Ambiente jurídico

O estatuto da cidade e a proteção do patrimônio cultural

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

14 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Cidades e patrimônio cultural são realidades que se inter-relacionam de forma íntima desde os albores dos tempos, quando os homens perceberam que a convivência em grupo estabelecido em um determinado espaço era benéfica para sua segurança, alimentação, moradia e bem-estar.

Os locais dos antigos ajuntamentos humanos, ao ganharem permanência, transformaram-se em espaços e suportes para toda a organização social e práticas ligadas às formas de ser, fazer e viver, que aos poucos foram se estruturando na geografia da urbe.

Vias de transporte, estruturas de irrigação e armazenamento de água, locais de sepultamento, praças públicas, mercados, habitações, estruturas de defesa, áreas de plantio e armazenamento de grãos, açougues, estábulos, oficinas, templos, postos de arrecadação de tributos, sedes de órgãos administrativos, monumentos, são apenas alguns exemplos da materialização de produções culturais desenvolvidas nas cidades desde a antiguidade e que, preservadas ao longo dos tempos, não raramente são selecionadas para compor o rol dos bens considerados patrimônio cultural de uma dada sociedade.

Também não podemos nos esquecer da profunda relação entre paisagem natural e cidade, pois há locais (montanhas, picos, planícies, rios, ocorrências geológicas etc.) que estão de tal forma ligados ao núcleo urbano (às vezes justificaram o seu próprio surgimento), que recebem uma especial valoração como símbolo do povo ali residente, a ponto de ser inseparável do patrimônio cultural local, enquanto marco identitário e referencial mnemônico de vivências e viventes.

Como bem ressaltado na Carta de Atenas:

A geografia e a topografia desempenham um papel considerável no destino dos homens. Não se pode esquecer jamais que o sol comanda, impondo sua lei a todo empreendimento cujo objetivo seja a salvaguarda do ser humano. Planícies, colinas e montanhas contribuem também para modelar uma sensibilidade e colinas e determinar uma mentalidade. Se o montanhês desce voluntariamente para a planície, o homem da planície raramente sobe os vales e dificilmente transpõe os desfiladeiros. Foram os cumes dos montes que delimitaram as áreas de aglomeração onde, pouco a pouco, reunidos por costumes e usos comuns, os homens se constituíram em povoações (IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – CIAM. Atenas, 1933).

Não bastasse, é na cidade que vive o seu criador e principal personagem: o homem, usuário do espaço urbano; continuador e produtor de manifestações culturais; fomentador, partícipe e destinatário das políticas públicas; enfim, elemento essencial na definição dos rumos do planejamento urbano e da preservação do patrimônio cultural local.

Dentro dessa perspectiva, toda cidade é histórica, na medida em que, a partir do momento em que ela nasce, já se constitui fenômeno social e passa a acumular registros materiais e imateriais da vivência de seus moradores. Por isso, o cuidado com o patrimônio cultural não deve se restringir somente a núcleos centenários ou formalmente reconhecidos como detentores de um acervo cultural excepcional, mas, ao contrário, deve perpassar as políticas de gestão urbanística de todas as cidades, das mais antigas às mais recentes, sejam portentosas ou singelas.

A identificação dos marcos referenciais das cidades deve se dar de forma aberta e abrangente, sem preconceitos ou restrições. Eles podem residir, por exemplo, em festas religiosas ou profanas de todos os matizes; em obras arquitetônicas residenciais, industriais, comerciais ou utilitárias, eruditas ou vernaculares; em locais utilizados para práticas culturais imateriais; na gastronomia; em dialetos ou celebrações populares, em vestígios pré-históricos, fósseis de seres extintos ou em misteriosas cavernas.

É a preservação das características tradicionais e peculiares de cada cidade – a ser buscada com equilíbrio e responsabilidade – que determina a sua autenticidade em relação às demais aglomerações urbanas, evitando a indesejável uniformização dos espaços citadinos e a pasteurização das práticas sociais neles desenvolvidas.

Evidente que algumas cidades se destacam em razão do volume, da homogeneidade ou da importância de bens culturais existentes em seu território, o que aumenta a responsabilidade do poder público e da coletividade em relação à sua preservação.

Mas é preciso deixar claro que, no Brasil, por força do que dispõe a Constituição Federal, a todo município é imposto o dever de proteger e preservar seus bens culturais (art. 23, III e IV). Trata-se de uma competência indeclinável e irrenunciável.

