Opinião

Ações retaliatórias do Direito dos EUA e a decisão de Moraes no Inquérito 4.781

Autor

  • Danilo Knijnik

    é advogado professor associado e diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul mestre pela mesma instituição e doutor pela Universidade de São Paulo.

11 de dezembro de 2019, 6h02

Recentemente, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu determinados procedimentos fiscalizatórios realizados pela Receita Federal, considerando os indícios de dirigismo e seletividade na definição dos alvos a serem fiscalizados[1]. Segundo a decisão, “não se verificou a necessária atuação de forma técnica e impessoal, pois a escolha fiscalizatória em relação a agentes públicos foi realizada sem critérios objetivos”, com “real possibilidade de direcionamento da atividade fiscalizatória para atingir alvos predeterminados” e “quebra das necessárias legalidade e impessoalidade”.

Tal importantíssima decisão bem pode ter inaugurado, entre nós, o fenômeno examinado nos Estados Unidos a partir das chamadas ações retaliatórias, Bivens actions ou ações civis por privação de direitos. Cuida-se de tutela jurisdicional indenizatória, de competência da Justiça Federal americana, contra atos praticados por agentes públicos, tendentes a cercear ou retaliar o exercício das liberdades constitucionais, como o direito à livre manifestação, privacidade, isonomia[2], não autoincriminação, petição etc. A respectiva causa de pedir, tratando-se de autoridade estadual, foi instituída em 1871 com o advento do 42 USC §1983[3]; e, tratando-se de autoridade federal, deduzida diretamente da Constituição em Bivens[4], julgado pela Suprema Corte em 1970.

A rigor, desde tempos remotos, a common law concebia ações de indenização contra prisões ou processos retaliatórios. A grande dificuldade das Bivens actions, porém, sempre residiu no fato de que, via de regra, o ato da autoridade reveste-se de aparente legalidade formal, como, aliás,parece ter sido o caso examinado pelo ministro Alexandre de Moraes. Nem por outra razão, este foi o punctum dolens revisitado em 28 de maio de 2019 pela Suprema Corte americana em Nieves[5], que se debruçou sobre uma prisão realizada no contexto de uma altercação verbal, sustentando o demandante, de um lado, que tudo não passou de retaliação pelo exercício do seu direito de crítica, afirmando os policiais, por outro lado, que apenas prenderam um cidadão embriagado. À raiz do problema, pois, encontra-se a seguinte vexata quaestio: teria a autoridade invocado a justa causa[6]apenas como pretexto para fazer represália, sendo este seu real animus?[7]

Para ficar apenas com a história recente, a Suprema Corte americana, em 2006, decidiu Hartman[8], um caso de processo retaliatório, fixando o entendimento de que a “falta de justa causa para as imputações subjacentes” seria um requisito à admissibilidade da demanda indenizatória nessa hipótese. A isto seguiu-se, em 2012, Reichle, versando sobre uma prisão, ocasião em que a Suprema Corte esclareceu o alcance limitado de Hartman a hipóteses de ações penais retaliatórias[9]. Em 2018 foi a vez de Lozman[10], envolvendo uma suposta perseguição estatal a um cidadão muito contestador e crítico da gestão do município, vítima de uma prisão infrequente, sendo invocado Hartmann a defesa do órgão público, tendo a Suprema Corte esclarecido que “a existência de justa causa [para a prisão] não impede a ação retaliatória de Lozmanpor violação à 1ª Emenda”. Porém, em 2019, Nieves[11]examinou a prisão de um cidadão supostamente embriagado após opor-se criticamente à ação dos policiais[12]. Nessa oportunidade, entre Hartman e Lozman, a Suprema Corte ficou com a tese de que a existência de justa causa, em princípio, torna inadmissível a ação retaliatória, salvo demonstração objetiva de que, não fosse o exercício do direito constitucionalmente protegido, a prisão não teria ocorrido. Nas palavras do presidente da Corte, justice J. Roberts, “se um indivíduo está protestando verbalmente sobre a conduta policial e é preso por atravessar a rua em zigue-zague, a proteção da 1ª Emenda seria insuficiente se a demanda por prisão retaliatória fosse rechaçada pela existência da justa causa”. Portanto, “o requisito da inexistência de justa causa não deve ser aplicado se o autor apresenta evidências objetivas de que foi preso enquanto pessoas em situação semelhante, não envolvidas em algum tipo de discurso constitucionalmente protegido, não foram”.

