Museu da imprensa

Morre um símbolo da primeira geração de jornalistas do DF

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10 de dezembro de 2019, 17h00

Morreu na manhã desta segunda-feira (9/12), em Brasília, aos 72 anos, o jornalista e empresário Ronaldo Junqueira, que foi diretor de Redação do Correio Braziliense e protagonista de relevo da primeira geração de jornalistas da Capital Federal que migrou do Rio de Janeiro para Brasília. Uma época em que, sem orçamento para sustentar repórteres, os jornais recostavam-se no poder público para poder manter suas equipes.

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Jornalista e empresário Ronaldo Junqueira
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Líder estudantil no Rio, onde se sentia ameaçado, Junqueira contava que foi esconder-se em Brasília, onde vendia livros ("Tesouro da Juventude", "Receitas da Tia Benta", etc).

Convidado para trabalhar na Última Hora, passou a trabalhar no jornal pela manhã, vender livros à tarde e frequentar a escola à noite. Ali mesmo, passou a emprestar dinheiro para jornalistas.

Com as três rendas (salário do jornal, lucro com livros e os juros dos empréstimos) passou a comprar terrenos. E virou corretor também. “Meu salário de jornalista sempre representou menos do que minhas atividades paralelas”. E montou um imobiliária.

Mais tarde montaria também uma fábrica de artefatos de concreto. Em 1982 já era editor-geral do Correio Braziliense (CBz). “É mais frequente eu me envergonhar de ser jornalista que de ser empresário”, costumava dizer. E explicava seu pragmatismo com naturalidade: “Isso aqui é um negócio. Nem é panfleto nem é jornal-laboratório”.

Em uma passagem que ajuda a entender o contexto dos anos 1980, ele chefiava a reunião semanal com os editores do jornal quando sua secretária lhe cochichou. O presidente do Senado, Moacir Dalla, queria falar com ele. Junqueira tapou o bocal do aparelho e se dirigiu à equipe. “Olha aí, pessoal, quem vai entrar no trem da alegria do Senado?”.

Muitos dos que ali estavam já haviam garantido suas passagens em anos anteriores. “Nesse eu não entrei”, gritou João Batista de Abreu, o “Bolão”, que na época era o editor de Nacional do jornal. Junqueira ditou o nome ao senador e mandou um abraço e a reunião prosseguiu normalmente.

Retrato de uma época, o depoimento de Ronaldo Junqueira, em 1989, para um livro que não chegou a ser publicado, é um mergulho na história que contribui para compreender a formação do jornalismo brasileiro atual — em especial do jornalismo político.

Leia o depoimento de Ronaldo Junqueira:

“O Estado detém 70% da Economia, como empregador, investidor e tributador. Brasília é a sede desse poder descomunal. E é aqui a maior concentração de jornalistas por metro quadrado do país. Depois de 20 anos de jornalismo em Brasília, 12 no CBz e seis como editor-chefe, tenho feito uma autocrítica sobre o tratamento que a imprensa dá a esse grande pai, o governo."

“O governo faz, o governo pune, o governo dá, o governo prende, o governo favorece, o governo prejudica e quase todas as manchetes vão para o governo. Aí, o que acontece, a imprensa acaba transferindo para a sociedade as responsabilidades e os problemas que são de Estado. E isso vai dar nessa crise, nesse baixo astral, porque o governo não resolve os problemas e passa-se a acreditar que é o país que não pode resolver os problemas."

“Por que não cresce a venda de jornais, mesmo com o aumento da população? Porque eles estão chatíssimos. Pra quê tanto espaço para noticiar que o Murad deixou o Palácio? O leitor não está interessado nas longas matérias sobre a eleição dos Paes de Andrade e a composição da mesa diretora da Câmara. Não está nem interessado para as aventuras da Erundina em São Paulo ou de Saturnino no Rio de Janeiro."

“Aí, quando se fecham as contas da balança comercial e dá um saldo de US$ 16 bi, o governo se assusta, todo mundo fica sem entender. Ora, quem produziu esses bilhões foi o interior do país. Foi o Brasil real que não lê jornal e está cagando para a Erundina e para o Saturnino."

“Então, o que deve ser feito? Os jornais devem parar de cobrir só o sr. José Sarney, deixar um pouco a banda podre e mandar um correspondente para o Brasil. E o que estamos tentando fazer aqui no CBz: colocar correspondentes no Brasil que está longe. Eu, por exemplo, não leio mais jornal. Estou de saco cheio com tudo isso. Outro dia, eu estava indo para Unaí e me deparei com uma magnifica cultura de soja. Mais de 30 quilômetros de terras às margens da estrada plantados. Eu parei e pensei comigo: se eu tivesse que escolher uma foto do Brasil, eu escolheria essa — Uma estrada toda esburacada, mal sinalizada, estreita e em volta dela uma maravilha de progresso.

