Opinião

Tutela provisória de evidência e inversão do ônus do tempo no processo

Autor

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

14 de dezembro de 2019, 6h02

Um dos temas mais importantes do Código de Processo Civil diz respeito à disciplina das tutelas provisórias (artigos 294 a 311) e sua utilização como instrumento de efetivação da prestação jurisdicional.

A tutela de urgência vem merecendo tratamento mais aprofundado pela doutrina e jurisprudência nacionais. Contudo, ainda existem muitos desafios para a correta compreensão da tutela de evidência, especialmente no que respeita aos momentos para a sua concessão e a respectiva impugnação recursal.

Antes de mais nada, é mister ressaltar que, a rigor, a tutela de evidência já existia no CPC/73, como nos casos do artigo 273, II, e também nas ações de depósito[1].

Logo, o que fez o CPC foi apenas ampliar as situações jurídicas em que a tutela provisória é concedida em decorrência do elevado grau de probabilidade e sem a necessidade de comprovação de urgência[2]-[3], como nos casos dos incisos II (vinculação de precedente obrigatório — tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante), III ou IV, do artigo 311 (prova documental suficiente sem contraprova documental suficiente). A tutela de evidência, portanto, é importante instrumento para o efetivo alcance da duração razoável do processo (artigo 4º, do CPC com correspondência com o artigo 5º, LXXVIII, da Constituição), com a inversão dos males decorrentes do tempo de sua tramitação[4].

Uma coisa é certa: a maioria das causas repetitivas permite a concessão da tutela de evidência (artigo 311, II, do CPC), com a entrega do efeito fático independente da presença do requisito urgência e, com isso, esvaziando o efeito suspensivo ope legis ou ope judicis do eventual recurso e invertendo o ônus decorrente do tempo do processo[5]-[6]. Não se deve esquecer que nas hipóteses dos incisos II e III, o pronunciamento judicial pode ser de forma liminar (artigo 311, parágrafo único, do CPC).

Uma questão deve ser enfrentada: qual o momento para a concessão da tutela de evidência?

Assim como a tutela de urgência, a de evidência também pode ser apreciada no curso do processo — inclusive de forma liminar — artigo 311, II, III e parágrafo único, do CPC, desafiando o recurso de agravo de instrumento (artigo 1015, I, do CPC), com o pedido de efeito suspensivo ou mesmo ativo no próprio recurso e com a garantia de sustentação oral (artigo 937, VIII, do CPC) e em outras etapas procedimentais.

Aliás, uma hipótese que deve ser observada com muita cautela diz respeito à sua concessão na própria sentença, o que, como consequência, afasta o efeito suspensivo automático da apelação (artigo 1.012, parágrafo 1º, V, com correspondência com o artigo 1.013, parágrafo 5º, do CPC).

Destarte, como consequência do sistema de estabilização dos precedentes (artigo 926-928 do CPC), deve o magistrado observar a necessidade de concessão de tutela de evidência no curso do processo ou mesmo na sentença, com a efetivação da ordem judicial independentemente da interposição da apelação.

Aliás, nada impede que o apelante tente obter o efeito suspensivo judicial em relação ao capítulo da sentença que foi objeto de tutela de evidência, por meio do incidente previsto no artigo 1.012, parágrafos 3º e 4º, do CPC. Este incidente deve ser formulado diretamente no órgão ad quem, que posteriormente irá apreciar a admissibilidade e os efeitos da apelação (artigo 1.010, parágrafo 3º, do CPC), inclusive com a prevenção do relator (artigo 1.012, parágrafo 3º, I, do CPC) ou, se a apelação já estiver no tribunal, deve ser dirigido ao relator do recurso (artigo 1.012, parágrafo 3º, II, do CPC[7]).

A estabilização dos precedentes é, para o atual modelo processual, o caminho natural visando à superação da divergência interpretativa nos casos repetitivos.

É razoável afirmar, portanto, que a tendência interpretativa passa pela ampliação do caráter vinculante das decisões dos órgãos colegiados (superiores e locais). Neste fulgor, o CPC consagra que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente (artigo 926).

Uma coisa é certa: a ampliação da força vinculante é uma realidade nos sistemas processuais tanto da civil law quanto da common law, pelo que não é correto afirmar que o termo precedente é ligado apenas a este último[8] e, como consequência, o CPC permite seja concedida tutela de evidência para garantir a eficácia imediata do pronunciamento judicial, independentemente da interposição do recurso de apelação que, a rigor, não terá efeito suspensivo ope legis, em relação a este capítulo decisório[9].

