Opinião

Criação do juiz de garantias não aumenta despesas nem carga de trabalho

Autor

  • Carlos Alberto Garcete

    é professor pós-doutor em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa doutor em Direito (área de concentração em Direito Processual Penal) pela PUC-SP mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-RJ e juiz de Direito (1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande-MS).

17 de dezembro de 2019, 7h02

1. Introdução
O ano de 2019 ultima-se com grandes debates democráticos travados na Câmara dos Deputados acerca da busca de modernização da legislação penal e processual penal brasileira.

Em destaque, o incansável trabalho desenvolvido pelo Grupo de Trabalho sobre a Legislação Penal e Processual Penal (GT Penal), cuja coordenação coube à deputada Margarete Coelho, e que contou, entre tantos parlamentares de reconhecido mérito, com a atuação diferencial do deputado Fábio Trad, o qual, advindo da docência jurídica, tem sido aguerrido soldado na defesa dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal e que, doravante, figura como relator de outro relevantíssimo projeto que interessa a toda nação, qual seja a PEC 199/19, a cuidar da prisão após o julgamento em segunda instância.

No último 4 de dezembro, a Câmara aprovou o Projeto de Lei 10.372/2018-A[1], relator deputado Lafayette de Andrada, decorrente de Comissão de Juristas sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes, e que agora segue para o Senado Federal, após emendas e destaques. Vários foram os progressos advindos desse projeto. Por outro lado, louvável o afastamento da censurável plea bargainaing, cujo instituto sequer é prestigiado nos Estados Unidos (excessos acusatórios — overcharging —, ausência de controle judicial, entre inúmeros problemas), país do qual se colimava importá-la.

Digna de aplausos, por sua vez, a aprovação da figura do “juiz de garantias”, avanço civilizatório ao processo penal constitucional brasileiro, a evitar a “contaminação” do juiz que atua na fase de investigação preliminar ao continuar a exercer jurisdição em eventual ação penal que se segue, mas, também, a prevenir eventuais “conúbios” entre grupos de investigação da Polícia Judiciária e do Ministério Público com magistrados que acumulam competências para fase investigativa e fase julgadora. Para todas essas vicissitudes, o juiz de garantias tem sido uma tendência mundial, razão pela qual este artigo concentra-se neste tema.

2. A contaminação do juiz da fase investigativa
À luz da matriz acusatória, a vigorar no atual processo penal constitucional, é imperiosa a separação das funções estatais dos agentes investigador e/ou acusador com o agente julgador. O juiz com atuação direta em investigações criminais preliminares — sobretudo em megainvestigações, alocutário de excessivos elementos informativos —, torna-se receptor geral do acervo apurado, o que faz convolá-lo, antes mesmo da delimitação acusatória formulada pelo dominus litis (hipótese acusatória), em agente estatal parcial acusador, a ofuscar o imprescindível princípio da congruência entre denúncia e sentença, e, em última instância, a prestigiar o direito penal do autor. Torna-se, inadvertidamente, parte em sentido informal, como diria Werner Goldschmidt, porque agiria com “parcialidade”[2].

Bernd Shünemann escreveu artigo científico[3]”, resultado de apurada pesquisa realizada com a participação de 58 juízes e promotores, escolhidos aleatoriamente por todo o território alemão, com a finalidade de realizar uma análise comportamental, durante audiências simuladas de instrução e julgamento, especialmente na forma de decidir a causa. O ponto de partida foi avaliar a diferença entre juízes que se envolvem com o material produzido na investigação preliminar e têm participação ativa durante a instrução criminal e de juízes que atuam de forma mais equidistante como destinatários dos elementos trazidos pelas partes.

Shünemann traz à tona a Teoria da Dissonância Cognitiva de Festinger, na versão reformulada de Irle. De acordo com a referida teoria, cada pessoa ambiciona obter harmonia em seu sistema cognitivo, a assegurar-lhe relações estáveis entre seus conhecimentos e suas opiniões. Quando opiniões antagônicas lhe são contrastadas, o resultado dessa motivação cognitiva é a redução mental de fatores dissonantes com a preponderância de fatores de consonância. Significa dizer que, para alcançar-se o equilíbrio do sistema cognitivo, é mister solucionar a contradição existente entre o conhecimento e as opiniões contrárias, de tal arte a mitigar o referido nível de contradição entre o conhecimento que possui e a opinião contraditória que se lhe é proposta. Haveria o stress pela tentativa de eliminar as contradições cognitivas. Desse quadro passageiro exsurgem (i) o efeito perseverança e (ii) o princípio da busca seletiva de informações.O efeito perseverança consiste no mecanismo de autoafirmação da hipótese preestabelecida, que acaba por ser sistematicamente superestimada, enquanto que as informações dissonantes são subavaliadas. A busca seletiva de informações tende a ratificar a hipótese originária que tenha sido aceita pelo menos uma vez, o que normalmente ocorre quando se obtém informações que confirmem uma preconcepção.

