Opinião

República da Gâmbia leva genocídio rohingya à Corte da Haia

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

15 de dezembro de 2019, 7h03

Quando a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio foi assinada em 1948, a comunidade internacional tinha às suas costas horrores perpetrados em escalas assombrosas. A convenção surge então com o escopo de “libertar a humanidade de flagelo tão odioso”.[1] Ela emerge como compromisso de que atos daquela magnitude não deveriam jamais ocorrer. Foi com base nesse tratado septuagenário que a República da Gâmbia, na primeira semana de novembro de 2019, acionou a Corte Internacional de Justiça (CIJ) – a Corte da Haia — contra a República da União de Myanmar pelo alegado genocídio cometido contra o povo rohingya. Trata-se do terceiro caso da CIJ envolvendo a Convenção.

Analisarei sucintamente quais são as principais questões envolvendo a demanda da Gâmbia, principalmente a base jurisdicional, o interesse e legitimidade processual desse Estado da África oriental em relação aos atos cometidos na Ásia e o direito aplicável à luz da jurisprudência anterior da corte. Por fim, tecerei algumas considerações sobre os potenciais impactos do processo.

Assassinatos em massa, estupros e outras formas de violência sexual cometidos ou supervisionados por militares e agentes do governo de Myanmar contra os rohingya desde outubro de 2016, uma minoria muçulmana com distinções étnicas e raciais, estão mais do que documentados nos relatórios de 2018 e 2019 da missão imparcial de fact-finding conduzida sob a tutela do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. Em seu relatório, a missão de observação concluiu que “as graves violações e abusos cometidos em [Myanmar] são chocantes pela sua natureza horripilante e pela sua ubiquidade”.[2] Ademais, a mídia internacional encontrou indícios de que vilas inteiras pertencentes aos rohingya foram arrasadas e incendiadas. Imagens de satélites e fotografias apuram que, onde antes existiam inteiros vilarejos dos rohingya, hoje existem longas porções descampadas. Mesquitas e outras obras de caráter religioso esvaneceram. Estes e outros documentos consubstanciam a exordial da Gâmbia. O governo de Myanmar, por sua vez, nega tais acusações. Mesmo a líder de facto, premiada com o Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi parece não dar a devida atenção a catástrofe humanitária que gerou mais de 740 mil refugiados (cifra um pouco menos que a população de João Pessoa). Parte da defesa oficial de Myanmar não nega somente a existência dos fatos, mas também alega que os relatórios da missão de fact-finding são “errôneos e parciais, baseados não em fatos mas em narrativas”.[3]

O caso perante a Corte Internacional de Justiça parece surgir como resposta a essa postura, que vai do silêncio ao negacionismo, mas que não esconde o aparente imobilismo da situação.

A questão do genocídio rohingya tem sido pautada em outros órgãos da ONU bem como, também recentemente, objeto de uma investigação no âmbito da Corte Penal Internacional (CPI).[4] Contudo, ao contrário da CPI, que julga indivíduos, é perante a Corte Internacional de Justiça que o Estado de Myanmar vem diretamente interpelado. Nessa corte acaba por residir a palavra final se um Estado é responsável pelo cometimento de um genocídio. Nesse sentido, a própria CIJ já observou no passado que “as partes contratantes da Convenção [de Genocídio] estão obrigadas a não cometer genocídio, pelos atos de seus órgãos ou pessoas ou grupos cujos atos são a elas atribuídos”.[5] Como a Gâmbia argumenta em sua petição inicial: “estes indivíduos estavam agindo em nome do Estado”.[6]

A base jurisdicional que atribui poderes à Corte Internacional de Justiça é a própria Convenção de Genocídio de 1948. Uma vez que para decidir sobre qualquer questão relativa a um Estado soberano uma corte internacional necessita do expresso e soberano consentimento daquele Estado, a Gâmbia certificou-se de que o vínculo jurisdicional existia e de que não havia reservas a este vínculo. O artigo IX da Convenção estabelece que “as controvérsias entre as partes contratantes relativas à interpretação, aplicação ou execução da presente convenção bem como as referentes à responsabilidade de um Estado em matéria de genocídio (…) serão submetidas à Corte Internacional de Justiça”. Eis a cláusula jurisdicional que confere à Corte da Haia o papel de “guardiã” da Convenção de Genocídio. Diversos Estados opuseram reservas a este dispositivo. Nem Gâmbia nem Myanmar o fizeram. O Brasil seguiu a mesma política, demonstrando seu compromisso internacional com a prevenção e punição do genocídio.