É possível também que a tutela seja concedida no próprio recurso ou na contraminuta recursal, para permitir a eficácia imediata da decisão recorrida (artigo 932, II, do CPC)[10].

E mais.

Há também a possibilidade de concessão de tutela provisória (de urgência[11]ou evidência) no recurso especial, recurso extraordinário, agravo em recurso especial ou agravo em recurso extraordinário, por pronunciamento unipessoal do relator ou do respectivo órgão colegiado[12].

Fácil é perceber, portanto, que a verticalização e horizontalização do precedente[13] (da ratio decidendi), atinge sobremaneira os processos repetitivos e vários institutos processuais, dentre os quais a tutela de evidência (artigos 927 e 928, do CPC), que deve ser discutida e concedida durante vários momentos do procedimento, inclusive nos recursos junto ao Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal.

Em suma: se de um lado o caput do artigo 1.012 do CPC indica que a apelação tem efeito suspensivo ope legis, de outro, a concessão de tutela de evidência na própria sentença (especialmente nos casos de precedentes obrigatórios), tem o condão de permitir a eficácia imediata da decisão. Claro que, se no caso concreto existir mais de um pedido, a retirada do efeito suspensivo restringe-se apenas ao capítulo objeto da tutela de evidência, enquanto os demais estarão sujeitos aos efeitos previstos neste artigo.

O poder geral de tutela provisória (de urgência e evidência) também é garantido no âmbito dos recursos aos tribunais superiores (artigo 932, II, e 1.029, parágrafo 5º, I, do CPC), na fase de cumprimento de sentença (ex. artigo 525, parágrafo 6º, do CPC) e em sede de embargos à execução de título executivo extrajudicial[14]. Tudo depende do caso concreto e do diálogo quanto à necessidade de aplicação dos precedentes obrigatórios como instrumento de inversão do ônus do tempo do processo.

[1] Ao comentar o artigo 311 do CPC, Daniel Mitidiero aduz que: “A hipótese do inciso III consiste em permitir tutela antecipada com base no contrato de depósito — trata-se de hipótese que veio tomar o lugar do procedimento especial de depósito previsto no direito anterior. Estando devidamente provado o depósito (artigos 646 e 648 do Código Civil), tem o juiz de determinar a entrega da coisa”. In Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coords). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 797.

[2] A rigor, a urgência está ligada à própria demora na prestação jurisdicional e não como requisito obrigatório para a tutela provisória de evidência. Sobre o tema (urgência para a evidência) ver FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela de evidência. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 306.

[3] “Trata-se de uma tutela provisória, mas não de urgência, porquanto fundada exclusivamente na evidência do direito, não se cogitando de periculum in mora”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil – artigo por artigo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2015, p. 524.

[4] No CPC, existem outros institutos, além das tutelas provisórias, que procuram contribuir para o alcance da efetiva duração razoável do processo. No tema, ver: CABRAL, Antônio do Passo. A duração razoável do processo e a gestão do tempo no projeto de novo Código de Processo Civil. In Novas tendências do processo civil – estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno; NUNES, Dierle; DIDIER JR, Fredie; MEDINA, José Miguel Garcia; FUX, Luiz; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (organizadores). Salvador : Juspodivm, 2013, pp. 75-99.

[5] Fredie Didier Jr, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira escrevem que: “A parte que postula com base em fatos provados por documento e que sejam semelhantes àqueles que ensejaram a criação de tese jurídica vinculante em tribunal superior — tese esta invocada como fundamento normativo de sua postulação —, encontra-se em estado de evidência. Demonstra não só a improbabilidade de sucesso do adversário que se limite a insistir em argumentos já rejeitados no processo de formação do precedente, o que configuraria, inclusive, litigância de má-fé (por defesa infundada ou resistência injustificada, conforme artigo 80 do CPC). Não é razoável, assim, impor-lhe o ônus de suportar o tempo do processo sem usufruir do bem pretendido enquanto a parte adversa é beneficiada com a manutenção do status quo ante”. Tutela provisória de evidência. In Tutela provisória. COSTA, Eduardo José da Fonseca; PEREIRA, Mateus Costa e GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos (coords) . Salvador: Juspodivm, 2015, p. 427.

[6] Lucas Buril de Macedo entende que “a tutela de evidência, nesse contexto, pode ser conceituada como técnica processual para a distribuição do ônus do tempo no processo, adequada para os casos em que há grande probabilidade de que a parte vitoriosa ao fim, ocasionando uma cognição bastante próxima da convicção de verdade, o que acaba por tornar injusto que a parte provável vencedora aguente o tempo do processo sem usufruir o bem da vida, enquanto o sujeito que provavelmente não tem razão desfruta dele”. Tutela antecipada de evidência fundada nos precedentes judiciais obrigatórios. In Tutela provisória. COSTA, Eduardo José da Fonseca; PEREIRA, Mateus Costa e GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos (coords). Salvador: Juspodivm, 2015, p. 482.

