Contas à Vista

O significado de equilíbrio fiscal intergeracional nas PECs de Paulo Guedes

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

10 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Todos sabemos que as palavras importam, pois é através delas que primordialmente expressamos nossas ideias. Isso se torna ainda mais relevante em algumas áreas do conhecimento que usam palavras da linguagem usual para definir seus conceitos, tal como no Direito. A palavra tradição, por exemplo, tem um significado na linguagem comum (respeito aos valores consolidados de uma sociedade) e outro na linguagem do direito civil (transferência da propriedade de coisa móvel). Os exemplos poderiam se multiplicar, mas isso nos desviaria do ponto central de análise, que é o significado da expressão equilíbrio fiscal intergeracional, que consta da PEC 188 proposta pelo Ministro Paulo Guedes.

Hoje vigora o seguinte texto no caput do art. 6º da Constituição:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

O que busca a PEC 188 é acrescer o seguinte parágrafo único ao art. 6º:

Parágrafo único. Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional.

Aqui está o ponto central a ser analisado: qual o significado de “equilíbrio fiscal intergeracional”? Observe-se que, se aprovado este texto, será criado um “direito” a tal equilíbrio, o que é relevante e trará impacto no planejamento das políticas públicas que vierem a ser criadas e implantadas nos próximos anos.

Equilíbrio leva à ideia de uma balança, de estabilização, de algo que tenha sustentabilidade. Tem a ver com a ideia de isonomia, relativo ao princípio da igualdade, de tratar as pessoas desigualmente na medida de suas desigualdades.

Fiscal é um conceito central ao Direito Financeiro, que tem correlação com dinheiros públicos, seja no âmbito da receita, da despesa ou do crédito. O orçamento fiscal é um dos três âmbitos que a Lei Orçamentária Anual deve compreender (art. 165, par. 5º, CF).

Casar as duas primeiras expressões (equilíbrio + fiscal) nos leva a acreditar na necessidade de que exista uma espécie de sustentabilidade financeira, envolvendo receita, despesa e crédito, de tal modo que a balança (ou os balanços) se torne equilibrada, sustentável. Duas das PECs do Ministro Paulo Guedes se referem à sustentabilidade financeira em diversos artigos (PEC 186: art. 163, VIII; art. 164-A e seu parágrafo único; e em diversas passagens de sua justificação; PEC 188: art. 163, VIII; art. 165, §2º; art. 164-A, parágrafo único; art. 135-A e seu §2º, I; art. 115, §§ 1º, 2º e 3º; além de diversas partes de sua justificação).

Porém há uma terceira palavra nesse contexto, que é intergeracional, cujo significado implica em um olhar de uma geração à outra, de modo diferido no tempo. Nossos filhos e netos fazem parte da futura geração, a depender de já terem nascido ou não (desconheço a situação familiar do caro leitor), do mesmo modo como fizemos parte das futuras gerações a partir da ótica de nossos antepassados. É nesse iter entre diferentes gerações ao longo do tempo que se insere a expressão intergeracional.

Acrescendo este último termo ao conceito, composto de três palavras (equilíbrio + fiscal + intergeracional) pode-se ter uma visão mais nítida do seu significado. A ideia central é que receita, despesa e crédito devam ser utilizados não apenas no interesse da atual geração, mas também no das futuras. Ou seja, não basta olhar o aqui e agora, mas também o amanhã, à luz da sustentabilidade financeira. Não basta empatar a receita e a despesa em um exercício fiscal. É necessário que as finanças públicas tenham sustentabilidade a médio e longo prazos, observadas, em especial as pessoas, pois o Direito deve servir ao homem, e não às finanças.

Observando o comando normativo do caput do art. 6º, ao qual se pretende subordinar este parágrafo único, que introduz o conceito de equilíbrio fiscal intergeracional, identifica-se que ele trata dos direitos sociais, de forma nominativa: educação, saúde, alimentação, trabalho etc. Logo, o equilíbrio fiscal intergeracional deve obrigatoriamente se referir a esse grupo de direitos, definidos como sociais. Ou seja, o equilíbrio fiscal buscado deve se subordinar à intergeracionalidade dos direitos sociais, que devem ser assegurados não apenas à atual geração, mas também às futuras. Logo é necessário investir nas pessoas (na linguagem atual: no capital humano) não somente para lhes garantir esses direitos hoje, mas também para as futuras gerações.

Para John Rawls um sistema econômico não é apenas um dispositivo institucional para satisfazer desejos e necessidades existentes, mas um modo de criar e modelar necessidades futuras. Diz o filósofo:

Cada geração deve não apenas preservar os ganhos de cultura e civilização, e manter intactas aquelas instituições justas que foram estabelecidas, mas também poupar a cada período de tempo o valor adequado para a acumulação efetiva de capital real. Essa poupança pode assumir várias formas, que vão do investimento líquido em maquinário e outros meios de produção ao investimento na escolarização e na educação[1].