A questões que poderia emergir imediatamente é: qual é o interesse e legitimidade processual da Gâmbia em iniciar tal procedimento judiciário? Em outras palavras, o que motiva a Gâmbia, Estado não diretamente atingido pelo genocídio, a iniciar esse procedimento internacional? Quanto ao interesse, a Gâmbia é um país cuja grande maioria da população é muçulmana. É Estado-membro da Organização para a Cooperação Islâmica, fórum multilateral no qual a Gâmbia emitiu uma série de declarações condenando as perseguições contra os rohingya. No que se refere à legitimidade, a Corte Internacional de Justiça já identificou que a Convenção de Genocídio possui direitos e obrigações de caráter erga omnes e, portanto, todos os Estados possuem o interesse jurídico em sua proteção.[7] Ademais, por serem ambos os Estados membros da convenção, cuida-se de obrigações erga omnes partes, categoria que na jurisprudência recente da corte aparece com maior frequência. Em linha similar, o professor e juiz brasileiro na CIJ, Antônio Augusto Cançado Trindade observa (em relação a outro litígio) que “os Estado-partes da Convenção contra o Genocídio de 1948 não possuem interesses individuais próprios, eles estão conjuntamente guiados por ideais maiores e considerações básicas de humanidade”.[8]

A substância da reclamação gambiana são as obrigações contidas na convenção, em especial em seus artigos III, I, IV e VI. Em suma, a Gâmbia acusa Myanmar de cometimento do genocídio, conspiração para cometimento de genocídio, incitamento direto e público de genocídio, tentativa de cometimento de genocídio, cumplicidade no cometimento de genocídio, falha na prevenção do genocídio, falha em relação à punição ao genocídio e a falha à adaptação da legislação de Myanmar para efetivar a convenção. Além do reconhecimento da violação da convenção e da punição dos responsáveis, a Gâmbia pleiteia o retorno dos rohingya que tiveram de deixar o país, bem como garantias de não repetição do flagelo.

Questões de genocídio não são assunto simples perante a Corte Internacional de Justiça. Nos dois complexos casos anteriores trazidos perante a corte, o Estado demandado não foi diretamente condenado pelo cometimento de genocídio. Na sentença de 2007 (Bósnia e Herzegovina vs Sérvia e Montenegro), a CIJ entendeu que a Sérvia não cometera genocídio no conflito dos Balcãs, mas que falhara em sua obrigação de prevenir o genocídio de Srebenica, bem como fracassou na transferência de um dos responsáveis, Ratko Mladic, para o Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia. Vez que sua jurisdição era fundada na Convenção de Genocídio, a corte não pôde se pronunciar sobre as questões envolvendo crimes de guerra e crimes contra humanidade eventualmente cometidos pela Sérvia. Na sentença de 2015 (Croácia vs Sérvia), a corte concluiu que, apesar de a Sérvia ter cometido os atos que poderiam caracterizar o genocídio, faltava o elemento subjetivo, a mens rea, ou seja, a intenção de eliminação do grupo. A corte observou que a “a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional. étnico, racial ou religioso, como tal é a característica essencial do genocídio que o distingue de outros sérios crimes”.[9] Em relação a Myanmar, de maneira interessante, o relatório de 2019 chega até mesmo a identificar a “intenção genocida” por parte do Estado de Myanmar. Caso a demanda proceda ao mérito, será interessante verificar o quanto a CIJ irá levar em consideração este relatório para alcançar o alto standard de sua jurisprudência.

De maneira estrategicamente interessante, a Gâmbia nomeou como juíza ad hoc a jurista sul-africana Navanethem Pillay. Com uma reputação internacional na luta de direitos humanos e combate à discriminação, Navanethem Pillay foi alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, juíza da Corte Penal Internacional e do Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Trata-se de um nome de peso e com ampla experiência no direito internacional relativo à prevenção e punição do genocídio.

