Ambiente jurídico

Os 40 anos da Lei de Parcelamento do Solo

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

21 de dezembro de 2019, 14h42

Spacca
No dia 19 de dezembro a Lei 6.766/79, que dispôs sobre o parcelamento do solo e deu outras providências, completou 40 anos de vigência. Essa lei é o marco do início da construção da legislação urbanística brasileira, sendo ainda hoje uma das mais importantes normas do setor.

A partir da década de 1970 a problemática urbanística explodiu no país, tendo em vista a concentração populacional nas grandes cidades e a explosão do déficit de moradia, cenário que se mostrou um terreno fértil para a proliferação de invasões e de loteamentos clandestinos. Obviamente, isso demandava uma atuação diferenciada por parte do Poder Público, seja em termos administrativos ou legislativos, uma vez que o cenário só propendia a piorar com o passar do tempo – haja vista que o adensamento urbano era e é uma tendência mundial1.

Foi nesse contexto que surgiu a Lei Lehmann (Lei 6.766/79), cujo nome se deu em razão do seu proponente, o advogado e senador Otto Lehmann (ARENA/SP), a qual tinha como principal objetivo dispor sobre a organização do uso e do ordenamento do solo urbano. Demais, o Decreto-lei 58/37, que tratava do loteamento e da venda de terrenos para pagamento em prestações, tinha um enfoque muito mais contratual e registral, atendo-se pouco à discussão urbanística2.

O objetivo principal foi estabelecer as diretrizes para o parcelamento do solo urbano, o qual poderá se dar por meio de loteamento ou de desmembramento, sendo estes uma espécie da qual aquele é o gênero. Daí Leon Delácio de Oliveira e Silva, Leonardo Teles de Oliveira e Eduardo Teles de Oliveira defenderem que essa norma “estabelece normas gerais para o parcelamento do solo urbano, com vistas a regulamentar o processo de urbanização de uma gleba (área de terreno que ainda não foi dividida/parcelada), mediante sua divisão e redivisão em parcelas destinadas ao exercício das funções urbanísticas”3.

Nesse sentido, a própria lei conceituou o loteamento como “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes” e o parcelamento como “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes” (§§ 1º e 2º do art. 2º)4.

Em síntese, a norma versa sobre os requisitos urbanísticos para o loteamento, sobre o projeto de loteamento, sobre o projeto de desmembramento, sobre a aprovação do projeto de loteamento e desmembramento, sobre o registro do loteamento e desmembramento, sobre os contratos e sobre os crimes relacionados ao parcelamento irregular, afora as disposições preliminares e finais.

A ideia geral foi que o parcelamento é sempre uma atividade pública, mesmo quando executada pela iniciativa privada, daí a exigência da chancela do Poder Público e o estabelecimento de requisitos materiais e formais em lei. A Lei de Parcelamento do Solo abraçou a noção de questão urbanística como de ordem pública e interesse social, o que exige o controle direto do Poder Público, concepção essa que depois foi adotada pela Constituição Federal de 19885 e pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001)6.

O Ministério Público foi imbuído da obrigação de cobrar a legalidade do parcelamento do solo urbano, haja vista o que determinaram os arts. 19, § 2º, 23, § 2º e 38, §§ 2º e 3º, sem mencionar os tipos penais previstos nos arts. 50, 51 e 527. Isso antecipou a compreensão do Parquet como órgão responsável pela defesa dos interesses difusos e coletivos, algo que viria a se consolidar posteriormente com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81, art. 14, § 1º) e da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85).

Essa norma também é precursora do Direito Ambiental brasileiro, uma vez que já demonstrava preocupação com o assunto mesmo quando a problemática ambiental ainda não era levada em consideração no país8. Cabe destacar a proibição da edificação em áreas consideradas ecologicamente sensíveis, bem como o estabelecimento de uma margem mínima de proteção aos recursos hídricos e a proteção do patrimônio cultural:

Art. 3º. Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas ou de expansão urbana, assim definidas por lei municipal.

Parágrafo único – Não será permitido o parcelamento do solo:

I – em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas;

Il – em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados;

III – em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes;

IV – em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;

V – em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.

Art. 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:

(…)

III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica;

(…)

Art. 13. Caberão aos Estados o exame e a anuência prévia para a aprovação, pelos Municípios, de loteamento e desmembramento nas seguintes condições:

I – quando localizados em áreas de interesse especial, tais como as de proteção aos mananciais ou ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e arqueológico, assim definidas por legislação estadual ou federal;

(…)

Isso significa que a Lei Lehmann antecipou a ideia de indissociabilidade do meio ambiente urbano com o meio ambiente natural e cultural, entendimento que depois se faria predominante na doutrina, na jurisprudência e na legislação. Os crimes urbanísticos da lei, que antecederam os tipos penais da Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais (Lei 9.605/98), formam juntamente com estes uma espécie de microssistema penal ambiental9.

