Opinião

Devedor contumaz deve ser o foco da criminalização da dívida de ICMS

Autores

  • Hamilton Dias de Souza

    é fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF) especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.

  • Hugo Funaro

    é advogado sócio do escritório Dias de Souza Advogados (SP) especialista em Direito Tributário pelo IBDT e mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP.

17 de dezembro de 2019, 16h03

O Supremo Tribunal Federal deverá retomar, nesta semana, o julgamento do Recurso em Habeas Corpus 163.334, no qual se discute se o não recolhimento de ICMS declarado pelo contribuinte caracteriza apropriação indébita.

Os votos proferidos até o momento, pela maioria dos ministros da corte, enquadram tal conduta no artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990, que inclui entre os crimes contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

A tese jurídica que está sendo formada quebra paradigmas, pois a doutrina majoritária sempre entendeu que o tipo penal compreende somente situações em que um terceiro é responsabilizado por descontar ou cobrar do contribuinte (aquele que realiza o fato gerador) o valor do tributo por este devido e repassá-lo aos cofres públicos, à semelhança do crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no artigo 168-A do Código Penal. Seria o caso, por exemplo, do banco que retém o IOF de seu cliente ou do comerciante que cobra de outro o valor do ICMS-ST relativo às operações que serão realizadas posteriormente. Não haveria crime, portanto, quando o próprio contribuinte deixasse de recolher ICMS por ele devido, já que o tributo não fora “descontado ou cobrado” de terceiro (sendo irrelevante na esfera penal o mero repasse econômico do tributo) e a Constituição Federal veda a prisão por dívida civil, ressalvado o inadimplemento de pensão alimentícia e o depositário infiel (artigo 5º, LXII).

Já antevendo o risco de aplicação indiscriminada do entendimento a todos os devedores confessos de ICMS do país, alguns ministros que se posicionaram pela criminalização da dívida tributária ressalvaram a necessidade de comprovação do dolo do contribuinte de apropriar-se do imposto, mediante condutas fraudulentas, como a dos “devedores contumazes”.

Todavia, há aparente inadequação entre as condutas que se pretende reprimir e o dispositivo penal no qual foram elas enquadradas.

Com efeito, os trabalhos legislativos constantes do PLS-C 284/2017, que se encontra em tramitação no Senado Federal e tem por objetivo regular o artigo 146-A da Constituição Federal, indicam que os devedores tributários podem ser classificados em três espécies: o eventual, o reiterado e o contumaz.

Os devedores eventual e reiterado desenvolvem suas atividades de forma lícita, porém, deixam de recolher o tributo de modo isolado (devedor eventual) ou em diversos períodos (devedor reiterado), seja por considerá-lo indevido, ou mesmo para obter capital de giro para a realização de seu objeto social com custo inferior ao cobrado pelas instituições financeiras, muitas vezes, no aguardo de eventual programa de parcelamento tributário para regularizar a situação fiscal. Nesses casos, o ferramental previsto na legislação tributária é suficiente para a cobrança da dívida, admitindo-se a instituição de critérios especiais de tributação quando a inadimplência reiterada repercuta sobre os preços e afete a concorrência (Constituição, artigo 146-A).

Absolutamente diversa é a situação dos devedores contumazes, que podem ser definidos como “estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial" (conforme voto do ministro Joaquim Barbosa no RE 550.769). Esse tipo de devedor desenvolve suas atividades de forma ilícita, ao adotar a inadimplência tributária como se fosse parte do seu “objeto social”, visando reduzir artificialmente seus preços e ganhar mercado, em detrimento do Fisco, da concorrência e da sociedade.

Para dar aparência de legalidade ao seu procedimento, o devedor contumaz normalmente declara ao Fisco os tributos devidos, embora não os compute na formação dos seus preços. A cobrança dos tributos declarados, porém, é frustrada porque o devedor contumaz não possui patrimônio para satisfazer suas obrigações tributárias e, muitas vezes, faz parte de grupos empresariais que procuram ocultar os reais beneficiários dos ilícitos cometidos, praticando “uma macrodelinquência tributária reiterada” (conforme voto do ministro Ricardo Lewandowski no RE 550.769).

Nesse contexto, verifica-se que, na prática, apenas os devedores eventuais e reiterados, que desenvolvem atividades lícitas, serão alvo de ações criminais fundadas em “apropriação indébita” de ICMS, devendo percorrer a via crucis do Poder Judiciário para demonstrar a ausência de dolo na sua conduta. Já os devedores contumazes, que são verdadeiros criminosos travestidos de empresários, não serão alcançados porque o seu modus operandi consiste justamente em excluir o ICMS do preço de venda dos seus produtos, o que impede seja o tributo “descontado ou cobrado” (ainda que economicamente) de quem quer que seja, tornando a sua conduta atípica, face aos elementos normativos do artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990.

Esse quadro demonstra que a criminalização do devedor confesso de ICMS poderá gerar efeitos diversos dos imaginados pelos ministros que se posicionaram nesse sentido, ao atingir empresários sérios que enfrentam diariamente as mazelas de um sistema normativo caótico para manter suas empresas em funcionamento, afetando negativamente o ambiente de negócios. A prevalecer o entendimento até aqui manifestado pela Suprema Corte, é razoável supor que muitos abusos venham a ser cometidos e talvez ela seja instada a rever o seu posicionamento num futuro próximo, tal como se deu com outros temas.

Assim, por razões de segurança jurídica e efetividade da norma penal, seria de todo conveniente que o Supremo Tribunal Federal revisse o enquadramento legal da conduta que, nos termos dos votos até aqui proferidos, o legislador pretendeu criminalizar: os fraudadores do Fisco.

Neste sentido, sugere-se a declaração de que o tipo do inciso II do artigo 2º da Lei 8.137/1990 restringe-se aos responsáveis tributários que deixem de repassar tributo cujo ônus tenha sido suportado pelo contribuinte de direito e que as condutas dos devedores contumazes, entre outros contribuintes que utilizem subterfúgios para iludir a fiscalização, deverão ser enquadradas em outros dispositivos da Lei 8.137/1990, notadamente quando revelada a intenção de “fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal” (artigo 1º, II), ou de “fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo” (artigo 2º, I). [1]

Afinal, o ordenamento protege a atividade lícita, não servindo de escudo a quem atue no campo da ilicitude. Daí porque as pessoas físicas responsáveis por empresas qualificadas como “devedores contumazes” podem ser punidas criminalmente pela inadimplência sistemática e consciente de tributo (incluindo o ICMS-próprio), diferentemente dos demais contribuintes (eventual ou reiterado), que assim procedem de forma justificável, no peculiar contexto da economia brasileira, sujeita a crises e incertezas.

Registre-se ser possível a alteração do enquadramento jurídico do fato narrado na denúncia (emendatio libeli), de modo que poderão ser mantidas e requalificadas pelo órgão julgador as ações penais instauradas com fundamento em “apropriação indébita”, quando constatadas condutas fraudulentas, notadamente as praticadas por devedores contumazes, na esteira dos votos até aqui proferidos no RHC 163.334.

[1] E nesse sentido, aliás, a opinião de Fernando Facury Scaff, em artigo intitulado “O erro do STF: Inadimplência do ICMS próprio não é apropriação indébita”, publicado na revista Consultor Jurídico em 16 de dezembro de 2019.

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