Opinião

PL que extingue sucumbência para advogado público tem constitucionalidade duvidosa

Autor

  • Leonardo Vizeu Figueiredo

    é procurador federal presidente da Comissão Permanente Processante da 2ª Região chefe do Núcleo Disciplinar da 2ª Região especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá e em Direito do Estado pelo Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Direito pela Universidade Gama Filho e doutor em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

11 de dezembro de 2019, 13h10

No ano de 2015, a promulgação do Código de Processo Civil (Lei 13.105/ 2015) reconheceu, em norma de caráter meramente declaratória, a juridicidade do pagamento dos honorários de sucumbência aos advogados públicos, a teor do artigo 85, parágrafo 19 (“os advogados públicos perceberão honorários de sucumbência, nos termos da lei”).

Todavia, por ação dos parlamentares do Partido Novo, foi apresentado, nesta terça-feira (10/12), o Projeto de Lei 6.381/2019, de autoria do deputado federal Marcel Van Hatten (RS), que pretende revogar o artigo 85, parágrafo 19, do atual CPC.

O discurso de apresentação do referido PL se deu no meio dos debates de votação no PLN 51/2019, cuja emenda apresentada pelo restabelecia o disposto no artigo 102 da Lei 13.898/2019. O referido artigo 102 submetia o pagamento dos honorários advocatícios pagos aos advogados públicos federais ao teto constitucional do artigo 37, XI, da Constituição, pelas razões esposadas na Mensagem de Veto 569, a seguir transcrita:

Razões do veto
O dispositivo proposto dispõe sobre honorários de sucumbência, que não são pagos com recursos públicos, não se caracterizando como despesa, logo, incorre no vício de inconstitucionalidade formal, uma vez que está tratando de matéria diversa do objeto da lei de diretrizes orçamentárias, previsto no parágrafo 2º do art. 165 da Constituição da República de 1988. Ademais, a LDO tem natureza temporária por se referir a um exercício financeiro determinado, não se mostrando devido que trate de questões que tenham caráter de maior perenidade, como é o caso do teto remuneratório constitucional. O dispositivo ainda contraria o interesse público por violar o inciso II do artigo 7º da Lei Complementar 95/1998, o qual determina que lei não conterá matéria estranha a seu objeto.

Conforme resta claro nas razões do veto, houve reconhecimento de vício de inconstitucionalidade formal, uma vez que a lei de diretrizes orçamentárias tem vigência temporária restrita a um exercício financeiro, tratando-se a verba sucumbencial de mero ingresso financeiro, não de receita pública. Há que se ter em mente que, em nenhum momento houve manifestação do Executivo no sentido de classificar os honorários advocatícios como parcela extrateto.

Todavia, em seu discurso o parlamentar partiu da falsa premissa que os advogados públicos estão a perceber sua remuneração sem respeitar o limite do teto constitucional, tomando por base recente episódio ocorrido no estado do Rio Grande do Sul, cujo pagamento de honorários advocatícios aos procuradores do estado se dava em virtude de resolução da própria Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, sem lei da Assembleia Legislativa para tanto, em flagrante violação ao artigo 85, parágrafo 19, do CPC, bem como da própria Constituição da República, a teor do artigo 61, parágrafo 1º, II, “a”.

Cabe ressaltar, ainda, que o pagamento dos honorários sucumbenciais aos advogados públicos federais, estaduais e municipais se dá, via de regra, nos termos de lei, como por exemplo, a Lei 13.327/2016, aos membros da Advocacia-Geral da União.

Em que pese ser uma verba de caráter alimentar, compatível com o sistema remuneratório próprio da advocacia, seja a pública, seja a privada, e mero ingresso financeiro, que não incorpora ao Erário, houve ajuizamento de uma série de ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, nas quais se questiona a constitucionalidade material e formal do pagamento dos honorários de sucumbência aos advogados públicos federais e estaduais.

Isso, somado ao movimento que se inicia no Congresso Nacional para revogação do artigo 85, parágrafo 19, do CPC, pede alguns esclarecimentos sobre o tema.

Inicialmente, há que se ter em mente que a remuneração do advogado, via pagamento de honorários, sejam os contratuais, por arbitramento ou sucumbenciais, se trata de componente remuneratório peculiar à natureza da atividade laboral da advocacia, seja para pagamento do advogado privado ou público.