A pesquisa realizada na Alemanha, foi possível extrair o seguinte padrão comportamental do juiz criminal: todos que tiveram contato maior com a investigação preliminar e, depois, atuação mais ativa na instrução criminal, acabaram por condenar, enquanto que aqueles que não foram equipados comas peças de informações preliminares tiveram maior nível de ambivalência, ou seja, houve equilíbrio entre o número de condenações e de absolvições. Há, no mínimo, uma tendência, um envergamento, a apegar-se àquela opinião pré-concebida da investigação preliminar que tentará corroborá-la ao longo do processo. Para Shünemann, o juiz tenta superestimar as informações consoantes e subestimar as informações dissonantes.

3. Estética da imparcialidade como apanágio do juiz
O alinhamento de pools de atuação estatal, ou seja, grupos de atuação específica na persecução criminal, se, por um lado, permite a especialização de seus agentes, por outro lado, não deve contar com a participação direta e exclusiva de um único juiz, sob pena de sério e inevitável comprometimento do sistema acusatório, a causar impressão à sociedade, e aos próprios investigados, que o juiz é um agente que se associa aos órgãos de persecução no combate às organizações criminosas.

O Poder Judiciário, por seus membros, representa a função jurisdicional, a garantia de respeito à Constituição Federal, aos direitos e garantias fundamentais e às leis vigentes. O juiz, em última razão, não é um ativista no combate ao crime, mas garantidor da legalidade da persecução e detentor de parcela da jurisdição para julgar a pretensão acusatória do Estado-Administração. Não é debalde que a Constituição prevê a existência de Polícia Judiciária e Ministério Público.

A estética de imparcialidade é conduta que deve estar patente no Poder Judiciário. Teoriza-se, hodiernamente, questões de imparcialidade judicial objetiva e subjetiva, como se viu, em âmbito internacional, em julgamentos pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos nos Casos Piersack versus Bélgica e Hauschildt versus Dinamarca, quando foi invocada a Teoria da Aparência de Justiça, no sentido de que o juiz deve abster-se de atuar nas causas em que haja razões legítimas para duvidar de sua imparcialidade.

4. Portugal
De acordo com o artigo 17 do Código de Processo Penal português de 1987, compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até a remessa do processo a julgamento ao juízo da causa. Paulo de Sousa Mendes assinala que o juiz de instrução termina a instrução com um despacho de pronúncia ou com um despacho de não pronúncia. E complementa: “Quanto à competência funcional, o ponto a destacar é que têm de intervir no processo pelo menos dois juízes, um para fase de investigação e outro para a fase de julgamento, só assim se podendo garantir o princípio da independência judicial”. Aliás, trata-se de previsão expressa do artigo 40 do CPP lusitano. No sistema português, Paulo de Sousa Mendes ressalta que “a imparcialidade do juiz deve ser garantida a todo o custo[4]”.

5. Espanha
A Ley de Enjuiciamento Criminal da Espanha prevê a existência de um juiz a atuar na fase investigativa (juez de instrucción), conforme o artigo 259, e, com a conclusão (artigo 324.6), o encaminhamento dos autos ao tribunal competente. Conforme o artigo 622: "Practicadas las diligencias decretadas de oficio o a instancia de parte por el Juez instructor, si éste considerase terminado el sumario, lo declarará así, mandando remitir los autos y las piezas de convicción al Tribunal competente para conocer del delito.”

6. Itália
No Código de Processo Penal de 1989 (Codice di Procedura Penale), há previsão de separação entre os elementos informativos coletados para investigar (elementos investigativos) e as provas que se destinam ao julgamento da causa (elementos de prova). O primeiro constitui-se o fascicolo del pubblico ministero, previsto no artigo 433 do Codice di Procedure Penale (CPPi), enquanto o segundo é designado fascicolo per il dibattimento (artigo 431).

Ferrajoli destaca que a “principal inovação estrutural introduzida com as reformas foi a separação do juiz da acusação, mediante a eliminação da velha figura do juiz instrutor, substituída por um juiz para as investigações preliminares em princípio estranho ao seu desenvolvimento (artigo 328), e do pretor, que agora possui função apenas judicante”[5]. O CPP italiano tem previsão expressa de incompatibilidade do juiz que atua na fase investigativa e decide medidas interventivas (incompatbilita, astensione e ricusazione del giudice), conforme o artigo 34.2 bis.

