empregadores da concessão de cada benefício previdenciário, apresentando-se o requerimento (administrativa ou judicialmente) de afastamento do nexo nos casos de inexistência de correlação entre o trabalho e o agravo, especialmente naqueles casos (i) não contemplados na Lista C do Anexo II do Decreto 3.048/99 e (ii) cujo reconhecimento se dá por perícia médica não amparada por inspeção in loco das condições de trabalho, conforme assegurado ao empregador pelo artigo 21-A, parágrafo 2º, da Lei 8.213/91.

[1] O prazo original, que era até 30 de novembro de 2019, foi prorrogado até 13 de dezembro pela Portaria SEPRT 1.320/2019, publicada em 27/11. A despeito de ser ideal que o exame da questão seja realizado administrativamente, mormente em razão dos efeitos da contestação que acreditamos serem suspensivos da exigibilidade (vide este artigo), nada impede seja tal questionamento feito judicialmente, a posteriori, podendo abranger, inclusive, 8 anos passados.

[2] Artigo 7º: São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

[3] Confira-se artigos 22 e 23 da Lei 8.213/91.

[4] Confira-se a Resolução 1.329/2017 do CNPS.

[5] Confira-se em: http://www.previdencia.gov.br/saude-e-seguranca-do-trabalhador/politicas-de-prevencao/nexo-tecnico-epidemiologico-previdenciario-ntep/

[6] Confira-se em: http://sa.previdencia.gov.br/site/2015/05/O-final-de-uma-era-e-in%C3%ADcio-da-terceira-gera%C3%A7%C3%A3o-de-prote%C3%A7%C3%A3o-social-da-sa%C3%BAde-do-trabalhador-CGMBI-DPSSO-SPPS-MPS.pdf

[7] Artigo 2º: Para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, além da anamnese, do exame clínico (físico e mental), de relatórios e dos exames complementares, é dever do médico considerar:

I – a história clínica e ocupacional atual e pregressa, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal;

II – o estudo do local de trabalho;

III – o estudo da organização do trabalho;

IV – os dados epidemiológicos;

V – a literatura científica;

VI – a ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhadores expostos a riscos semelhantes;

VII – a identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros;

VIII – o depoimento e a experiência dos trabalhadores;

IX – os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde.

Parágrafo único. Ao médico assistente é vedado determinar nexo causal entre doença e trabalho sem observar o contido neste artigo e seus incisos.

[8] Neste sentido, pertinente é a ADI 3931, cujo julgamento foi iniciado recentemente, em 22/11/2019, e suspenso por pedido de destaque da ministra Cármen Lúcia. Entre outros questionamentos, o STF foi instado a se manifestar a respeito da imposição de dever de reconhecimento do nexo com base em estudo epidemiológico.

[9] Ressalte-se a previsão do artigo 357 do Decreto 3.048/99, acerca da possibilidade de realização de pesquisas externas para desempenho das perícias médicas, nos casos em que sejam necessárias (como no caso do Ntep) para se avaliar a concessão, manutenção e revisão de benefícios. Ainda, o Manual Técnico de Perícia Médica Previdenciária, elaborado pelo INSS, prevê a realização de pesquisa externa para inspecionar ambiente de trabalho nas empresas para caracterização do Nexo Técnico Previdenciário, a corroborar a supracitada exigência de que seja realizada a verificação in loco.

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    é sócio fundador do Coimbra & Chaves Advogados, professor associado de Direito Tributário e Financeiro da UFMG, doutor e mestre em Direito Tributário pela UFMG e pós-graduado pela Harvard Law School.

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