Limite penal

Os nudges antiepistêmicos da delação premiada: entender para reformar

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

20 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Nas últimas semanas a notícia de aprovação do pacote anticrime pela Câmara dos Deputados circulou pelos principais jornais. A aprovação deveu-se, bem se sabe, a expressivos ajustes à proposta de autoria do Ministro Sérgio Moro. Com vistas à proteção de direitos fundamentais de investigados e réus, a negociação política resultou, ao fim e ao cabo, na “desconstrução do pacote Moro”1. Como já ressaltado, a proposta inicial “era a obra de um homem só, elaborada por ele, à la carte, conforme a sua microvisão de sistema penal”2 e, de fato, fez por merecer os ajustes agora presentes. Neste texto, vamos abordar os riscos epistêmicos relativos às declarações prestadas pelo delator potencial, pois, se bem é certo que podemos comemorar a exclusão do plea bargaining da proposta final, o horizonte das delações premiadas confirmou-se como uma realidade sem volta atrás. E embora se diga que, para que o conteúdo declarado pelo investigado tenha peso, será exigida a sua corroboração por outros e diversificados elementos probatórios, não devemos nos acostumar com o risco, sempre à espreita, de que se atribua injustificado peso a estes tais outros elementos probatórios e, via de consequência, a palavra de uma pessoa finalmente configure suficiente para mudar o curso de vidas inocentes.

Mesmo com ajustes no pacote aprovado, a delação continua a merecer a atenção dos estudiosos que se preocupam com o estímulo indevido que a instauração de uma investigação pode chegar a representar à determinação correta dos fatos. Declarações deliberadamente falsas podem ganhar as páginas dos anexos a partir de um empurrãozinho, um nudge3 antiepistêmico, que o sistema jurídico é capaz de gerar. Como se isso não bastasse, o problema das falsas declarações está longe de poder ser reduzido às mentiras intencionalmente armadas por aqueles que querem apontar algozes fictícios para lograr, assim, o desvio de atenção dos órgãos acusatórios. Porque há também os erros honestos que, por golpes do regular funcionamento da memória, são comissíveis por qualquer pessoa que tenha a genuína intenção de colaborar com o que sabe4. Outra vez, o desenho institucional relativo ao instituto pode estar tendente a funcionar como convite fácil a falsas hipóteses fáticas. Por essas razões, a preservação do instituto da delação premiada em nosso sistema jurídico faz necessário manter sob discussão os riscos epistêmicos5 que a atribuição de peso probatório à palavra de alguém sempre deve merecer.

I. A sobrevaloração da confissão
Assumir todos os delitos imputados a si configura o pontapé inicial de toda negociação que possa resultar em delação. “Colaborar” significa, em primeiro lugar, não resistir às alegações feitas pelo órgão acusatório contra si. Não é de hoje, contudo, que, com razão, questiona-se o potencial epistêmico das confissões. A confissão, entendida como declaração do sujeito de haver cometido um delito, seria instrumento de conhecimento do fato se e somente se a declaração corresponde ao que realmente ocorreu. Do contrário, tratar-se-ia de uma mera alegação daquele que pretende atingir resultados processuais que podem ser incompatíveis com a determinação adequada dos fatos. Ora, quando a afirmação de que se cometeu um delito pode fazer cessar a prisão provisória, as conduções coercitivas, o bloqueio a bens e as recorrentes ameaças de overcharging6, o preço do silêncio ganha contornos insuportáveis7. Dito de forma mais direta, a confissão de crimes não cometidos é sistematicamente propiciada pela falta de simetria do jogo processual como já sinalizado: "Na lógica da delação/colaboração premiada, por exemplo, a ideia é desarmar o oponente, transformá-lo física, psicológica, midiática e materialmente desamparado, tornando-o impotente às possibilidades defensivas de resistência. Com isso, quanto mais rápida e violenta for a investida, inclusive com ameaças a terceiros e familiares, melhores os resultados8.