Dada sua natureza autônoma e independente, o exercício da advocacia é comumente remunerado mediante pagamento de honorários, os quais constituem nítida verba de natureza alimentar, obrigação propter laborem, devida em virtude da execução de um trabalho ou serviço profissional, seja estabelecido em virtude de celebração de contrato de trabalho (ex contractus) ou em virtude de regime legal (ex legis). Nesse ponto, mister se faz diferenciar os honorários contratuais dos honorários sucumbenciais. Aqueles são pagos em virtude de uma obrigação laboral (propter laborem), ao passo que estes são devidos somente em caso de vitória na causa (propter exitum). Por tais razões, a moderna definição de honorários é a parcela alimentar paga àqueles que exercem uma profissão liberal.

Observe-se que, dentro do poder público, a legislação comumente remunera a contraprestação a um trabalho eventual realizado por um servidor público, como no caso da retribuição paga àqueles agentes que participam de uma banca de concurso ou mesmo àqueles que lecionam em cursos oficiais no âmbito da própria Administração Pública, via honorários, ainda que denominados de gratificações ou prêmios.

Pode-se, destarte, identificar que os honorários lato sensu possuem os seguintes elementos nucleares: a) natureza de contraprestação a um trabalho realizado por um profissional; b) são devidos em razão do serviço prestado (propter laborem); c) podem ser oriundos de um contrato de trabalho (ex contractus) ou em virtude de imposição legal (ex legis).

Por sua vez, os honorários de sucumbência têm como peculiaridade, além dos elementos acima, as seguintes características: a) são exclusivamente processuais e, portanto, oriundos de previsão legal, com inegável natureza ex legis; b) são destinados exclusivamente ao advogado da parte vencedora, não somente em razão do trabalho (propter laborem), mas devidos em caso de êxito na causa (propter exitum); c) correrem às expensas da parte vencida em um processo judicial e não pelo contratante do trabalho prestado, ou seja, são devidos pelo prejudicado, não pelo beneficiário da atividade desenvolvida; d) são exigíveis somente a partir da decisão final do processo, e não antes ou por outra manifestação volitiva; e) tem seu montante estabelecido pelo juiz da causa (ope iudicis), observada a lei processual de regência.

A Lei 8.906/1994 pacificou a questão estabelecendo que os honorários sucumbenciais constituem receita alimentar própria do advogado, dando-lhe direito autônomo de executar a sentença no tocante à verba honorária.

Do exame do artigo 22 do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, depreende-se que os honorários advocatícios se dividem em três espécies, quais sejam, os convencionados, os fixados por arbitramento judicial e os sucumbenciais.

Além dos honorários contratuais e arbitrais, dentro da sistemática alimentar específica à natureza laboral da advocacia, tem-se os honorários sucumbenciais. Estes são fixados, por ocasião da sentença, em razão do acolhimento, total ou parcial, mas em proporção maior que o reconhecido ao adversário, portanto, não decorrem do direito próprio da parte, mas sim, da vitória na causa, em virtude do êxito do trabalho prestado pelo advogado na causa. Em outras palavras, trata-se de um direito que surge somente por meio da vitória em juízo, inerente ao serviço prestado pelo causídico, no momento da prolação da sentença pelo juiz, que condenará a parte vencida a pagar os honorários ao advogado da parte vencedora.

Os honorários advocatícios sucumbenciais, portanto, se tratam de obrigação propter exitum e ex legis. Não são direito da parte, tampouco decorrem de qualquer ação ou manifestação deste. Nascem em virtude da vitória da demanda em juízo, decorrente do trabalho prestado pelo advogado. Destarte, tem natureza processual, sendo elemento do dispositivo da sentença, posto que o magistrado se encontra obrigado, por força de lei, a saber, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e do Código de Processo Civil, funcionalmente a estipulá-los.

Os honorários sucumbenciais, dada sua inegável natureza de obrigação processual ex legis e propter exitum, estão regulamentados pelo Código de Processo Civil de 2015, nos artigos 82 a 97.

Observe-se que, dada às peculiaridades do cargo de advogado público, não há proibição expressa para que os advogados públicos percebam seus honorários, ao contrário do que ocorre com a Justiça e outras funções essenciais, em especial o Ministério Público, a teor do artigo 128, II, “a”, da Constituição.

Nessa linha, uma vez que a Constituição da República se trata de uma norma garantidora do exercício de direitos e liberdades, a boa técnica hermenêutica leva à inexorável exegese de que aquilo que não está expressamente proibido, está tacitamente permitido pelo legislador constituinte.

