Opinião

STF: a "sonegação" do pequeno empresário e a "morte do vaqueiro"

Autores

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

  • Sérgio Ferraz

    é advogado parecerista procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ.

17 de dezembro de 2019, 18h28

Numa tarde bem tristonha/ Gado muge sem parar/ Lamentando seu vaqueiro/ Que não vem mais aboiar/ Não vem mais aboiar/ Tão dolente a cantar: Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, lengo, tengo/ Ei, gado, oi (…)”. Luiz Gonzaga compôs essa música, “A Morte do Vaqueiro”, em homenagem a seu primo Raimundo Jacó, brutalmente assassinado — Raimundo Jacó não teve defesa. Raimundo Jacó é o bom vaqueiro nordestino — “o seu nome é esquecido nas quebradas do sertão”.

Pois bem, caro leitor. O mundo empresarial não é repleto, apenas, de grandes devedores, que causam mal à sociedade, porque, deliberadamente, não pagam tributos. Os tais “sonegadores contumazes” existem, sempre existiram (…). O Estado, contudo, goza de um instrumento de cobrança por demais privilegiado, que tem se ampliado e, desafortunadamente, tem se valido da persecução criminal para atingir o que, por regra, deveria desenrolar-se na área cível (em sentido lato).

No mundo dos negócios, contudo, há vários “Raimundo Jacó”, os pequenos vaqueiros. São comerciantes simples, humildes e, quase sempre, sem formação alguma. Estão espalhados pelo país afora, em números incontáveis. Dados apontam que aproximadamente 99% (noventa e nove por cento!) dos 6,4 milhões de estabelecimentos comerciais no Brasil são compostos por micro ou pequenas empresas[1]. Adianto, desde já, que eles (os pequenos comerciantes) não sabem sequer o que é dolo, tampouco sonegação.

E onde entra a decisão do Supremo Tribunal Federal nesse contexto? A ver: o STF, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 163.334, firmou maioria para criminalizar quem, a despeito de declarar, não paga o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços — ICMS. Em síntese, e sem maiores extensões quanto ao conteúdo criminal em si, tem entendido o STF (o julgamento se encontra suspenso, face ao pedido de vista do ministro Dias Toffoli), confirmando decisão do estado de Santa Catarina, que declarar e não pagar o tributo é crime.

Tudo se calharia perfeito se válidos fossem, apenas e exclusivamente, os argumentos trazidos pelos ministros que formaram a dita maioria, destacadamente os fundamentos carreados por Sua Excelência, o ministro Barroso, relator do processo. Altercou o ministro “crimes tributários não são crimes de pouca importância, e o calote impede o país de "acudir as demandas da sociedade". Mas a vida real não é assim, tal qual caricaturado pelo ministro Barroso. Vejamos, pois, as diferenças, com base em um simplório exemplo.

José tem um pequeno comércio em um bairro pobre do Recife, capital do Pernambuco — na periferia mesmo. José mal sabe ler e escrever. José trabalha, no mercadinho, com a presença da esposa e de mais dois funcionários. Ele vende gás de cozinha, “secos e molhados”, uma ou outra bebida, dentre tantos outros gêneros. José vive, como todos no bairro, apavorado com a violência que domina sua região — quase todo dia há um crime (assalto a mão armada, furto, latrocínio, roubo etc. etc. etc.). José não passaria, jamais, ileso — um dia ele seria sorteado! E foi! Levaram, no final do expediente, todo o “apurado” do dia; arrombaram o comércio, destruíram o que havia pela frente e, para piorar, assassinaram, sem qualquer pejo, um de seus colaboradores, que, por um acaso, era casado e possuía dois filhos.

Ainda que o exemplo não seja o mais comum, não estamos aqui pintando um quadro inexistente. Ao menos quanto à violência em si, é mais que costumeiro! Isso é uma rotina cotidiana e sacramentada nos bairros mais pobres do Pernambuco, ou seja lá em que canto for desse país (o Brasil possui 17 das 50 cidades mais violentas do mundo; mais de um terço delas está em solo brasileiro)[2].

José foi o sorteado naquele dia. O que ele costumava vender lhe dava de lucro pouco ou mais para a própria sobrevivência — é, os tributos são altos, e ele, humildemente, costumava pagar. Mas aí sobreveio esse acontecimento, uma catástrofe, bem se diga, que ele (José) não poderia evitar; afinal, quem lhe garante a segurança é o Estado (que foi falho, bem falho, como é comum ocorrer); o mesmo Estado que pode lhe cobrar os tributos e, agora, levá-lo a sofrer as dolentes consequências de uma ação criminal.

José, fatalmente, teve de reconstruir seu negócio (não havia outra opção): pagamento de pedreiros, compra de material de construção, recomposição de todas as perdas e por aí se vai. Mas, para aumentar ainda mais o nó, ele, por compaixão mesmo (antes de sofrer as garras da Justiça do Trabalho — ela também é feroz!), resolveu dar a mão à viúva e filhos do seu falecido empregado. Detalhe para toda a história: os custos continuaram os mesmos; aliás, aumentaram. E daí vem uma indagação: o não pagamento de um ICMS, declarado, por José configura sonegação? Há dolo na conduta de um sujeito como este? Terá ele de suportar, além de tantas perdas, mais esta: uma incomportável persecução criminal por parte do Estado?

Retratamos aqui uma situação nada inusitada; desafortunadamente, ela é mais comum do que se imagina, alheia, contudo, a alguns pomposos Gabinetes dos Ministros da Suprema Corte. Há dolo, por parte de José, ao declarar e não pagar tributo? Claro que não! De regra, não! Todavia, para o STF, José participa de um “calote, que impede o país de acudir as demandas da sociedade” (trechos do voto do Ministro Barroso). Ora, Excelências, José (que faz parte dos 99% de micro e pequenos empresários) é bem mais vítima do calote do que propriamente autor.

A permanecer o entendimento do Supremo Tribunal Federal (quiçá mude — ainda há tempo de mudar), haverá a “morte do vaqueiro”. O Estado, decerto, arrecadará, sabe-se lá como; em um primeiro momento, só alegrias e as mais chamativas manchetes: “Procuradoria aumenta arrecadação em tanto (…)”. Ao depois, o vaqueiro, já combalido, vai morrendo e, com sua morte, “gado mugirá sem parar”. É a autofagia do sistema econômico, decorrente da tipificação criminal à brasileira, agora feita, desenhada e realizada sem deferência ao Legislativo. “É demais tanta dor/ A chorar com amor/ Tengo, lengo, tengo, lengo/  Ei, gado, oi/ E… Ei...”.

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    é Doutor em Direito Administrativo e Mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador de Estado e advogado militante. Sócio do Escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados.

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    é advogado, parecerista, procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro, professor titular aposentado da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ.

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