Embargos culturais

Camus, o estrangeiro e o absurdo do teatro judicial

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

8 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Afinal, ele é acusado de insensibilidade pela morte da mãe ou por ter assassinado um homem? Essa é a questão central que Albert Camus nos coloca em O Estrangeiro[1], livro publicado na França, em 1942. Os nazistas ocupavam a França. A Peste, do mesmo autor, é uma metáfora sobre essa ocupação, de triste memória. O Estrangeiro, de algum modo, sustenta a narrativa pelo desespero para com a irracionalidade do mundo. É a metáfora do absurdo do teatro judicial.

Camus, nascido na Argélia, foi engajado combatente da Resistência Francesa. Nessa obra, Camus (que levou o Nobel de literatura em 1957), entre tantos pontos provocantes, questionou as várias narrativas que disfarçam e que traduzem essa experiência atormentadora chamada de justiça. Ainda que não seja um romance de tese, Camus comprova-nos que a linguagem é construtora da própria realidade e não um instrumento para descrevê-la. Quando falamos, não descrevemos o mundo. Quando falamos, criamos um mundo.

Narrado em primeira pessoa, Mersault (cujo primeiro nome Camus não revela), O Estrangeiro é um livro dividido em duas partes bem distintas. Na primeira delas relata uma trajetória aparentemente banal e sem maiores incidentes, até o trágico homicídio, ocorrido em uma praia argelina. Camus cria uma personagem absolutamente indiferente a tudo: Marsault é o símbolo recorrente do tanto faz. A segunda parte é o relato de um julgamento cujo resultado já fora definido. A impassibilidade de Marsault é o ponto de partida para a discussão em torno da condição humana.

O primeiro parágrafo (um dos mais emblemáticos da história da literatura) comprova essa impassibilidade: “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentido pêsames. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem[2]. A apatia acompanha o narrador, que Camus contrabalança com recorrentes menções ao sol e ao calor. O sol, no limite, seria uma das causas explicativas do homicídio, se é que alguma causa poderia ser invocada na defesa de Marsault. O calor e a luminosidade do céu contrastam com a escuridão da prisão, onde se desenrola a segunda parte do livro. O sol aparece toda hora.

Para futura infelicidade do narrador, ao enterro da mãe (que vivia em um asilo) seguiu um encontro amoroso (com Marie Cardona), uma ida ao um cinema (o filme era uma comédia) e uma sequência de situações que no futuro serão exploradas por um promotor frio e obcecado com a condenação e com a fama, sempre em nome do povo francês. O velório e o enterro foram enfadonhos. Marsault reconheceu que nada mais acrescentava à mãe, e que mãe também nada lhe teria para oferecer. Porque Marsault recebia um ordenado módico, não poderia cuidar da mãe, que terminou a vida em um asilo. Tudo muito francês. Tudo muito impessoal.

Marsault viveu um idílio com Marie. A cena do beijo no mar, quando lábios aliviam o sal, é encantadora. Raymond, um vizinho de Marsault, agridiu uma mulher, que explorava. Marsault testemunhou a seu favor. Mais tarde pagará caro por isso. Ao longo do texto Camus insere alguns árabes, o que marca fortíssimos conflitos raciais que ocorriam no norte da África, e também na França, que hostilizava argelinos, marroquinos e tunisianos. Justamente em um conflito com um grupo de árabes é que Marsault assassinou um deles. Foram quatro tiros. O homicida registrou que aqueles quatro disparos foram quatro batidas secas nas portas da desgraça[3]. Tinha noção do determinismo que o acorrentava.

Marsault foi preso. Achava que seu caso era simples e que não precisava de advogado. Foi interrogado várias vezes. Um defensor indicado pelo governo atuou a seu favor. Camus conta-nos que era um advogado baixo e gordo, bastante jovem, cabelos cuidadosamente gomalinados, terno escuro, colarinho duro e uma estranha gravata com listras pretas e brancas[4]. Um tipo comum para quem convive no teatro forense.

Ao invés do homicídio, o que parecia preocupar a todos era o comportamento de Marsault, que era frequentemente recriminado pela suposta insensibilidade que demonstrou com a morte da mãe. Camus pinta-nos um juiz muito religioso, assombrosamente fanático, que mostrava ao réu um crucifixo, exigindo que Marsault se mostrasse arrependido. O juiz estava indignado com a irreligiosidade de Marsault, para quem afirmou que nunca vira uma alma tão empedernida. Os criminosos, continuava o juiz, sempre choravam junto à imagem de dor do crucifixo[5]. Por que Marsault não chorava?

Condenado, menos pelo homicídio, e muito mais pela sinceridade em afirmar-se ateu e chocantemente indiferente a todo, Marsault estava fadado a uma execução sumária, pela guilhotina. Protocolou um recurso, cujo resultado Camus não revela nesse enigmático texto.

O Estrangeiro é uma novela que nos põe frente a mais um absurdo da experiência humana. De algum modo nos afeiçoamos ao homicida, que parece alheio e, portanto, estrangeiro ao mundo no qual vivia. Estranhamente sincero, desprovido de ambições (recusou uma promoção a Paris), Marsault é protagonista que sintetiza as certezas do existencialismo militante: é o símbolo da crença e da fidúcia na possibilidade do impossível.


[1] Albert Camus, O Estrangeiro, Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2017. Tradução de Valerie Rumjanek.

[2] Albert Camus, cit., p. 13.

[3] Albert Camus, cit., p. 64.

[4] Albert Camus, cit., p. 68.

[5] Albert Camus, cit., p. 73.

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