Opinião

É preciso fixar parâmetro judicial para filtrar regulações econômicas arbitrárias

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7 de dezembro de 2019, 6h31

Nos Estados Unidos, há forte cultura de deferência judicial às normas editadas pelas agências reguladoras[1]. De modo geral, somente as regulações claramente “arbitrárias e caprichosas” serão invalidadas no âmbito dos tribunais (arbitrary and capricious standard). Isso porque a Suprema Corte tem afirmado, reiteradas vezes, que “as cortes não devem sobrepor as suas conclusões às das agências[2]”, na medida em que “o escopo do controle judicial de atos administrativos é minimalista[3]”. Adrian Vermeule, para quem o controle judicial minimalista é desejável, explica que:

as agências têm maior legitimidade democrática (political accountability) e expertise técnica para decidir determinadas matérias do que os juízes. Isso se torna tanto mais relevante na medida em que as questões a serem decididas pelo Estado, tais como mudança climática, terrorismo, biotecnologia, (para mencionar alguns) tornaram-se ainda mais complexas[4]”.

Não obstante essa tradicional cultura de autocontenção, os tribunais federais norte-americanos têm exigido que as agências considerem, de forma efetiva, os custos econômicos de suas decisões. Ainda em 1991, por exemplo, o Tribunal de Apelações do Quinto Circuito invalidara norma da Agência de Proteção Ambiental (EPA), que bania o uso e a produção de amianto no país. É que “os custos econômicos decorrentes do banimento de todos os produtos derivados do amianto indiscutivelmente superariam os seus benefícios.” (Corrosion Proof Fittings v. EPA)[5].

No mesmo sentido, em 2011, ao decidir Business Roundtable v. SEC, a Corte de Apelações do Distrito da Colúmbia declarou nula uma norma da Securities Exchange Commission, agência responsável pela regulação do setor de valores mobiliários, sob o fundamento de que os custos econômicos da norma teriam sido quantificados com base em “dados empíricos obviamente precários[6]”.

Em outras situações, a Corte entendeu que, para que determinada regulação seja válida, é necessário que a agência comprove, por meio de dados empíricos confiáveis, que a regulação irá produzir os benefícios alegados. Nesse caso, não bastaria que a agência tivesse uma boa intenção para que uma norma viesse a ser legitimamente editada. Em Chlorine Chemistry Council v. EPA o Tribunal de Apelações do Distrito da Colúmbia anulou regra que impunha limites rigorosos sobre a produção de clorofórmio[7]. Como justificativa, a Corte assentou que os melhores estudos científicos (best available scientific evidence) mostravam que o clorofórmio não produziria qualquer risco à saúde humana se produzido de forma adequada. Nesse cenário, a corte entendeu que os custos econômicos para a indústria desse elemento químico não justificariam os benefícios à população que a agência visava promover.

Da mesma forma, em R.J. Reynolds Tobacco v. FDA[8], a corte assentou que a agência não teria comprovado de forma efetiva que determinadas imagens dispostas nas embalagens desestimulariam efetivamente o consumo de cigarros. Por conseguinte, a norma seria “arbitrária e caprichosa” e, portanto, inválida. Reafirmando esse entendimento, em Pub. Citizen v. FMCSA, o Tribunal de Apelações do Distrito da Colúmbia invalidou regra que limitava o número de horas que motoristas profissionais poderiam trabalhar. Isso porque, segundo o entendimento da corte, a agência havia apurado, suficientemente, “o impacto da regulação sobre a saúde dos motoristas[9]”.

Recentemente, a Suprema Corte americana endossou esse raciocínio em Michigan v. EPA, julgado em 2015, afirmando a Suprema, expressamente, que “antes de impor encargos regulatórios, a agência precisa, obrigatoriamente, levar em conta os custos decorrentes de suas normas[10]”. Por conseguinte, “é arbitrário que uma agência se recuse a considerar custos[11]”.

No Brasil, o número de regulações econômicas ineficientes do ponto de vista custo-benefício cresce a cada dia. Com efeito, verifica-se, aqui, uma cultura regulatória em que uma “boa intenção” da autoridade reguladora justifica a intervenção no domínio econômico. Para agravar a situação, essa cultura se encontra impregnada não apenas no âmbito das agências, mas em todas as esferas do poder público, inclusive nos tribunais. Assim, tem sido comum que encargos regulatórios ineficientes sejam criados sem a ocorrência de benefício real .

Em alguns casos, esse tipo de regulação serve de barreira ao crescimento econômico do país, contribuindo para o mau resultado do Brasil em pesquisas de liberdade econômica. O Instituto Fraser conferiu ao Brasil a 137ª posição em termos de economia mais livre, dentre as 189 que foram analisadas, observado o índice que calcula a liberdade econômica com base nas políticas públicas e instituições de cada país[12]. O Heritage Foundation, por sua vez, assentou que o Brasil ocupa o 153º lugar (de 180) [13] de país mais livre, do ponto de vista econômico, do mundo[14]. Por fim, o Banco Mundial concluiu que é mais custoso abrir um negócio no Brasil do que na Namíbia ou em Papua Nova Guiné[15].