Ademais, a Carta Magna de 1988 estabeleceu em seu art. 182 que: a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Satisfazendo a referida previsão constitucional e atendendo ainda ao disposto nos arts. 21, XX e 24, I c/c § 1º do texto magno, que impõem à União a competência para instituir normas gerais sobre desenvolvimento urbano, a Lei 10.257/2001 veio colmatar a lacuna legislativa até então existente a esse respeito e em seu art. 2º estabeleceu dezesseis postulados orientadores da política urbanística com o objetivo expresso de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

O advento da Lei 10.257/2001, que trouxe ao nosso ordenamento jurídico o Estatuto da Cidade e estabeleceu normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, do equilíbrio ambiental, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, foi sem dúvida uma das maiores conquistas do Direito Urbanístico Brasileiro, que passou a contar com um instrumento nacional norteador das políticas de regulação e desenvolvimento urbano.

Entre os vários méritos do novel diploma legal destaca-se a existência de normas autoaplicáveis, que atribuem direitos subjetivos públicos à sua observância, e podem ser diretamente invocadas para a solução de controvérsias envolvendo aspectos da política urbana.

Destaca-se, ainda, a definição, em âmbito nacional, de um conjunto de instrumentos com perfis bem delineados e expressamente vocacionados para uma intervenção urbanística eficaz e concreta por parte do Poder Público, viabilizando o alcance dos objetivos estabelecidos pela Lei.

Entre tais diretrizes foi prevista no inciso XII do art. 2º a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico”.

Embora se saiba que tais deveres não são criação do Estatuto da Cidade, uma vez que já expressamente previstos pela própria Constituição Federal nos arts. 23, III e IV, 216 e 225, a existência dessa diretriz urbanística no diploma em comento implica em repercussões jurídicas e práticas de grande relevância, como abaixo sintetizado.

A primeira grande repercussão diz respeito ao efeito vinculante e impositivo do postulado, que se constitui norma geral, de observância obrigatória, nos termos do art. 24, § 1º e 30, I, II e VIII da CF/88 no que tange à competência legislativa dos Estados e Municípios sobre matéria urbanística. Assim, a proteção, preservação e recuperação do patrimônio cultural brasileiro constituem princípios, bases fundamentais, que deverão ser necessariamente observados por todos os Estados e Municípios na feitura de suas legislações, através de normas específicas e particularizantes.[1] Eventuais leis estaduais ou municipais que contrariem essa diretriz, viabilizando danos ou ameaças ao patrimônio cultural, poderão inclusive ser questionadas judicialmente uma vez que “as novas disposições do estatuto dão fundamento jurídico específico para o controle do desvio de poder legislativo em matéria urbanística, o qual até aqui não era frequente, apesar da evolução recente da teoria sobre esse controle (propiciado pela aplicação dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade ou devido processo legal substantivo)”[2]

Com efeito, a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal vem censurando a validade jurídica de atos estatais que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas.[3] Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador.[4]

Sobreleva ressaltar ainda a importância da diretriz prevista no inc. XII do art. 2º do Estatuto da Cidade como marco referencial para a prática válida de atos administrativos. Ora, ante a literalidade do dispositivo legal em referência não se concebe a alegação de discricionariedade administrativa como argumento justificador para a prática de atos que impliquem em lesão ou ameaça ao patrimônio cultural brasileiro.

Como bem acentua Diógenes Gasparini: Discricionários são os atos administrativos praticados pela Administração Pública conforme um dos comportamentos que a lei prescreve. Assim, cabe à Administração Pública escolher dito comportamento.[5]

O Estatuto da Cidade não deixa dúvida: proteger, preservar e recuperar o patrimônio cultural não é uma mera faculdade ou opção dos administradores das cidades e executores das políticas urbanas municipais, mas sim um dever indeclinável, uma inafastável imposição de ordem pública e interesse social em prol do bem coletivo.

José dos Santos Carvalho Filho leciona no sentido de que as diretrizes previstas no art. 2º do Estatuto objetivam nortear os legisladores e administradores não somente lhes indicando os fins a que se deve destinar a política urbana, como também evitando a prática de atos que possam contravir os referidos preceitos, de modo que demandam sua integral observância por todos os agentes públicos em qualquer das funções estatais cuja atuação esteja atrelada à observância da referida lei.[6]

Por derradeiro chamamos a atenção para a importância da diretriz em comento como norma geral que irradia seus efeitos ao ordenamento jurídico pátrio em benefício da interpretação e aplicação de outros diplomas legais correlatos de maneira mais sistemática, racional e harmônica, viabilizando a gestão do patrimônio cultural de forma integrada com objetivos visados pela política urbana delineada, em âmbito macro, pelo Estatuto da Cidade.


[1] MEDAUAR, Odete. A força vinculante das diretrizes da política urbana. In: Temas de Direito Urbanístico Ministério Público do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005, p. 19.

[2] SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In: Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal 10.257/2001. DALLARI, Adilson Abreu e FERRAZ, Sérgio. Coord. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 55.

[3] RTJ 160/140-141, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO.

[4] RTJ 176/578-579, Rel. Min. CELSO DE MELLO.

[5] Direito Administrativo, 3 Ed., Saraiva, 1993, pág. 93.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. , p. 20.

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