[7] Ricardo Licastro Torres de Melo, ao comentar o artigo 1.012 do CPC (item 4), assevera que: “Os parágrafos 3º e 4º do artigo 1.012 do CPC/2015 cuidam do pedido de atribuição de efeito suspensivo á apelação recebível apenas no efeito devolutivo (incisos I a VI do parágrafo 1º do artigo 1.012 sob análise). A competência para a apreciação deste pedido será do relator do recurso, observando-se o estágio em que se encontre o processo: (i) se o pedido de atribuição de efeito suspensivo à apelação ocorrer entre a interposição da apelação e sua distribuição, deverá ser dirigido ao tribunal em petição autônoma contendo o arrazoado necessário (petição de atribuição de efeito suspensivo à apelação), que será apreciada tão logo designado o relator (a rigor, dar-se-á a distribuição deste pleito de efeito suspensivo, tornando prevento para o julgamento da apelação o relator que for designado para sua apreciação); (ii) se o pedido de atribuição de efeito suspensivo à apelação ocorrer quando já distribuída a apelação, deverá ser dirigido ao relator desta”. In Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coords). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, pp. 2242-2243.

[8] De acordo com as lições de Ravi Peixoto: “A categoria de precedente pertence à teoria do Direito. Trata-se de noção fundamental para o funcionamento dos sistemas jurídicos, estando também relacionada com a teoria das fontes. Como destacado, tanto no civil law, como no common law, existem precedentes, a diferença opera na importância a eles concedida por cada ordenamento jurídico". Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 158.

[9]Vale citar as lições de Fredie Didier Jr, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira: “Demais disso, a sentença final que confirma, concede ou revoga a tutela de evidência documentada fundada em precedente obrigatório é impugnável por apelação sem efeito suspensivo (conforme artigos 1.013, parágrafo 5º, e 1.012, parágrafo 1º, V, CPC). Essa é um das duas únicas hipóteses inovadoras de supressão de efeito suspensivo da apelação do CPC/2015. Inclusive, basta que o juiz conceda essa modalidade de tutela provisória no bojo da sentença para que a apelação seja despida de suspensividade. Torna-se, pois, uma nova e importante técnica de subtração do efeito suspensivo da apelação”. Tutela provisória de evidência. In Tutela provisória. COSTA, Eduardo José da Fonseca; PEREIRA, Mateus Costa e GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos (coords) . Salvador: Juspodivm, 2015, p. 428.

[10] “Enunciado 423 do FPPC (artigos 311; 995, parágrafo único; 1.012, parágrafo 4º; 1.019, inciso I; 1.026, parágrafo 1º; 1.029, parágrafo 5º) Cabe tutela de evidência recursal.(Grupo: Tutela de urgência e tutela de evidência)”.

[11] STJ: AgInt no AgInt no TP 1.932 / SP (Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – 3ª Turma – J. em 01/07/2019 –DJe 02/08/2019).

[12] STJ: AgInt no TutPrv no AREsp 300.743 / SP – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – 1ª t – J. em 25/03/2019 – DJe 01/04/2019.

[13] Não se deve confundir uma simples decisão judicial com precedente. Como bem observa Marinoni: “seria possível pensar que toda decisão judicial é um precedente. Contudo, ambos não se confundem, só havendo sentido falar de precedente quando se tem uma decisão dotada de determinadas características, basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados”. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2010, p. 215.

[14] O Superior Tribunal de Justiça, no AgInt no RCD na TutPrv no REsp 1.816.786 / SP (Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira – 4ª T – J. em 19/09/2019 – DJe DJe 30/09/2019), enfrentou o cabimento de tutela provisória em apelação contra sentença em embargos à execução, consagrando que: “2. As normas que permitem conferir efeito suspensivo a recursos disciplinados no Código de Processo Civil em vigor não fazem restrição a nenhuma espécie de demanda. A propósito, o artigo 1.012, parágrafo 1º, III, com correspondência com o parágrafo 4º, do CPC/2015 é expresso ao admitir a concessão do mencionado efeito à apelação, mesmo quando se cuide de embargos à execução extintos sem julgamento do mérito ou julgados improcedentes”.

Autores

  • Brave

    é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; doutor e mestre pela Universidade Federal do Pará; professor do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); procurador do estado do Pará e advogado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!