Em outras situações, porém, além de sufocar o crescimento econômico, leis e regulações acabam prejudicando exatamente os grupos que se buscava proteger. Um exemplo recentíssimo é a decisão do Superior Tribunal de Justiça, que proibiu que aplicativos de venda de ingressos cobrassem taxas de conveniência dos clientes. Ora, não podendo cobrar o preço dos usuários dos aplicativos, as empresas acabam repassando o valor ao preço do ingresso. O resultado é que os consumidores que não compram ingressos em aplicativos (geralmente os mais pobres) acabam tendo que participar do rateio do referido preço.

Em outro exemplo, o STJ entendeu abusivo que cinemas proibissem clientes de levar alimentos adquiridos em outros estabelecimentos para o interior de suas salas. As intenções, mais uma vez, eram boas. Os custos econômicos decorrentes da regulação, porém, foram desconsiderados. Nesse caso, não foram levados em conta os custos da perda de receita das lanchonetes do cinema. O principal deles é que, ao limitar o lucro dessas lanchonetes, os cinemas precisarão alocar os custos de operação sobre o preço dos ingressos. Provavelmente, esse preço será majorado, prejudicando os consumidores que vão ao cinema sem a intenção de comprar qualquer snack[16].

Nesse contexto, o ideal seria que o Supremo Tribunal Federal estabelecesse, por decisão do seu Plenário, o conceito de “arbitrário e caprichoso”, em que seriam enquadradas as intervenções econômicas elaboradas sem efetiva análise econômica de custos e benefícios. Esse parâmetro seria aplicável a intervenções no domínio econômico em geral, o que pode vir de agências reguladoras, em forma de resoluções, do Legislativo em forma de lei e dos tribunais, que também criam encargos econômicos por meio da interpretação de dispositivos legais de linguagem aberta[17].

Com efeito, não parece razoável, tendo em vista a inequívoca opção constitucional por um sistema econômico baseado na livre iniciativa[18], aceitar a intervenção econômica com base em presunções e suposições — “no chute”. Noutras palavras, nos casos em que a autoridade reguladora não seja capaz de apresentar estudo empírico que ateste a viabilidade do resultado pretendido. Em tais hipóteses, o ato pode enquadrar-se no conceito de “arbitrário e caprichoso”, justificando-se o controle judicial.

[1] V., a propósito, Jared P. Cole, An Introduction to Judicial Review of Federal Agency Action, Congressional Research Service.

[2] Motor Vehicle Manufacturers Association v. State Farm Auto Mutual Insurance Co., 463 U.S. 29 (1983).

[3] Id.

[4] Adrian Vermeule, Law’s Abnegation 219 (Harvard, 2016).

[5] Corrosion Proof Fittings v. EPA, 947 F.2d 1201 (5th Cir. 1991).

[6] Johnathan S. Masur & Eric Posner, Cost-Benefit Analysis and the Judicial Role, U. Chicago L. Rev. 85, 27 (2018).

[7] Chlorine Chemistry Council v. EPA, 206 F.3d 1287 (D.C. Cir. 2000).

[8] R.J. Reynolds Tobacco, Co. v. FDA, 696 F.3d 1220 (D.C. Cir. 2012).

[9] Pub. Citizen v. FMCSA, 541 U.S. 752 (2003).

[10] Michigan v. EPA, 576 U.S. _____ (2015).

[11] Id., p. 1707.

[12] Fraser Institute, The Economic Freedom of the World: 2018 Annual Report (Sep. 2018), https://www.fraserinstitute.org/studies/economic-freedom-of-the-world-2018-annual-report. (Last Access Mar 2, 2019)

[13] Id. (The 152nd is Uzbekistan (former member of the Soviet Union). The 154th is Afghanistan (a nation that had its first ever democratically elected president less than fifteen years ago)).

[14] Heritage Institute, 2019 Economic Freedom, https://www.heritage.org/index/country/brazil. (Last Access Mar 2, 2019).

[15] The World Bank, Doing Business 2018, Reforming to Create Jobs (2018), http://www.doingbusiness.org/en/rankings. (Last Access Mar 2, 2019)

[16] Sobre o tema, vale mencionar estudo desenvolvido por economistas da Universidade da California, Santa Cruz e da Universidade de Stanford, concluindo que o auto custo da pipoca representa, ao fim e ao cabo, um benefício à população que frequenta os cinemas, sobretudo o consumidor de menor poder aquisitivo.

[17] STJ, REsp 1.737.428/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 15.03.2019. Sobre esse o acórdão, v. http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Terceira-Turma-considera-ilegal-cobran%C3%A7a-de-taxa-de-conveni%C3%AAncia-na-venda-de-ingressos-on%E2%80%93line.

[18] Como se sabe, o constituinte fez da livre iniciativa (i) um princípio fundamental da República, ao lado da soberania, cidadania, pluralidade política e dignidade da pessoa humana (Constituição, artigo 1º, IV); (ii) um direito fundamental (Constituição, artigo 5º, caput) e, por fim, (iii) um princípio geral da ordem econômica (Constituição, artigo 37, XIII).

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