Diferentemente, o acórdão recorrido do 9º Circuito havia consagrado a tese de que, tratando-se de prisão retaliatória, a ausência de justa causa não faria inadmissível a demanda, como no caso de processo penal retaliatório[13]. Nas palavras da decisão reformada, “o autor não pode promover uma demanda contra uma ação penal retaliatória se as acusações estão embasadas em justa causa, mas isso não se aplica às prisões retaliatórias”. O racional dessa orientação consistiria no fato de que “o indivíduo tem o direito de ser estar livre de ações policiais retaliatórias, mesmo existindo justa causa para essas ações (…). Assim, o juízo singular errou ao concluir que a demanda contra a prisão retaliatória de Bartlett era inviável apenas porque os policiais tinham justa causa para prendê-lo”[14].

A restrição parcial operada em Nieves foi impactada pelo risco de submeter aventuras judiciais ao júri, com excesso de litigiosidade e riscos aos policiais. O acórdão atenua a distinção entre processos e prisões retaliatórios, afirmando que “em ambas demandas, é particularmente difícil determinar se a ação governamental adversa foi causada pela intenção do agente ou pela conduta potencialmente criminosa do autor”. Por isso, “o autor que ajuíza uma ação contra prisão retaliatória deve alegar e provar a inexistência de justa causa para prisão”. Através desse recurso, não se passa diretamente ao exame do elemento subjetivo do agente, de difícil comprovação e passível de subjetivismos, fazendo-se antes um teste objetivo relativo à justa causa, sob pena de “ações duvidosas contra prisões retaliatórias prosseguirem apenas com base em alegações sobre o estado mental do agente policial”, o que é “fácil de alegar e difícil de desmentir”.No fundo, como ponderou o justice N. Gorsuch, “a história mostra que governos algumas vezes tentam regular nossas vidas no detalhe, aguda, completa e exaustivamente. (…). Se o Estado pudesse usar leis não para a sua finalidade, mas para silenciar quem verbaliza ideias impopulares, pouco restaria das liberdades da 1ª Emenda e pouquíssimo nos separaria das tiranias do passado ou dos feudos malignos de nossa própria era”.

Tornando à decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, consta na hipótese analisada que “não se verificou a necessária atuação de forma técnica e impessoal, pois a escolha fiscalizatória em relação a agentes públicos foi realizada sem critérios objetivos e com total ausência de razoáveis indícios de ilicitude”, donde não haveria justa causa “para atingir alvos predeterminados”. Ademais, “de forma oblíqua e ilegal”, constatou-se a pretensão de “de investigar diversos agentes públicos, inclusive autoridades do Poder Judiciário, incluídos ministros do Supremo Tribunal Federal, sem que houvesse, repita-se, qualquer indício de irregularidade por parte desses contribuintes”. Assim, abstração feita a qualquer juízo de mérito, pois desconhecidos os fatos subjacentes, o decisum proferido no Inquérito 4.781 reuniu os principais aspectos examinados nas chamadas ações retaliatórias, prenunciando entre nós, quiçá, uma nova forma de tutela contra atos com desvio de finalidade.

Pois bem, em 2001, a 1ª Turma do STF anulou busca pessoal realizada por agentes policiais, registrando que a suspeita “não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista”, “sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder”[15]. Em 2016, o Pleno do STF estabeleceu que “muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente”, de modo que “os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida”, o que deve ser examinado a posterior, sob pena de “nulidade dos atos praticados”[16]. Por fim, em 2019, o ministro Alexandre de Moraes examinou a legitimidade de ação fiscal desencadeada pela Receita Federal, considerando a falta de justa causa e suas características de seletividade e dirigismo.

Posso estar enganado, mas, salvo melhor juízo, podemos nos encontrar nos umbrais de uma específica e nova forma de tutela jurisdicional, semelhante àquela proporcionada pelas Bivensactionse pelo 42 USC § 1983, que não pode passar despercebida da comunidade jurídica.