Mesmo sem o Município fazer parte do Pacto Federativo à época, a norma procurou respeitar a autonomia administrativa do ente local, cuja competência administrativa e legislativa a respeito do assunto foi assegurada (arts. 3º, caput, 10, 11, parágrafo único, 12, 16, 28 e 53). A tipificação de infrações administrativas ficou a cargo de cada Municipalidade, que deveria estabelecer modalidades e valores de sanções administrativas compatíveis com a sua realidade.

Juntamente com o Estatuto da Cidade, a Lei da Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012), o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015) e a Lei da Regularização Fundiária (Lei 13.465/2017), essa ainda é uma das normas mais importantes na área de Direito Urbanístico, tendo um caráter de aplicabilidade imediata maior do que o das demais normas citadas. É claro que houve alterações e atualizações legislativas ao longo do tempo, a exemplo da criação do loteamento de acesso controlado e do condomínio de lotes, criados pela Lei da Regularização Fundiária.

Entretanto, é preciso reconhecer que em 40 anos a sociedade se transformou de maneira significativa, e que os problemas urbanísticos devem ser enfrentados de maneira mais eficaz, holística e objetiva. É nesse contexto que agora desponta o debate sobre o Projeto de Lei de Responsabilidade Territorial Urbana (PL 3.057/2000), que tramita na Câmara dos Deputados sob o rito ordinário e que deverá, quando devidamente aprovado e sancionado, contribuir para o cumprimento das funções sociais das cidades brasileiras.

* Este trabalho é dedicado a Arícia Fernandes Correia e Leon Delácio de Oliveira e Silva, dois grandes estudiosos do Direito Urbanístico brasileiro.


1 O Governo Militar Brasileiro instituiu, por meio da Lei 14/1973, as primeiras Regiões Metropolitanas brasileiras, que no caso seriam São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza. Tais regiões “pegaram a primeira onda do regionalismo voltado para o planejamento das cidades que, à época da forte industrialização e do movimento migratório campo -> cidade, se tornaram verdadeiras metrópoles, demograficamente adensadas, porém, desprovidas da infraestrutura necessária a atender sua desenfreada expansão” (CORREIA, Arícia Fernandes; FARIAS, Talden. Governança metropolitana: desafio para a gestão pública fluminense. São Paulo: Revista de Direito Ambiental, 78, 2015, p. 456-457.

2 O Decreto-lei 58/37 segue em vigor no que diz respeito ao parcelamento do solo rural e à adjudicação compulsória, nesse caso tendo em vista as alterações trazidas aos arts. 16 e 22 pela Lei n. 6.016/73. Impende dizer que essa lacuna do decreto-lei é totalmente compreensível, uma vez que na época de sua edição o Brasil era um país eminentemente agrário.

3 SILVA, León Delácio de Oliveira e; OLIVEIRA, Leonardo Teles; OLIVEIRA, Eduardo Teles de. Direito urbanístico: resumo para concursos, vol. 19. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 69.

4 Todos os dispositivos da Lei 6.766/79 citados ao longo deste trabalho foram transcritos a partir de sua redação original.

5 A Política Urbana está disciplinada nos arts. 182 e 183 da Constituição Federal, o que corresponde ao Capítulo II do Título VII, o qual trata da Ordem Econômica e Financeira.

6 Art. 1º. Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei. Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

7 Em 2016 o STF condenou o então deputado federal Washington Reis (PMDB) a 7 anos, 2 meses e 15 dias de reclusão, afora o pagamento de multa de 67 salários mínimos, por crime contra a ordem urbanística (instalação de loteamento irregular). A 2ª Turma acatou por unanimidade o voto do Ministro Dias Tóffoli, relator da Ação Penal n. 618, segundo o qual o réu cometeu o crime previsto no art. 50 da Lei n. 6.766/79.

8 A Lei de Zoneamento Industrial nas Áreas Críticas de Poluição (Lei 6.803) é de 1980 e a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente é de 1981.

9 Os arts. 62, 63, 64 e 65 constituem a seção dos Crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural da Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE. Doutor em Direito da Cidade pela UERJ com estágio de doutoramento sanduíche junto à Universidade de Paris 1 - Pantheón-Sorbonne. Autor do livro "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019) e de outras obras na área.

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