7. Chile
Tem sido quase inquestionável, em âmbito doutrinário, que o Chile possui, na atualidade, o sistema processual penal acusatório mais moderno da América do Sul. O Código de Processo Penal chileno de 2000 (Código Procesal Penal), com suas atualizações, traz expressa alusão ao juiz de garantias em seu artigo 70.

8. Estados Unidos
Nos Estados Unidos, realizada a investigação preliminar, em vários estados, segue-se uma audiência preliminar (preliminar hearing), que pode ter a finalidade de decidir acerca da submissão do caso a julgamento (petrial screening mechanism), bem como encaminhamento ao grande júri (grand jury). Portanto, independente da legislação aplicável (leis federais, Federal Rules of Criminal Procedure, Model Penal Code, leis estaduais, atos normativos federais e estaduais etc.) e da competência local (The US District Courts), pode-se dizer que o juiz da audiência de apresentação não será aquele que irá valorar as provas da causa, sobretudo porque, no sistema norte-americano, vigora a 5ª Emenda (Fifth Amendment), pela qual ninguém pode ser responsabilizado por crime capital ou infame, a menos que apresentado ou indiciado por um grande júri. Portanto, é o júri que deliberará sobre as provas trazidas pela promotoria e pela defesa.

Deve-se lembrar que o juiz americano segue rígido Código de Conduta desde o ano de 1973 (Code of Judicial Conduct for United States Judges), que lhe impõe deveres de honestidade, integridade, imparcialidade, temperamento e capacidade para julgamento, conforme Canon 3 (A judge should perform the duties of the office fairly, impartially and diligently). Nesse sentido, impõe-lhe evitar toda impropriedade de aparência, de forma a preservar o decoro. Por isso, não deve considerar comunicações ex parte ou que sejam feitas fora da presença das partes ou advogados. Se o fizer, deve notificar imediatamente a parte contrária. São as chamadas responsabilidades adjudicativas[6]. Conclui-se que o juiz americano não deve ter qualquer tipo de relação mais próxima com agentes investigadores e com membros da promotoria, com vistas a manter o dever legal de isenção.

9. Adaptação do sistema judicial brasileiro
Ao contrário do que alguns detratores poderiam objetar à não implementação do juiz de garantias no Brasil, hodiernamente, o processo em meio eletrônico é regra na Justiça brasileira, haja vista que processos judiciais devem ser digitalizados para que magistrados possam acessá-los de forma remota em qualquer instância (Lei 11.419/2016 e Resolução 185/2013/CNJ.

Em adição, a implantação do juiz de garantias no Brasil não causaria aumento de despesa ou impacto orçamentário ao Poder Judiciário, tampouco acrescentaria carga de trabalho aos magistrados, mas, apenas, reordenação de competências entre unidades judiciárias, a cargo da organização judiciária de cada estado ou seção judiciária. Mesmo em comarcas com a existência de um juízo, basta a organização judiciária disciplinar a ordem de competência entre comarcas circunvizinhas por meio de acessos remotos e videoconferências, cujas tecnológicas estão presentes em todo território brasileiro.

Enfim, os exemplos dos países acima estão a chancelar que o juiz de garantias é uma tendência global, e não será o Brasil que marchará na contramão, sob pretexto de eventual inexequibilidade de implementação prática, o que pode ser solucionado facilmente com um pouco de boa vontade dos gestores do Poder Judiciário.

[1] Também estão incluídos os PL 10.373/2018 (ação civil pública de perdimento de bens) e 882/2019 (que altera o CP, o CPP, a LEP, dentre outras legislações, e estabelece medidas contra a corrupção, crime organizado e grave ameaça à pessoa).

[2] GOLDSCHMIDT, Werner. La Imparcialidad como Principio Básico del Proceso (La Partialidad y la Parcialidad). Disponível em:http://www.academiadederecho.org/upload/biblio/contenidos/la_imparcialidad.pdf/> Acesso em: 25 de mai. 2016.

[3] SHÜNEMANN, Bernd. O Juiz como um Terceiro Manipulado no Processo Penal. Disponível: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=140/> Acesso em: 29 de mai. 2016.

[4] MENDES, Paulo de Sousa. Lições de Direito Processual Penal. Coimbra: Almedina. p. 113.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 4. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 679.

[6] GARCETE, Carlos Alberto. Desde 1973, Estados Unidos têm um código de conduta para seus juízes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-10/carlos-garcete-eua-codigo-conduta-juizes-1973 Acesso em 6-12-2019.

Autores

  • Brave

    é juiz do 1º Tribunal do Júri de Campo Grande (MS), professor de Direito Processual Penal e Criminologia, pós-doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, doutor em Direito Processual Penal pela PUC-SP e mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-Rio.

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