“Então, eu digo aos meus editores e ninguém entende, nós precisamos trazer o Brasil de volta para os jornais. Se eu mando um repórter mostrar o Brasil de Unaí, sabe o que ele me traz? — me traz a foto da estrada. Só da estrada esburacada. E o que isso vai representar na cabeça do leitor é que o Brasil é essa estrada. Não é. A estrada é o Estado, o governo. E tudo aquilo que depende da iniciativa do governo."

“Nos últimos 25 anos, as faculdades, em vez de ensinar, dedicaram-se a doutrinar os estudantes. E cada formando tem saído da escola com a noção de que cada jornal tem que ser uma barricada para derrubar o capitalismo. Eles estão como Charles Chaplin, no “Tempos Modernos”, com a chave de apertar parafusos nas mãos e já não há parafusos, mas o movimento condicionado continua. Já que não há uma ditadura para contestar e lutar contra, então o rapaz ou a moça vão contestar a realidade. Na verdade, eu acho incrível que os jornais ainda vendam tanto. Eles deveriam vender só a metade, porque só estamos conseguindo refletir o teatro do absurdo que mora longe do Brasil real."

“Quanto ao jornalista de Brasília, você não pode deslocá-lo de seu habitat, da realidade que o cerca. Esse jornalista é ele, seu clube, seus restaurantes, seus amigos. Alguns jornais passaram a deslocar jornalistas de outros estados para virem a Brasília como se fossem cobrir outro planeta."

“Ora, se os jornalistas de Brasília dão muito governo é porque em Brasília tem muito governo. E quando os jornalistas do Rio e de São Paulo chegam aqui, eles também dão muito governo. Como se pode pedir isenção a um profissional que entrevista um deputado pela manhã e que vai encontrá-lo num restaurante mais tarde? A fonte se transforma mesmo numa pessoa amiga. E não se pode ser jornalista inimigo da fonte."

“Isso não só em Brasília. Isso ocorre na Fiesp, em São Paulo, na CBF na Febraban, na Petrobras e no BNDS no Rio. Se o CBz (Correio Braziliense) e o JBr (Jornal de Brasília) assumem a defesa do Congresso, isso é natural. Na ditadura, aconteciam as mesmíssimas coisas que acontecem hoje e ninguém denunciava porque toda a imprensa fazia o lobby da democracia. Em Paris, Madri, Washington, como se relaciona a imprensa com o congresso, com o Executivo? Nos Estados Unidos você vai ter o Watergate porque o Estado, nos EUA, não comanda a economia. Lá, o grande anunciante dos jornais não é o governo.

“O que ainda não se estabeleceu entre os jovens jornalistas é que não há diferença nenhuma entre o cheque por serviços prestados à Fiesp e outro pago pelo Cimi. Do ponto de vista do produto final é tão imoral o engajamento do repórter com o Congresso, onde ele recebe um salário, quanto o engajamento do jornalista com teses da CNBB — mesmo sem salário. O leitor estará sendo empulhado da mesma forma."

“Eu acho que não se pode analisar o que é o jornalismo em Brasília sem antes traçar o perfil psicológico do jornalista brasileiro. Quando eu entrei na profissão, há 22 anos, o jornalismo era uma profissão de boêmios. Hoje, é uma profissão de frustrados. Análise crítica da realidade virou contestação dos fatos. Ora, não se briga com a realidade. E a coisa está piorando."

“Na ditadura, entrava um repórter recém-formado e levava dois anos para cair na real. Hoje, cinco anos de vivência não são suficientes para fazer com que o cara deixe de ser um estudante universitário. E um maniqueísmo resistente e cômodo. Os sindicalistas, a igreja reclamam que nós os tratamos duramente. Ora, o Lula que nós cobríamos em 78 era o líder sindical. E o sindicalismo não era o braço de um partido."

“A Igreja estava voltada para o além. A igreja e o sindicato faziam parte da grande frente da sociedade. A partir de certo momento, eles se desligaram dessa frente para assumir posturas político-partidárias. Entraram no mesmo circuito do PMDB, do PDS do PFL — ou seja, passaram a disputar o poder como uma facção. Então, para mim, não se pode cobrir diferente o Lula e o Jarbas Passarinho. Agora um jovem tende a pensar que não. Está errado."