Sendo assim, é questionável a voluntariedade de que depende o próprio valor epistêmico a ser atribuído à declaração de que se cometera um crime. O constrangimento joga por terra qualquer valor epistêmico que se possa inicialmente, por ingenuidade que seja, querer-se atribuir à confissão, pois o medo não é, nem nunca foi, instrumento adequado à correta determinação dos fatos9. Inegável, portanto, que o acusado se veja estimulado a tomar cursos de ação capazes de produzir desvios na pescaria probatória10 que lhe teve, até então, como alvo preferido. O cenário é propício à formulação de anexos detalhados o suficiente para aguçar a curiosidade da acusação de maneira que os métodos ocultos de investigação11 sejam redirecionados a outros sujeitos, que não o acusado.

Dessa maneira, a regulamentação da delação deve considerar a diferença entre mera coerência narrativa e cuidadosa determinação dos fatos. É preciso evitar produzir perversamente estímulos à primeira que nos distanciem de alcançar a segunda. Considerando a elevada coercitividade de que o órgão acusatório se serve para conseguir a confissão, a delação se afasta do potencial epistêmico desejável a todo e qualquer mecanismo de determinação dos fatos posto em uso em sistemas de justiça compromissados com a presunção de inocência e com um standard probatório penal que se diga elevado, pois a condenação conseguida através da sobrevaloração da confissão não alcança nem um, nem outro.

II. A porta aberta aos erros honestos
Para além do estímulo perverso que o sistema jurídico oferece a versões deliberadamente falsas no contexto das delações premiadas, há também o risco de reprodução dos chamados erros honestos. Os erros honestos são cometidos por aqueles que genuinamente acreditam numa informação que, no entanto, é falsa12. Assim, se por um lado a memória dos delatores configura-se num importante referencial para as investigações em face de futuros investigados, por outro, é imperioso considerar os fatores que podem contaminar a memória. A passagem do tempo é um desses fatores13, dado que muitas vezes os delatores devem preencher seus anexos com eventos de anos e anos atrás. A memória não funciona como uma máquina fotográfica e seu frágil conteúdo se degrada com transcurso temporal. A memória também não é um baú14 que armazena, intactos, os fatos aos quais o órgão acusatório entende relevantes.

Além do transcurso temporal, no âmbito das delações também preocupa o potencial sugestivo que a sua rotina pode apresentar: indicações para que determinados nomes sejam citados, o estímulo para dizer aquilo que os promotores querem escutar, podem produzir confusões entre fatos desejados e fatos efetivamente vividos. Diretivas de como o relato do delator deve ser produzido e integrado ao processo precisam ser formuladas tendo em vista um genuíno compromisso do processo penal em evitar condenações injustas, com respeito à presunção de inocência e a um standard probatório mais elevado15. A epistemologia e a psicologia do testemunho juntam-se ao garantismo processual penal numa dica de ouro: a forma de produção importa no resultado a ser produzido. Há um longo caminho regulamentatório a ser percorrido para que a delação possa, enfim, deixar de funcionar como um grande amontoado de nudges antiepistêmicos.


1. LOPES Jr., Aury. et al. A desconstrução do pacote Moro. In Estadão, acesso por: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-desconstrucao-do-pacote-moro/?fbclid=IwAR1zjxkbZ5HXBysa53n9lZdHy9N_0GUZcrdkvZYvTFJVkR98OuxLU2oL29A

2. Idem.

3. A noção de nudge (empurrãozinho) foi desenvolvida por Thaler e Sunstein em obra homônima e significa “qualquer fator que altere significativamente o comportamento de humanos” (p.17). Embora a obra se dedique prioritariamente a tratar de nudges positivos (que alteram o comportamento dos humanos para resultados positivos e desejáveis), é sempre possível que uma arquitetura equivocada funcione como um nudge negativo, propiciando comportamentos cujos resultados são indesejáveis. Nossa afirmação, neste artigo, é que a falta de regulamentação da colaboração até agora tem funcionado como um nudge negativo quanto aos compromissos epistêmicos, isto é, de correta determinação dos fatos. THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. “Nudge”. Trad. Ângelo Lessa. Rio de Janeiro: Objetiva. MORAIS DA ROSA, Alexandre; GOULART, Bianca Bez. O uso do nudge no comvencimento judicial penal. https://www.conjur.com.br/2018-jul-27/limite-penal-uso-nugde-convencimento-judicial-penal

4. Sobre o tema das falsas memórias, ver STEIN, Lilian Milnitsky et al. “Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas”. São Paulo: Artmed Ed. 2010.