Rawls pensava nas vantagens civilizatórias existentes na sociedade, que poderiam ser transferidas e acumuladas de uma para outra geração. Como as gerações se sucedem no tempo de maneira unidirecional, por qual motivo os contemporâneos deverão poupar para as gerações futuras? Por que não usam ou dissipam tudo na sua (atual, presente) geração? Para comprovar a existência dessa preocupação intergeracional, devem se pressupor dois aspectos: (1) As partes interessadas (as pessoas em sociedade) representam linhagens familiares, assim, as famílias presentes normalmente se preocupam (pelo menos) com seus descendentes mais próximos; e (2) o sistema de poupança que vier a ser desenvolvido deve ser aplicado de tal forma que a atual geração desejaria que a geração predecessora o tivesse seguido.

Quanto deve ser poupado pela geração atual para que essas trocas intergeracionais ocorram de forma justa é variável de acordo com o desenvolvimento de cada pessoa ou sociedade. Diz John Rawls que: “Quando as pessoas são pobres e poupar é difícil, deve-se exigir uma taxa mais baixa; ao passo que, em uma sociedade mais rica, maiores poupanças devem ser racionalmente esperadas, já que o ônus real da poupança é menor”.[2] Observe-se que o raciocínio de Rawls parte de uma “lógica individual” (pessoas pobres, difícil poupança) para uma “lógica social” (sociedade rica, maior poupança).

É impossível ser específico acerca dos percentuais de poupança – prossegue Rawls –, embora se possa partir de algumas cogitações, tais como perguntar aos membros da atual geração o que se deve esperar das futuras gerações a cada nível de desenvolvimento. Nesse sentido,

imaginando-se no papel de pais, devem definir o quanto deveriam poupar para seus filhos e netos, com referência ao que se acreditam no direito de reivindicar de seus pais e avós. Quando atingirem o que pareça justo da perspectiva dos dois lados, e que inclua uma margem para melhorias circunstanciais, então a taxa justa (ou o limite de variação de taxas justas) para esse estágio está especificada.[3]

Mas, poupar para quê? É Rawls quem dá a resposta:

A justiça não exige que as gerações anteriores economizem para que as posteriores sejam meramente ricas. A poupança é exigida como uma condição para que se promova a plena realização das instituições justas e das liberdades iguais. (…) É um erro acreditar que uma sociedade boa e justa deve aguardar a vinda de um alto padrão de vida material.[4]

Não se deve usar a poupança pública que vier a ser feita visando enriquecer as futuras gerações, mas para fortalecer as instituições que permitam exercer a liberdade com maior igualdade[5]. Claro que essas considerações vão muito além dos direitos sociais previstos no art. 6º, incluindo, dentre outros, o direito ao meio ambiente, inserido no art. 225 da Constituição.

Isso aponta para duas observações: (1) Os direitos sociais devem ser assegurados hoje, de forma contínua e permanente, sem os quais não haverá futuro, como se exemplifica com os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à alimentação, à maternidade etc. Sem eles o desinvestimento social terá o mesmo efeito de uma bomba de nêutrons para grande parcela da população, pois exterminará as pessoas, mantendo o patrimônio[6]; e (2) É importantíssimo ter os olhos voltados para a questão do crédito público, pois seu mau uso pode ocasionar o esgotamento das fontes que devem amparar esses investimentos em capital humano, transformando o orçamento em um instrumento de reprodução do capital, amparando primordialmente o pagamento dos juros e a repactuação do serviço da dívida. Em primeiro lugar, deve vir a pessoa humana, e o Direito Financeiro tem importante papel a desempenhar na análise e implementação desses direitos, seja para a presente, seja para as futuras gerações.

Nesse sentido – enfatizo: apenas nesse exato sentido – é que se deve aplaudir a proposta apresentada pela PEC 188.

Não sei se foi isso que quiseram dizer quando propuseram o texto, sendo possível surgirem interpretações divergentes, em especial de pessoas pouco afeitas ao manuseio dos termos jurídicos. Registro, contudo, que mantida a atual redação proposta, não há espaço na hermenêutica jusfinanceira para outros sentidos no texto, pois as palavras empregadas necessariamente nos levam às conclusões expostas.


[1] John Rawls, Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 286.

[2] John Rawls, Uma teoria … cit., p. 319.

[3] John Rawls, Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 385 e ss.

[4] John Rawls, Uma teoria … cit., p. 322.

[5] Para esse tema, ver: Fernando Facury Scaff, Orçamento Republicano e liberdade igual. BH: Fórum, 2018.

[6] “A bomba de nêutrons tem ação destrutiva apenas sobre organismos vivos, mantendo, por exemplo, a estrutura de uma cidade intacta”, conforme a Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bomba_de_n%C3%AAutrons

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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