Observatório constitucional

STF protege gestantes e lactantes em face da reforma trabalhista

Autor

  • Christine Peter da Silva

    é doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília professora titular de Direito Constitucional do UniCeub-DF e secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral.

21 de dezembro de 2019, 8h00

O ano judiciário de 2019 não foi significativo para a coleção de precedentes constitucionais de proteção aos direitos fundamentais das mulheres, no Supremo Tribunal Federal. Mas um precedente destacou-se dentre os poucos que, de uma forma ou de outra, jogaram luzes para argumentos em direção a um constitucionalismo radical[1], ou seja, aquele em que todas as cidadãs e todos os cidadãos brasileiros realmente puderam ser contemplados pelas decisões de poder, especialmente pelas decisões de cúpula dos poderes da República.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.938[2], questionava-se ponto da reforma trabalhista que admitia a possibilidade de trabalhadoras grávidas e lactantes desempenharem atividades em locais insalubres, salvo determinadas condições específicas. Foi uma decisão que, contrariando as demais decisões sobre a reforma trabalhista, o argumento central que prevaleceu foi o da proteção à mulher, à maternidade, e à criança, concretizando uma vontade constituinte expressamente registrada no texto constitucional de 1988.

A proteção à mulher e à maternidade foram objeto de debates perante o plenário da Suprema Corte que deliberou pela inconstitucionalidade da norma que admitia o trabalho da mulher gestante e lactante em ambiente insalubre, reafirmando que “A proteção à maternidade e a integral proteção à criança são direitos irrenunciáveis e não podem ser afastados pelo desconhecimento, impossibilidade ou a própria negligência da gestante ou lactante em apresentar um atestado médico, sob pena de prejudicá-la e prejudicar o recém-nascido.”

Registre-se que as autoras as quais defendem a perspectiva de gênero como fundamento de uma hermenêutica de integração das mulheres aos debates constitucionais do passado, do presente e do futuro são adeptas de um movimento que aos poucos vem se consolidando com o nome de constitucionalismo feminista[3]. Trata-se de movimento mundial, ainda em construção, mas que já pode ser percebido com clareza, de forma mais ou menos intensa, a depender dos países e de suas culturas.

O constitucionalismo feminista pressupõe uma metódica que indica e dá destaque para aspectos que o Direito Constitucional dos últimos dois séculos acabou por sombrear; excluir; e, em situações-limite, até marginalizar. Cuida-se, outrossim, de um movimento que se agrega ao constitucionalismo inclusivo, ou seja, de um modo de investigar, criticar e indicar parâmetros para os problemas jurídico-constitucionais, a partir de uma visão plural, aberta e tolerante, a qual tem como vetor axiológico a igualdade como respeito à diferença.

Analisar e criticar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a partir de um olhar epistêmico que relaciona feminismo e constitucionalismo, ambos vetoriados pela onda humanista, terceira clivagem de observação dos direitos fundamentais, constitui um dos objetivos mais notórios das professoras e pesquisadoras brasileiras engajadas nesse movimento[4], que no Brasil está recebendo cada vez mais atenção.[5]

Considerando que uma das mais evidentes contribuições do constitucionalismo feminista tem sido a denúncia de que os paradigmas contemporâneos revelam-se inadequados e insuficientes para o século XXI, porque coloca apenas uma parcela da humanidade como referência de universalidade, é urgente a conscientização das cidadãs e dos cidadãos de que a igualdade somente poderá ser uma realidade diante do inexorável respeito ao outro e ao diferente.

Autoras como Beverley Baines, Daphne Barak-Erez, Débora Diniz, Donna Greschner e Nilda Garay sustentam teoricamente a proposta de teorias feministas, sendo sustentáculo e base do constitucionalismo feminista, o qual pode fornecer os parâmetros para uma análise feminista da jurisprudência constitucional, focando em precedentes que discutiram direitos fundamentais das mulheres.

A questão central que sustenta a análise e crítica de precedentes do Supremo Tribunal Federal, sob a perspectiva do constitucionalismo feminista, é sobre como estão referenciados os parâmetros da igualdade de gênero, sejam eles epistemológicos ou dogmáticos, nos discursos explícitos e implícitos das decisões do Supremo Tribunal Federal, que cuidaram de direitos fundamentais das mulheres.

