Paradoxo da Corte

Recente precedente do STJ sobre o conflito entre coisas julgadas

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

10 de dezembro de 2019, 8h00

A ordem descortina-se essencial tanto à vida individual quanto ao convívio no seio da coletividade. Toda sociedade, independentemente de seu grau de evolução, pressupõe mínima organização, sem a qual de modo algum poderia subsistir. Conhecida é, a propósito, a exortação de Goethe, no sentido de que é preferível alguma injustiça à desordem, numa significativa demonstração de que ao seu sagaz espírito não passou despercebido que a existência normal do ser humano impõe uma estabilidade que só a ordem permite proporcionar. Essa exigência de ordem, que traz implícita a noção de segurança, indispensável a qualquer modalidade de convivência, é de tal sorte profunda, que, ao longo do tempo, irrompe espontânea e natural (Theophilo Cavalcanti Filho).

Com o desenvolvimento da sociedade, uma das principais funções das instituições públicas é a de construir estruturas de ordem e estabilidade para regrar as relações entre os membros da comunidade. Cabe, assim, às normas jurídicas acrescentar a essa estabilidade ordenadora das instituições sociais uma segurança específica e própria, à qual se costuma denominar de segurança jurídica.

Como bem destaca Arthur Kaufmann, na esteira, aliás, de secular concepção, um elemento indispensável da segurança jurídica é a força da coisa julgada das sentenças judiciais, significando que um provimento judicial que adquire tal status não mais pode ser impugnado pelos instrumentos jurídicos ordinários. “O processo se encontra terminado: Roma locuta, causa finita”.

Com efeito, há certos institutos jurídicos que são predominantemente informados pela exigência de segurança e de certeza do direito. É exatamente por essa razão que, nos quadrantes do sistema jurídico brasileiro, nem mesmo a lei nova é passível de influir nos domínios da coisa julgada material, como claramente se infere do disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”), e no artigo 6º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”).

Assim, forte nestas premissas, a nossa doutrina, diante do problema de coisas julgadas contraditórias sobre uma idêntica questão jurídica, “gasta energia em torno de um esquema lógico pautado entre o valor da coisa julgada e o significado da ação rescisória. Por um lado, se diz que a primeira coisa julgada deve prevalecer em razão de a segunda estar a ferir o valor da coisa julgada, assegurado na Constituição Federal. Não teria sentido admitir que uma coisa julgada que não pode se formar é capaz de superar a coisa julgada que se formou validamente e tem a proteção constitucional. De outro lado, alega-se que, se a ação rescisória é o meio previsto para desconstituir a coisa julgada que se formou com ofensa à coisa julgada, a sua não utilização só pode significar que a segunda coisa julgada é incontestável. A não propositura da ação rescisória representaria a convalidação da coisa julgada formada em detrimento da primeira ou uma espécie de admissão tácita da validade da segunda coisa julgada” (Luiz Guilherme Marinoni).

Em recente julgamento (4.12) proferido nos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial n. 600.811/SP, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça assentou, por maioria de um voto, que na hipótese de conflito entre duas coisas julgadas, com as mesmas partes, mesmas causas de pedir e mesmos pedidos, deve prevalecer o trânsito em julgado da última decisão.

Sagrou-se vencedor o voto do relator, ministro Og Fernandes, ao argumento de que, havendo conflito entre sentenças transitadas em julgado, a segunda coisa julgada é que se torna eficaz, enquanto não invalidada por ação rescisória, textual: "A sentença transitada em julgado por último implica a negativa de todo o conteúdo decidido no processo transitado em julgado anteriormente, em observância ao critério de que o ato posterior prevalece sobre o anterior".

A divergência foi aberta pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, ao sustentar que o instituto da coisa julgada é imutável, e, assim, deve prevalecer a primeira coisa julgada. Seu voto foi secundado pelos ministros Nancy Andrighi, Luís Felipe Salomão, Benedito Gonçalves, Maria Thereza de Assis Moura e Jorge Mussi.

Lembro que acerca dessa importante questão desponta clássica a ponderação do saudoso professor Barbosa Moreira, em passagem memorável de seus Comentários ao Código de Processo Civil: “No direito romano, prevalecia sem dúvida a primeira, já que a segunda, proferida contra a res iudicata, se considerava inexistente e não chegava, como tal, a revestir-se, ela própria, da autoridade da coisa julgada. A concepção moderna, todavia, é bem diversa. A decisão que ofende a res iudicata nem é inexistente, nem sequer nula de pleno direito, mas apenas suscetível de desconstituição, por meio de recurso ou de ação impugnativa autônoma, conforme a opção de cada sistema jurídico. No ordenamento pátrio, v.g., semelhante decisão transita em julgado como qualquer outra e, enquanto não rescindida, produz todos os efeitos que produziria se nenhum vício contivesse. Seria evidente contra-senso recusar-se eficácia à segunda sentença, depois de consumada a decadência, quando nem sequer antes disso era recusável a eficácia. A passagem da sentença, da condição de rescindível à de irrescindível, não pode, é claro, diminuir-lhe o valor. Aberraria dos princípios tratar como inexistente ou como nula uma decisão que nem rescindível é mais, atribuindo ao vício, agora, relevância maior do que a tinha durante o prazo decadencial. Daí se infere que não há como obstar, só com a invocação da ofensa à coisa julgada, à produção de quaisquer efeitos, inclusive executivos, da segunda sentença, quer antes, quer (a fortiori!) depois do termo final do prazo extintivo”.

Não obstante, não é preciso muito esforço para se entender que se faz impossível, sob a perspectiva prática, a coexistência de coisas julgadas antagônicas, sobretudo quando já transcorrido o biênio para o manejo da ação rescisória.

Qual seria então a solução processual desse árduo problema?

Embora sem previsão expressa entre os fundamentos passíveis de impugnação pelo executado, no rol do parágrafo 1º do artigo 525 do vigente Código de Processo Civil, entendo, com Luiz Guilherme Marinoni, ser induvidoso que a coisa julgada anterior impede a exigibilidade do direito reconhecido na segunda sentença transitada em julgado.

Desse modo, a arguição da precedente coisa julgada sinaliza ao juiz que o título exequendo se lastreia numa res iudicata ofensiva a um anterior julgado. É dizer: “numa decisão proibida pelo direito”. Daí, porque o executado pode deduzir, como matéria de defesa,a exceção de coisa julgada, e consequentemente a “inexigibilidade da obrigação”, em consonância com o inciso III do supra apontado artigo 525. Tenha-se presente que a possibilidade de invocar a coisa julgada anterior no bojo da impugnação não se confunde com o prazo para o ajuizamento da ação rescisória. Se a ação rescisória, ainda cabível, não obsta a dedução de coisa julgada anterior na impugnação, não há qualquer razão para se imaginar que a precedente coisa julgada não possa ser invocadapara embasar a impugnação depois de decorrido o prazo para a ação rescisória (Marinoni).

Concluindo: diante de coisas julgadas contraditórias, ultrapassado o prazo de aforamento da ação rescisória, o interessado tem dois diferentes caminhos para arguir a anterior existência de coisa julgada“contrária”, quais sejam: a) o ajuizamento de ação declaratória de ineficácia do título, ou, então, b) preferindo aguardar a investida do exequente, suscitar a inexigibilidade da obrigação como fundamento da impugnação ao cumprimento definitivo da sentença condenatória, nos termos do artigo 525, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil.

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