[1] Inquérito 4.781, relator ministro Alexandre de Moraes. Texto integral consultado em 30/11/19, disponível emhttp://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Inq4781decisao1ago19.pdf

[2] Em Nieves, Justice Gorsuchrecordou YickWo v. Hopkins, 118 US 356 (1886), analisando uma política discriminatória de fiscalização, contra nacionais chineses operando lavanderias. Segundo o magistrado, “mesmo existindo justa causa para acreditar que os imigrantes chineses violaram leis válidas, esta corte entendeu que a execução discriminatória das leis violava a 14ª Emenda”, na medida em que as autoridades deixavam intactos seus vizinhos concorrentes americanos realizando mesmíssima atividade. Em YyckWo, concluiu-se que“os súditos do imperador da China, que tenham direito de residir, temporária ou permanentemente, nos Estados Unidos, têm direito de desfrutar da proteção da Constituição e das leis”, configurando-se a aplicação discriminatória da lei uma “denegação do princípio da proteção isonômica perante as leis e violação à 14ª Emenda à Constituição”, exigindo fossem “severamente reformadas” as decisões recorridas.

[3] “Ação Civil por Privação de Direitos: Toda pessoa que, sob autoridade de qualquer lei, norma, regulamento, costume ou uso, de qualquer Estado, território ou do Distrito de Columbia, sujeitar, ou fazer com que seja sujeito qualquer cidadão dos Estados Unidos, ou pessoa sob sua jurisdição,a perda de quaisquer direitos, privilégios ou imunidades garantidos pela Constituição e pelas leis, ficará responsável perante a parte lesada mediante ação judicial com base na lei, na equity ou no competente procedimento (…)”. Tendo em vista a estrita legitimação ativa desta demanda – qualquer cidadão americano ou pessoa sob sua jurisdição – a Suprema Corte concedeu, em 28 de maio de 2019, writ of certiorari; e colheu os argumentos orais, em 12 de novembro de 2019, no caso Hernandez v. Mesa, no qual um policial americano de fronteira efetuou um disparo que veio a atingir uma criança mexicana do outro lado da fronteira. Indaga-se se a vítima está legitimada a uma Bivens action.

[4] Bivens v. Six Unknown Agents, 403 US 388 (1970).

[5] Nieves et al. v. Bartlett, 587 US __ (2019). O voto em parte divergente do justice Gorsuchbem explicitou o dilema sempre subjacente à questão: “o Sr. Bartlett alega que a real razão de os policiais terem efetuado sua prisão não tem nada a ver com ameaças, mas tudo a ver com sua decisão de exercer seu direito a livre manifestação, decorrente da 1ª Emenda, dando vazão a suas opiniões para os policiais. Bartlett sustenta que a retaliação dos policiais pelo exercício do direito decorrente da 1ª Emenda legitima a pretensão de perdas e danos,conforme 42 USC § 1983”.

[6] Num esforço enorme de simplificação, o direito americano trabalha com dois conceitos básicos: reasonable suspicion e probable cause. Sua tradução mais fidedigna, a nosso ver, corresponderia aos homólogos brasileiros “fundada suspeita” e “justa causa”. Encontra-se aguardando decisão na Suprema Corte americana, ainda sem data para anúncio, Kansas v. Glover(autos 18-556) cujos argumentos foram apresentados em 4 de novembro de 2019, no qual certamente o conceito de “reasonable suspicion” será refinado.

[7] Em síntese, cuida-se de estabelecer o nexo de causalidade da ação retaliatória – seja uma prisão, um tratamento anti-isonômico, um processo penal – causadora do dano da vítima, e o exercício da atividade constitucionalmente protegida. Em 1976, a Suprema Corte abordou o tema da causalidade, no julgamento de Mt. Healthy City Bd. of Ed. v. Doyle, 429 US 274 (1977). Doyle, professor temporário, cuja estabilidade seria adquirida caso fosse recontratado – foi dispensado. Vários motivos foram invocados para tanto, dentre os quais uma entrevista que Boyle concedera, criticando o que chamou de novo dress code da instituição. Em primeiro grau, o juiz concluiu que o exercício do direito de manifestação tivera um papel substancial na dispensa do professor, decisão esta confirmada em apelação. A Suprema Corte, porém, entendeu que, em ações retaliatórias, o animus deve ser um “but-for” do dano, ou seja, ou uma condição sine qua non, sendo insuficiente seu papel coadjuvante na edição do ato. O tribunal, então, reformou as decisões recorridas, tornando os autos às instâncias ordinárias, para examinar se, excluída a conduta protegida constitucionalmente (no caso, a entrevista de Doyle), a decisão de não-recontratação teria sido igualmente formalizada, caso em que o animus não poderia considerar-se um but-for do dano.

[8] Hartman et al. v. Moore, 547 US __ (2006) (slip opinion).

