Opinião

A delação na lei, no Direito e suas variações

Autor

  • Eugênio Pacelli de Oliveira

    é advogado doutor em Direito pela UFMG ex-Procurador-Regional da República no Distrito Federal e relator-geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal instituída pelo Senado da República.

11 de dezembro de 2019, 7h58

O propósito inicial destas linhas é esboçar um pequeno recorte sobre a maior novidade do direito penal brasileiro nos últimos tempos, trazido que foi pela Lei 12.805/13, a cuidar da chamada colaboração premiada. No entanto, a abordagem que se fará não poderia deixar de contemplar alguns eventos, decisões e manifestações lançadas em torno de casos atingidos por colaborações premiadas.

Como o tema era novidade em 2013 e ainda é até hoje, no que diz respeito às reais possibilidades da construção de um acordo de colaboração, e, com maior dificuldade ainda, de sua desconstrução, pode-se notar alguns descompassos criativos com a citada Lei, sobretudo a partir da maior operação de combate à corrupção já levada cabo no país, iniciada logo após a vigência da aludida legislação.

Convém, antes, registrar algumas páginas da história acerca do ambiente jurídico-penal da época. Veja-se, por exemplo, que, até aquele momento, a jurisprudência dos Tribunais brasileiros — praticamente sem divergência —  assentava que os crimes praticados em detrimento de sociedades de economia mista da União seriam da competência da Justiça estadual.

De nossa parte, já sustentávamos em doutrina que nos parecia equivocado o entendimento, por erro de premissa. Com efeito, a questão, parecia-nos e ainda nos parece, não poderia ser tratada sob a consideração da natureza da pessoa jurídica envolvida, mas, sim, na perspectiva da evidente lesão aos interesses da União, principal acionista de tais sociedades, quando a hipótese fosse de crimes com lesões patrimoniais.

No entanto, não era o que se via, nem aqui e nem acolá.

Na Operação Lava Jato, inicialmente por força de conexão e depois com fundamento já na tutela dos interesses (patrimoniais) da União, alterou-se a competência de jurisdição, passando a prevalecer a competência da Justiça Federal.

O passo seguinte foi ainda mais perturbador, pois assentou-se a competência da Justiça Federal de Curitiba para quaisquer crimes envolvendo lesões à Petrobras — talvez com fundamento em prevenção — que se tornou o foro nacional anticorrupção, inicialmente em razão de relações entre construtoras e a Petrobrás. O que veio depois nos levaria muito longe e nos desviaria dos trilhos.

O acordo de colaboração foi e continua a ser importantíssimo instrumento de combate à criminalidade mais sofisticada, estendendo sua valia também para organizações especializadas em crimes de violência de sangue. Instrumento precioso, portanto, a salvo de qualquer dúvida ou crítica, nesse específico sentido.

Houve erros, é claro, como o confessionário geral exigido pelo Ministério Público em muitos acordos, o que implicava a confissão de delitos absolutamente desconectados com a organização que deveria constituir o objeto da colaboração. Mas, uma vez exigida e cumprida, há que se reconhecer o direito do colaborador a esta inclusão.

No entanto, um aspecto que chama a atenção, senão desde sempre, mas, sobretudo, em casos de colaborações de maior repercussão, é a desconsideração no tratamento dado a muitos colaboradores, cujo impacto na vida pessoal de cada um deles é olimpicamente ignorado pelas autoridades. 

Não precisa ser observador para saber que quanto maior o número de pessoas apontadas como autoras de crimes pelos colaboradores, maior será a reação contra eles, em todos os níveis. Nesse passo, a proteção deles no direito brasileiro ainda é muito tímida, em termos legislativos.

Se se quiser mesmo continuar a manejar esse valioso instrumento, espera-se que os órgãos da Justiça penal, no mínimo, respeitem os termos do quanto acordado, ao menos enquanto estiver válido e vigente o ajuste, e, mais que isso, que sejam minimalistas em suas pretensões de rescisão de acordos já cumpridos ou em cumprimento. Parece de todo inadmissível requerer a ruptura de acordo por descumprimentos irrelevantes de cláusulas que sequer deveriam ser exigidas, e pretender aproveitar todos os elementos probatórios já fornecidos.

Iniciativas dessa natureza minam a legislação da colaboração premiada e favorecem o discurso da necessidade de sua revogação, a par de ignorar os inúmeros benefícios e resultados dali obtidos.

Mas não podemos deixar de confiar nas instituições envolvidas. Ministério Público e Polícia já atingiram grau de maturidade suficiente para reconduzir os equívocos aos trilhos da Lei. E cabe ao Poder Judiciário a mais relevante das funções, que é separar o joio do trigo, o mau uso do abuso e o direito positivo dos desejos do distinto público.

A justiça penal precisa da colaboração, mas os colaboradores também precisam da Justiça. Eles não podem ser tratados pelo sistema como párias sociais, mas como auxiliares da Justiça Pública. Esse é um dever do Estado e de todas as instituições que se beneficiam das colaborações por eles confirmadas nos processos. A via é de mão dupla; por isso há deveres e direitos.

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