Em outras palavras, em que pese os membros das carreiras jurídicas da Advocacia-Geral da União serem remunerados via subsídio constitucional (artigo 39, parágrafo 4º, combinado com o artigo 135, ambos da Constituição), os mesmos exercem advocacia pública ao Estado (artigo 131 da Constituição), tendo a percepção de honorários sucumbenciais (obrigação propter exitum e ex legis) como componente peculiar ao seu sistema remuneratório constitucionalmente assegurado, atrelada a sua produtividade (artigo 39, parágrafos 1º e 7º, da Constituição).

Quanto a sua classificação e enquadramento dentro do Direito Financeiro, uma vez que os honorários advocatícios sucumbenciais são recolhidos aos cofres públicos para, depois, serem rateados entre os membros da advocacia pública, os mesmos se tratam de mero “ingresso”. Em outras palavras, reforçando a argumentação acima, é mera obrigação propter exitum e ex lege, de natureza eminentemente processual.

Tal entendimento encontra-se abalizado na melhor doutrina, a qual citamos pela lição do saudoso mestre Aliomar Baleeiro, por intermédio de sua obra Uma Introdução à Ciência das Finanças, 15ª edição, editora Forense, atualizada por Djalma de Campos, página 126:

As quantias recebidas pelos cofres públicos são genericamente designadas como entradas ou ingressos. Nem todos esses ingressos, porém, constituem receitas públicas, pois alguns deles não passam de movimentos de fundo, sem qualquer incremento do patrimônio governamental, desde que não estão condicionados a restituição posterior ou representam mera recuperação de valores emprestados ou cedidos pelo governo. Exemplificam esses movimentos de fundos ou simples entradas de caixas, destituídas de caráter de receitas – as cauções, fianças e depósitos recolhidos ao Tesouro; os empréstimos contraídos pelos Estados, ou as amortizações daqueles que o governo acaso concedeu; enfim as somas que se escrituram sob reserva de serem restituídas ao depositante ou pagas a terceiro por qualquer razão de direito e as indenizações devidas por danos causados às coisas públicas e liquidados segundo o direito civil.

Outrossim, cumpre frisar que o instituto jurídico do “ingresso” ou “entrada”, no qual se enquadras os honorários advocatícios sucumbenciais, é figura corriqueira do Direito Financeiro, há muito conhecido e integrante do ordenamento jurídico pátrio, conforme leciona Luiz Emygdio Franco da Rosa Júnior em sua obra Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário, 15ª edição, editora Renovar, página 50.

Por fim, o pagamento dos honorários sucumbenciais aos advogados públicos federais, estaduais e municipais, é perfeitamente compatível com o regime de subsídio e devem se submeter ao teto constitucional. O fundamento de validade do sistema remuneratório próprio e peculiar aos membros das carreiras jurídicas da advocacia pública deve, inexoravelmente, observar todas as disposições da Constituição da República, conforme já visto.

Outrossim, dado ao caráter alimentar dos honorários advocatícios sucumbenciais, reconhecido tanto em lei (artigo 85, parágrafo 14, do CPC) e quanto na pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Súmula Vinculante 47 do STF), os mesmos não são passíveis de apropriação pelo ente patronal, seja pessoa jurídica de direito público ou privado, devendo ser destinados aos profissionais que laboraram em juízo, sejam advogados públicos ou privados.

Nessa linha, transcreve-se o verbete vinculante do Supremo:

Súmula Vinculante 47: Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza.

Em que pese ser parcela variável, de caráter alimentar, somente percebida em caso de êxito nas causas judiciais, a regra da limitação do teto constitucional deve ser obedecida e o sistema remuneratório dos advogados públicos, como o de todos os demais servidores públicos, deve se limitar ao teto constitucional, a teor do artigo 37, XI da Constituição.

Assim, tendo em vista todo o exposto, a propositura do Projeto de Lei 6.381/ 2019, de autoria do deputado federal Marcel Van Hatten, revela-se de constitucionalidade e juridicidade duvidosas, que não se coadunam com a doutrina e jurisprudência.

Autores

  • Brave

    é procurador federal, presidente da Comissão de Direito Econômico da OAB-RJ, especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá e em Direito do Estado pelo Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela Universidade Gama Filho e doutor em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

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