Para isso, primeiramente, vou apresentar, sem ineditismo, mas para necessária consolidação, as premissas do constitucionalismo feminista, tanto no plano da epistemologia quanto da teoria constitucional, para, num segundo momento, analisar o precedente selecionado, em busca dos aspectos que foram, ou não foram, utilizados para a decisão entregue à sociedade brasileira em 2019.

Desafiada pela pergunta feita por Donna Greschner[6] ao questionar se as Constituições também são feitas para as mulheres, é possível perceber, sem muito esforço investigativo, que a resposta afirmativa, automática e solene, vai perdendo a sua força à medida em que os dados da comparação constitucional anunciam a participação das mulheres nos processos constituintes, nos parlamentos nacionais e nas supremas cortes dos diferentes períodos históricos e em diversos países.[7]

É preciso conscientizar-se de que a Constituição de cada país é também a Constituição constituída, feita e vivida por mulheres. Tal assertiva interpela ativistas, advogadas, juízas e acadêmicas para jogar luzes sobre o que está em jogo: não mais se as constituições podem ser para as mulheres, mas, antes, quando e como garantir que tais Cartas reconheçam e promovam os direitos das mulheres.

Esse é o desafio proposto, portanto, buscar no constitucionalismo feminista as ferramentas jurídicas necessárias para a construção de um Estado Democrático de Direito efetivamente igualitário e inclusivo, apto a lidar com uma dogmática constitucional axiologicamente comprometida com o princípio da igualdade como respeito ao outro e ao diferente.

A pergunta feita por Donna Greschner é intrigante e, ao mesmo tempo, preocupante: ‘as Constituições também são feitas para as mulheres?[8] A resposta afirmativa, automática e solene, vai ficando cada vez mais esmaecida, à medida em que a comparação constitucional anuncia os dados acerca da participação das mulheres nos processos constituintes, nos parlamentos nacionais e nas supremas cortes dos diversos países.[9]

É preciso conscientizar-se de que a Constituição que nós temos depende da Constituição que constituímos, da Constituição que fazemos e da Constituição que somos.[10] Tal assertiva interpela ativistas, advogadas, juízas e acadêmicas para unirem-se, cada vez mais, diante da imensa tarefa de jogar luzes sobre o que está em jogo: não podemos mais nos perguntar se as constituições podem ser para as mulheres, mas, antes, quando e como garantir que os textos constitucionais reconheçam e promovam os direitos das mulheres.

O feminismo cultural[11] indica uma ideologia da natureza ou essência feminina que busca deslocar a luta feminista para além dos ambientes estritamente politizados, ressaltando aspectos do feminino cotidiano como alternativas para a vida em sociedade. É uma corrente de pensamento, desenvolvida a partir de meados da década de 1970, que preconiza o lado emocional e intuitivo das mulheres como trunfos para a identificação e expressão do feminino em todos os ambientes habitados pelas mulheres, sejam eles públicos ou privados.

A ideia do coletivo feminino, concretizado em teorias feitas por mulheres e para mulheres, chamam a atenção para os valores femininos, apresentados como vias legítimas para as vivências na estrutura política e social. O feminismo cultural aponta a ética do cuidado, dos afetos e da fraternidade como alternativas aos paradigmas da competitividade, agressividade e individualismo. Mas, por razões óbvias, o feminismo cultural não se contém nisso.

Nesse contexto, exsurge como um desafio para todas as mulheres, mas especialmente para aquelas que atuam, mediata ou imediatamente, no cenário político-constitucional brasileiro, o de passarem a direcionar seus olhares, naturalmente vertidos à ética do homem, para a ética da mulher. Isso significa, já como um primeiro passo da metodologia aqui proposta, o hábito de perguntar-se onde estão, o que estão fazendo e qual a contribuição das mulheres em cada um dos espaços sociais e políticos.