Descortina-se perante a Corte da Haia mais um episódio lúgubre da humanidade. Não se pode prever quanto tempo tal contencioso irá durar, ou se as medidas provisionais requeridas pela Gâmbia segundo o artigo 41 do Estatuto da corte serão concedidas e, eventualmente, efetivas[10]. O prosseguir do caso poderá dizer algo também em relação à própria Convenção de Genocídio e sua atualidade, sobretudo diante dos fortes indícios da violação direta da Convenção por um Estado, segundo os relatórios do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Dificilmente a situação dos rohingya em Myanmar se encerrará ao final de um eventual litígio, tanto na Corte Internacional de Justiça quanto na Corte Penal Internacional.

Contudo é através do contencioso, de remédios jurídicos, de negociação, de pressão internacional que a situação do mais de meio milhão de refugiados daquela etnia poderá encontrar algum tipo de reparação ou satisfação diante do “flagelo tão odioso” que a Convenção de 1948 condena. A depender do resultado, poderá ser também uma mensagem a Estados que insistem em cometer graves violações de direitos humanos de que existe sempre alguma forma de responsabilização.

[1] Convenção de Genocídio. Preâmbulo. Sobre a Convenção, ver GAETA, Paola. The UN Genocide Convention: A Commentary. Oxford: Oxford University Press, 2009 e, sobre a construção da noção de genocídio, recomenda-se vivamente SANDS, Philippe. East West Street. Londres: Weidenfeld & Nicholson, 2016.

[2] Human Rights Council. Report of the independent international fact-finding mission on Myanmar. A/HRC/39/64. 12 de setembro de 2018. Human Rights Council. Report of the independent international fact-finding mission on Myanmar. A/HRC/39/64. 12 de setembro de 2018, p. 19.

[3] The Republic of the Union of Myanmar, State Counsellor Office, U Kyaw Tint Swe, 74th Session of United Nations General Assembly – High-Level General Debate (New York, 29th September 2019) (30 September 2019), available at https://www.statecounsellor.gov.mm/en/node/2551, p. 11.

[4] International Criminal Court. Pre-Trial Chamber III. Decision Pursuant to Article 15 of the Rome Statute on the Authorisation of an Investigation into the Situation in the People’s Republic of Bangladesh/Republic of the Union of Myanmar. No. ICC-01/19, 14 November 2019.

[5] Corte Internacional de Justiça. Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bosnia and Herzegovina v. Serbia and Montenegro), Judgment, I.C.J. Reports 2007, p. 114, para 167.

[6] Corte Internacional de Justiça. Proceedings instituted by the Republic of The Gambia against the Republic of the Union of Myanmar on 11 November 2019, Application, p. 3, para 8. Sobre a questão, ver ARCARI, Maurizio. L’attribuzione allo Stato di atti di genocidio nella sentenza della Corte internazionale di giustizia nel caso Bosnia-Erzegovina c. Serbia. Diritti umani e diritto internazionale. Vol 1, 2007, pp. 565–78; e CASSESE, Antonio. On the Use of Criminal Law Notions in Determining State Responsibility for Genocide. Journal of International Criminal Justice, Vol. 5, 2007, pp. 875–87.

[7] Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Croatia v. Serbia), Judgment, I.C.J. Reports 2015, p. 47, para. 87.

[8] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Opinião Dissidente no Caso Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Croatia v. Serbia), Judgment, I.C.J. Reports 2015, p. 226, para 56.

[9] CIJ. Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Croatia v. Serbia), Judgment, I.C.J. Reports 2015, p. 63, para 132.

[10] Em situações onde há jurisdição prima facie, plausibilidade dos direitos envolvidos e um risco de dano irreparável, a Corte Internacional de Justiça pode emitir medidas provisionais para preservar o objeto do litígio. Sobre elas, ver MILES, Cameron. Provisional Measures before International Courts and Tribunals. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. Ver também PALCHETTI, Paolo. The Power of the International Court of Justice to Indicate Provisional Measures to Prevent the Aggravation of a Dispute. Leiden Journal of International Law, Vol 21, No 3, 2008, pp. 623-642.

Autores

  • Brave

    é professor adjunto de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito Internacional pela Università degli Studi di Macerata.

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