Opinião

"Vaza jato" não gerou punições, mas advogados seguem sendo perseguidos

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21 de dezembro de 2019, 6h02

A advocacia é pedra no sapato de qualquer projeto autoritário. No apagar das luzes deste 2019, duas histórias chamam atenção para o desequilíbrio tirânico entre o exercício arbitrário do poder estatal e a resistência democrática da advocacia.

De um lado, no campo político onde a advocacia luta institucionalmente pelo Estado de Direito, nos deparamos com a notícia de que o Ministério Público Federal denunciou criminalmente e pediu o afastamento imediato do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil por conta de declarações públicas contra o ministro da Justiça Sergio Moro.

De outro lado, nas trincheiras onde a advocacia luta silenciosamente pelos direitos individuais, temos a notícia de que a justiça de Fernandópolis mandou um advogado para presídio de segurança máxima em razão do conteúdo de suas petições.

Há mais em comum nessas histórias do que a perseguição dos advogados por alegados “crimes contra a honra de autoridades do sistema de Justiça”, um rótulo que mal disfarça o evidente abuso de autoridade contra advogados que honrosamente buscam a justiça.

O que une verdadeiramente os dois casos é a desinibição autoritária dos atores do sistema penal, que nos dias de hoje se sentem tão à vontade para promover a barbárie contra o direito de defesa.

Se é assustador o relato do advogado Rodrigo Filgueira Queiroz, jogado em um camburão e trancafiado em presídio de segurança máxima por alegadamente caluniar um juiz de direito, não menos aterrorizante é constatar que o MPF pediu em juízo o afastamento do presidente da OAB por alegadamente caluniar um ministro de Estado.

No contexto do que o professor Pedro Serrano define como autoritarismo líquido, o poder penal torna-se instrumento de perseguição política e ideológica. 

Sob os holofotes midiáticos, o processo penal de exceção é manipulado como tática bélica para defenestrar o presidente da OAB em razão do conteúdo de suas entrevistas. O objetivo não é apurar uma conduta, mas promover a execração de um inimigo.

Nas sombras das injustiças cotidianas e silenciosas, o processo penal de exceção é arma para catrafilar um advogado em presídio de segurança máxima por conta do conteúdo de suas petições. O objetivo não é apurar uma conduta, mas promover a humilhação de um inimigo.

Assim caminha a justiça criminal brasileira, passos largos rumo a um autoritarismo cada vez mais explícito. Para não esquecer do papel da advocacia na época da ditadura militar, vale a lembrança de matéria da ConJur relatando que “o papel da advocacia na luta contra a ditadura não se resume ao posicionamento institucional da OAB. A atuação dos advogados de presos políticos foi, sem dúvida, fator essencial para garantir minimamente a liberdade, a integridade física e até mesmo a vida de muitas pessoas. São personagens, notáveis e anônimos, que marcam de forma definitiva a história da luta pela redemocratização. Nomes como Sobral Pinto e Heleno Fragoso, apenas para citar os mais famosos, se uniram a outros tantos para formar o que Modesto da Silveira chama, emocionado, de ‘um grande escritório da dignidade humana’”.

Na esfera pública, a perseguição deflagrada por membros do Ministério Público Federal contra o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil projeta institucionalmente as agressões rotineiras contra o direito de defesa e a advocacia brasileira.

Nada mais simbólico do que procuradores da República pedirem a um juiz federal o afastamento do presidente da entidade máxima de representação dos advogados, por conta de críticas a Sergio Moro. 

O mesmo Sergio Moro que, impunemente, atuou enquanto juiz federal em conluio com um grupo de procuradores da República, de modo a construírem uma farsa que contribuiu diretamente para o impeachment inconstitucional de uma presidenta eleita democraticamente, promoveu a prisão ilegal do maior líder político nacional e impactou decisivamente na eleição ilegítima de Jair Bolsonaro. 

O mesmo Jair Bolsonaro que, impunemente, declarou em entrevista de meses atrás que “se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”.

Na escala de preocupações do Ministério Público Federal, os melindres de Sergio Moro parecem estar acima da força normativa da Constituição, da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, das prerrogativas da advocacia e do decoro presidencial.

O desprezo cotidiano de alguns agentes do sistema de Justiça pelo direito de defesa é potencializado pelo silêncio condescendente das instituições a que estão vinculados. Cada medida abusiva não repreendida institucionalmente reverbera na crueldade naturalizada rotineiramente contra os porta-vozes dos direitos individuais.

Ao final de um ano em que a farsa da operação "lava jato" foi desvelada acima de qualquer suspeita pela "vaza jato", é emblemático que nenhum dos agentes públicos envolvidos nessa trama tenha sido punido e que a denúncia criminal com pedido de afastamento do cargo recaia injustamente sobre o representante máximo dos advogados brasileiros, por ter comparado Sergio Moro a um chefe de quadrilha.

No discurso, diz-se que o Direito Penal vale para todos. Na prática, o processo penal de exceção limita-se a perseguir alvos específicos, de acordo com os interesses dos soberanos do momento. Ainda distante e utópico, nosso amadurecimento democrático passará longe das soluções fáceis anunciadas pelo mercado penal.

Que 2020 venha iluminado pela canção de Belchior: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. E que a nossa voz, ecoando cada vez mais alto, jamais deixe de incomodar os poderosos de plantão, pois o silêncio da advocacia é o troféu do fanatismo punitivista contra a força civilizatória da Constituição.

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