A partir desse redirecionamento de olhares, o passo seguinte é o compartilhamento, em cada um dos círculos de atuação pessoal, social e política, das experiências das mulheres, com ênfase para aquelas atuações em que as mulheres são sujeitos e protagonistas das suas próprias experiências constitucionais.

A Constituição, vista sob a perspectiva da hermenêutica constitucional feminina e feminista, é um texto normativo complexo, plural e aberto, o qual apesar de não guardar racionalidade cartesiana estrita, em seu conjunto, apresenta-se como um todo sistematicamente coordenado para permitir convivência e acomodações necessárias para a harmonia entre suas partes contraditórias.[12]

Daí porque, na ética da mulher, a complexidade, a pluralidade e a abertura do texto constitucional não são desafios indesejáveis, nem intransponíveis, mas, sim, elementos naturais de um corpo que só se revela, sempre provisória e parcialmente, quando concretizado em suas múltiplas dimensões. [13]

A República, analisada sob a perspectiva feminina, é um atributo da organização política sustentado por três pilares fundamentais: efemeridade, aleatoriedade e responsabilidade. O devir é a regra histórica mais óbvia, de modo que o exercício do poder não pode contrariar essa expectativa tão natural, quanto desejável, em uma sociedade culturalmente republicana.

A igualdade de chances impõe o alcance da lógica da aleatoriedade, pois não pode haver pré-concepções, nem pré-compreensões, nas escolhas republicanas. Por fim, a regra de causas e efeitos impõe que para toda ação republicana esteja prevista uma reação igual e proporcional, o que, na teoria constitucional, ganhou a alcunha de responsabilidade.

Por Federação, na visão da hermenêutica constitucional feminina, entenda-se o pacto firmado com alicerce na cooperação para o enfrentamento dos desafios comuns. Não é possível conceber o federalismo sem o compartilhamento, sempre tenso e conflituoso, de poder. Porém, também não há fórmula mais adequada para enfrentar os problemas do federalismo do que a partilha cooperativa – concorrente, subsidiária ou solidária, de competências, deveres e obrigações constitucionalmente destinadas.

Também a Corte Constitucional, como uma instituição no feminino, é a pessoa jurídica do Estado Constitucional que reúne, no rol de suas competências, atribuições para resolver, sempre de forma definitiva, porém provisória, as contradições constitucionais, bem como para harmonizar paradoxos gerados pelas naturais tensões entre normas constitucionais construídas por diversos atores sociais.

Os problemas constitucionais brasileiros estão a requerer e a merecer as opiniões das mulheres que vivem e pensam a Constituição e o Brasil em igualdade de condições com os homens. É, portanto, ‘de’ e ‘para’ as mulheres eleitoralistas, mulheres tributaristas, mulheres juslaboralistas, mulheres previdenciaristas, e todas as outras, que nós, mulheres constitucionalistas, estamos convidando para povoar fraternalmente os espaços institucionais de poder que nos são próprios, sejam eles ambientes públicos ou privados.

Assim, para que as Constituições sejam textos normativos também destinados às mulheres, é preciso trazer para o discurso constitucional elementos estranhos, e muitas vezes indesejáveis, ao constitucionalismo patriarcal construído nos dois últimos séculos. O caminho é longo e não sem dificuldades, mas já está caminhado por mulheres e homens conscientes de que é o único que verdadeiramente pode levar à democracia e à paz social.

A ementa da decisão proferida na ADI 5.938/DF tem como premissa normativa o artigo 6º da Constituição da República e afirma: “A Constituição Federal proclama importantes direitos em seu artigo 6º, entre eles a proteção à maternidade, que é a ratio para inúmeros outros direitos sociais instrumentais, tais como a licença-gestante e o direito à segurança no emprego, a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei, e redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.”

A decisão, uma das únicas proferidas pela Corte Suprema brasileira contra a reforma trabalhista, foi incisiva em deixar claro que “A proteção contra a exposição da gestante e lactante a atividades insalubres caracteriza-se como importante direito social instrumental protetivo tanto da mulher quanto da criança, tratando-se de normas de salvaguarda dos direitos sociais da mulher e de efetivação de integral proteção ao recém-nascido, possibilitando seu pleno desenvolvimento, de maneira harmônica, segura e sem riscos decorrentes da exposição a ambiente insalubre (CF, art. 227).”