[9] Reichle v. Howards, 566 U.S. 658 (2012) versou sobre a chamada “imunidade qualificada”, mas introduziu alguns esclarecimentos importantes na matéria. In casu, policiais prenderam Howard após este ter-se aproximado do vice-presidente americano Cheney em momento de interação deste com o público, exclamando: “sua política para o Iraque é repugnante” e tocando o ombro do vice-presidente. Ao ser indagado pelos policiais se havia encostado no corpo do vice-presidente, respondeu negativamente e acrescentou: “Se vocês não querem que as pessoas manifestem sua opinião, deveriam fazê-lo evitar lugares públicos”, sendo então preso. Ajuizada uma Bivens action em seu favor, sustentou que tal prisão fora uma represália ao direito de livre manifestação, enquanto que os policiais arguiram sua imunidade qualificada, bem como a presença de justa causa, com base em Hartman. A Suprema Corte ressaltou que Hartman tratava de processo penal retaliatório, não de prisão. No primeiro caso, o dano é causado por um agente (o órgão acusatório imune) e a ação é atribuída a outro agente (os investigadores), tornando a relação de causalidade reclamada por Yick Woo v. Hoopkins mais difícil de estabelecer: “uma acusação retaliatória envolve uma relação de causalidade particularmente atenuada entre o animus retaliatório do réu e o dano sofrido pelo autor”, pois “o réu, tipicamente, não é o promotor que deduziu as acusações que causaram o dano, pois dispõe de imunidade absoluta quando decide ajuizar ação penal; ao contrário, o réu principal é o agente que levou à decisão do promotor de ajuizar a ação penal. Portanto, existe a intervenção da decisão de um terceiro, o promotor, produzindo um hiato entre o animus do réu e o dano do autor”. Diante disso, a presença de justa causa para a propositura da ação penal inviabilizaria a Bivens action.

[10] Lozman v. City of Riviera Beach, 585 US ___ (2018).

[11] Nieves et al. v. Bartlett, 587 US __ (2019).

[12] Os tribunais superiores brasileiros já afirmaram a constitucionalidade e convencionalidade do crime de desacato (HC 379.269, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator para acórdão ministro Antônio Saldanha Palheiro, 3ª Seção, DJe 30/06/2017; HC 141.949, relator ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 13/03/2018). No Direito americano, para não ferir o direito a livre manifestação e crítica, admite-se a criminalização das “fighting words”, palavras incitatórias ou de combate. Lewis v. City of New Orleans, 415 US 130 (1973) afastou determinada lei que permitia, por sua amplitude,criminalizar manifestações protegidas pela 1ª e 14ª Emendas, salientando que apenas palavras “pela sua própria ocorrência infligem danos ou tende a incitar a iminente quebra da paz” seriam passíveis de punição.Depois, City of Houston, Texas v. Hill, 482 US 451 (1986) considerou inválida lei que criminalizava “interromper um policial na execução de seus deveres”, pois que poderia alcançar “manifestações protegidas constitucionalmente”. Recentemente, Minnesota Voters Alliance v. Mansky, 585 U.S. ___ (2018), afastou lei que, de forma muito vaga, proibia o uso de camisetas com dizeres políticos em cabines de votação eleitoral.

[13] Tudo conforme Reichle v. Howards, 566 U.S. 658 (2012), que modulou Hartman et al. v. Moore, 547 US ___(2006). S. isso, v. nota 7 supra.

[14] Bartlett v. Nieves, 712 F. App'x 613 (9th Cir. 2017), consignando que a saber se o animus do agente policial foi um but-for da conduta, conforme Mt. Healthy City Bd. of Ed. v. Doyle, seria questão de fato para o júri deliberar, o que, em tese, é problemático, não só pelos riscos, mas pela subjetividade, bem como pela possibilidade de um excesso de aventuras judiciais. Entre nós, idênticos problemas não se colocam, pois o juiz analisaria tanto o animus, quando sua natureza de conditio sine qua non da retaliação e, assim, do dano sofrido.

[15] HC 81.305-4, relator ministro Ilmar Galvão, 1ª Turma, DJ 22.02.2002.

[16] RE 603.616, ministro Gilmar Mendes, Pleno, j. 05/11/2015, Repercussão Geral – Mérito.

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    é advogado, professor associado e diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre pela mesma instituição e doutor pela Universidade de São Paulo.

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