5. Os riscos epistêmicos da delação premiada foi tema de TCC de Antonio Vieira no Master en Razonamiento Probatorio da Universitat de Girona. Sob a orientação de Jordi Ferrer Beltrán, Vieira escreveu trabalho que foi transformado no artigo Riesgos y controles epistémicos en la delación premiada: aportaciones a partir de la experiencia en Brasil, atualmente no prelo em obra coletiva intitulada “Del Derecho al razonamiento probatorio”, Jordi Ferrer Beltrán y Carmen Vázquez (orgs), da Marcial Pons, Espanha .

6. Boa definição de overcharging é oferecida por José Carlos Porciúncula: “No overcharging, o Ministério Público imputa ao sujeito crimes dos quais sabe que é inocente”. PORCIÚNCULA, José Carlos. Inconstitucionalidades e inconsistências dogmáticas do instituto da delação premiada (art.4o da Lei 12.850/13). In “Arquivos da Resistência: ensaios e anais do VII Seminário Nacional do IBADPP”, Diana Furtado Caldas, Gabriela Lima Andrade, Lucas Carapiá Rios (orgs.). Florianópolis: Tirant lo Blanch.

7. VIEIRA, A. “Riesgos y controles epistémicos en la delación premiada…”, pp. 12-13.

8. MORAIS DA ROSA, Alexandre; Bermudez, André Luiz. “Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos: táticas e estratégias do negócio jurídico”. 2a ed. Florianópolis: Emais editora e Livraria Jurídica. p. 87.

9. Não por outra razão, John Langbein traça paralelo entre o plea bargaining e a tortura. A parte de que adotem mecanismos mais ou menos severos de coerção, ambos têm o objetivo de que o acusado ceda e se declare culpado. LANGBEIN, J.H. “Tortura y plea bargaining” in (Maier y Bovino, coord.) El procedimiento abreviado, Buenos Aires, Editores del Puerto, 2001. No mesmo sentido e estendendo o paralelo da tortura à delação, VIERA, Antonio. “Riesgos y controles epistémicos en la delación premiada…”, p. 9. Além disso, sobre o questionável valor da confissão, Ibáñez. “Conferência: A valoração racional da prova testemunhal”, ocorrida na UFRJ, em 25/10/2019, no marco de colaboração entre o GREAT, o Matrizes do Processo Penal Brasileiro e do IDDD. A partir de 1h15min Perfecto Andrés Ibáñez expõe crítica ao apego que mesmo os sistemas jurídicos de corte acusatório ainda nutrem a respeito da confissão. Acesso por: https://www.youtube.com/watch?v=oBwSppIHs5w;

10. Para saber mais sobre o fenômeno da pescaria probatória (fishing expedition), ver SILVA, Viviane Ghizoni da; SILVA, Philipe Benoni Melo e; MORAIS DA ROSA, Alexandre. “Fishing expedition e encontro fortuito na busca e apreensão: um dilema oculto do processo penal”. Florianópolis: EMais, 2019.

11. PRADO, Geraldo. “Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos”. São Paulo: Marcial Pons. 2014.

12. RAMOS, Vitor de Paula. “A prova testemunhal: do subjetivismo ao objetivismo. Do isolamento científico ao diálogo com a psicologia e a epistemologia”. São Paulo: RT, 2019.

13. DIGES, Margarita. “Testigos, sospechosos y recuerdos falsos: estudios de psicología forense”. Madrid: Trotta, 2016.

14. A metáfora do baú é de Lilian Stein e foi usada em aula ministrada à Defensoria Pública da Bahia, no âmbito do curso “Provas: questões fundamentais”.

15. A preocupação com um desenho institucional com compromisso epistêmico também mereceu atenção de Caio Badaró em MASSENA, Caio Badaró. “A prova testemunhal no Processo Penal brasileiro: uma análise a partir da epistemologia e da psicologia do testemunho”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 156, 27, São Paulo: RT, 2019.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

  • é advogada, Doutora em Direito pela Universitat de Girona (ESP), professora de Processo Penal da Emerj e consultora do IDDD.

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