Muito embora seja apenas uma, de mais de uma centena de decisões relevantes debatidas no Plenário do Supremo Tribunal Federal neste ano de 2019, é relevante dar o devido e merecido destaque aos argumentos que se perfilharam nos votos dos ministros e das ministras em busca da constitucionalmente positivada igualdade de gênero no Brasil – artigo 5º, I, CRFB.

Enquanto não for compreendido que a igualdade pressupõe respeito à diferença e que igualdade de gênero necessariamente implica constitucionalismo radical, estaremos muito distantes de uma democracia consolidada, mas ano a ano, de decisão em decisão, o constitucionalismo feminista vai escrevendo sua história também por meio de decisões constitucionais.

 

 

 

 


[1] Refiro-me à ideia de Vera Karan de Chueiri em: Constituição Radical – uma ideia e uma prática, in Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 58, p. 25-36, 2013.

[2] STF-ADI 5.938, Relator Ministro Alexandre de Moraes, Plenário, DJ 23.09.2019.

[3] Sobre o conceito de constitucionalismo feminista busco inspiração em: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism – Global Perspectives. New York : Cambridge University Press, 2012. BARAK-EREZ, Daphne; RUBIO-MARIN, Ruth. The gender of constitutional jurisprudence, Cambridge University Press, 2010.

[4] Aqui devo mencionar a doutrina colaborativa desenvolvida em dois volumes de obra que coordeno ao lado de Estefânia Queiroz Barboza e Melina Fachin: Constitucionalismo Feminista, vol. 1, Salvador: Editora Jus Podium, 2019; e Constitucionalismo Feminista, vol. 2, Salvador: Editora Jus Podium, 2020.

[5] Registro, por importante, a dissertação de mestrado de Cristina Telles: “Por um constitucionalismo feminista – reflexões sobre o direito à igualdade de gênero, dissertação de mestrado – Uerj; Orientadores: Daniel Sarmento e Jane Reis Pereira, 2016.

[6] GRESCHNER, Donna. “Can Constitutions be for Women too? , in Dawn Currie and B. Maclean, eds. The Administration of Justice, Saskatoon: University of Saskatchewan Social Research Unit, 1986, p. 20.

[7] Muitas pesquisas já tabularam estes dados. Por todas vide: http://maismulheresnopoderbrasil.com.br/ Acessado em 20.12.2019.

[8] GRESCHNER, Donna. “Can Constitutions be for Women too? , in Dawn Currie and B. Maclean, eds. The Administration of Justice, Saskatoon: University of Saskatchewan Social Research Unit, 1986, p. 20.

[9] Não há estudos comparativos com dados conclusivos, mas, por uma amostragem, vale a leitura de: BAINES, Beverley; RUBIO-MARIN, Ruth. The gender of constitutional jurisprudence, Cambridge University Press, 2010.

[10] PITKIN, Hanna Fenichel. The idea of Constitution apud BAINES, Beverley; RUBIO-MARIN, Ruth. Toward a Feminist Constitutional Agenda, in The gender of constitutional jurisprudence, Cambridge University Press, 2010. p. 2

[11] Sobre feminismo cultural vide: ALCOFF, Linda. Feminismo cultural vs. Post-estructuralismo: la crisis de identidade de la teoria feminista, in Revista Debats nº 76, p. 3-7.

[12] SILVA, Christine Oliveira Peter da. Por uma teoria feminina da Constituição, in LEITE, George S; NOVELINO, Marcelo; ROCHA, Lilian Rose Lemos. Liberdade e Fraternidade – a contribuição de Ayres Britto para o Direito. Salvador: Juspodium, 2017, p. 655-677.

[13] SILVA, Christine Oliveira Peter da. Substantivo feminino, Constituição significa mulheres no poder, in Revista Eletrônica Consultor Jurídico, junho de 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jun-24/observatorio-constitucional-substantivo-feminino-constituicao-significa-mulheres-poder Acessado em 10.09.2019.

 

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