Você junta cinco engenheiros e tem uma pequena empreiteira. Junta cinco advogados e tem um escritório de advocacia. Junta cinco jornalistas e não consegue mais que uma mesa de bar. Aí você entra em outro escaninho do perfil psicológico do jornalista. A vocação inata para ser empregado. Ser chefe, empresário, patrão é uma coisa feia. Então você vai ter uma crise de direção. A crise do patrão."

Há escola para repórteres, mas não há escola para patrões. Talvez seja isso que aproxime tanto um repórter do PT — a sua vocação para empregado. Eu acho que não se deveria contestar a realidade, mas muitas verdades estabelecidas. Por exemplo, a imagem da inflação eterna. Se um dia essa inflação acabar, o jornalista econômico vai ficar também como Chaplin nos “Tempos Modernos”. Acho que a imprensa brasileira deveria sinalizar contra a figura do Estado “grande-pai”."

"Contribuir para uma mentalidade como a do norte-americano que quer um Estado que não apareça e não a de um Estado que resolva todos os seus problemas. Uma imagem que a imprensa brasileira acaba fomentando quando atribui e cobra do governo tudo no mundo. Veja só a unidade da federação que menos aparece na imprensa — Santa Catarina. Ali você tem uma sociedade civil organizada, um estado estruturado, um governo que não aparece. É um Estado próspero, arrumadinho, onde tudo funciona. Logo, não interessa à mídia, quando deveria ser o contrário."

“Não acho que CBz vá ser diferente se eu resolver demitir todos os jornalistas que têm emprego público — uns dez no congresso, outros dez nos demais órgãos públicos, num universo de 136 profissionais. O jornalista não vende sua alma. Ele vende a sua capacidade de trabalho. Nós convivemos com isso e sabemos distinguir quando há engajamento influindo no noticiário."

“Se o embaixador do Marrocos convida um jornalista do CBz para visitar seu país como eu devo reagir? — Editorialmente, isso não interessa ao CBz. Não sei se eu estarei certo se for impedir que o repórter amplie seus conhecimentos e, depois de passar um ano ou mais batendo perna de embaixada a embaixada, possa usufruir de algum prazer com uma viagem. Se eu não o deixar ir, estarei desconfiando de sua isenção. Mas se eu não confio na sua isenção então eu devo demiti-lo. Então, para mostrar nossa isenção eu resolvo pagar sua passagem e sua estadia. Mas se ele tiver para propensão para prevaricar, não adianta eu pagar tudo. Ele vai prevaricar de qualquer modo."

“Eu não vou demitir meus jornalistas que trabalham no Congresso só para ser vestal. Eu só mudaria se fosse para melhorar meu noticiário. Caso contrário fica tudo como está. De qualquer maneira, os novos jornalistas que chegam nós já não estamos permitindo o acúmulo de empregos."

“A grande obra desse governo, na área da imprensa, é involuntária. Ele é tão bagunçado que não sabe nem comprar a imprensa. Nos seus 30 anos de existência, o CBz nunca esteve tão liberado. Como é que um governo que tem um Prisco Vianna, um Carlos Sant’Anna e um ACM pode ser considerado uma entidade só."

(Já tentaram lhe subornar?) “A gente convive com pressões de todos os lados. Nessa cadeira em que você está sentam-se representantes de tudo quanto é setor. Na campanha presidencial de 1984, o Calim Eid e o Mauro Salles não saiam dessa sala. Mas eram pressões legítimas. Ilegítima seria a forma como eu fosse tratar essa pressão. Em outros tempos o CBz publicava matéria paga como matéria editorial. Não havia distinção. Hoje, essa conversa começa pelo departamento comercial. O que se faz, como ocorreu hoje, no momento em que o Banco do Brasil publica quatro páginas e meia de balanço em todos os jornais do Brasil, não se ignora um release que vem pela assessoria de imprensa. Mas isso nenhum jornal ignora. Mesmo porque é matéria de interesse do leitor, entender o que significa o resultado do balanço do BB."

“Enquanto o Ary Cunha foi presidente do BRB o CBz não operou qualquer transação com o banco. Nem mesmo desconto de duplicata. E isso, para um cliente de 23 anos do banco não é pouco. O CBz tem a conta de nº 00002 no BRB. Para o CBz foi péssimo, porque perdemos acesso ao banco."

“O Samuel Wainer pertenceu à época ingênua da imprensa. Uma época em que se precisava levar uma mala de dinheiro debaixo do braço para comprar um jornal. Hoje a coisa é sofisticada. Um jornalista é comprado com um emprego de professor numa faculdade privada e ninguém jamais vai ligar coisa com coisa.”

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