Opinião

Ao aumentar penas, nova Lei de Licitações gera insegurança jurídica

Autor

  • Dante D'Aquino

    é sócio da área penal empresarial do VGP Advogados mestre em Direito Penal Empresarial especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e professor de Direito Processual Penal da Universidade Positivo da Unicuritiba e Universidade Tuiuti do Paraná.

6 de dezembro de 2019, 6h32

A Constituição Federal estabelece que obras e serviços serão contratados mediante licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes. Tal disposição, prevista no artigo 37 de nossa Constituição, destaca um dos mais importantes princípios do processo licitatório — a igualdade de condições entre os concorrentes.

Essa paridade de condições entre os licitantes é fundamental para assegurar que o Estado, ao realizar a contratação de uma obra ou serviço selecione, efetivamente, a proposta mais vantajosa. Além disso, a igualdade opera verdadeira regra de ouro para a validade do processo licitatório, pois impede que o próprio Estado crie cláusulas indutoras que favoreçam determinadas empresas. Trata-se, portanto, de princípio de múltiplas funções. Serve ao Estado, para lhe garantir a seleção da proposta mais vantajosa; serve ao competidor, para lhe assegurar a impugnação de cláusulas discriminatórias.

A Lei 8.666/93 elevou o princípio da igualdade entre os licitantes à categoria de bem jurídico penalmente protegido. Previu, em seu artigo 90, o crime de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório. Curioso observar que a pena prevista na Lei 8.666/93 é de detenção de dois a quatro anos. Nesse cenário, possível condenação é naturalmente conduzida a uma substituição da privação de liberdade por prestação pecuniária ou serviços, nos moldes do artigo 43 e 44 do Código Penal. A consequência para esta conduta, conforme a Lei 8.666/93, portanto, não é das mais graves. O acusado desta prática, se o fato for isolado, responderá ao processo em liberdade, sendo provável que, ao final, a substituição da pena o aguarde.

Este cenário irá mudar, contudo.

O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, em junho de 2019, o texto principal do Projeto de Lei 1.292/95, que consolida a nova Lei de Licitações. O texto promove um significativo aumento da pena de fraude ao caráter competitivo da licitação, além de simplificar a descrição da conduta, tornando-a mais abrangente. Violar a igualdade de competir passará a ter severa punição. De acordo com a nova lei, aquele que frustrar ou fraudar o caráter competitivo da licitação estará sujeito a uma pena de reclusão de quatro a oito anos.

Aos pontos.

Primeiro. Por qual razão aumentar a pena? Bem, a busca por essa resposta nos conduz ao escândalo de fraude à licitação ocorrido em 2006 que ficou conhecido como máfia das sanguessugas, um vergonhoso escândalo de compra de ambulâncias superfaturadas. À época do escândalo, a nova Lei de Licitações já tramitava há mais de uma década no Congresso e houve proposta de alteração para promover o aumento da pena para quem frauda o caráter competitivo da licitação. A pressão popular chegou à Casa Legislativa e se refletiu no texto do projeto. Será lei em breve.

Segundo. Não só a pena foi ampliada, mas a espécie de pena foi modificada. Na nova lei, a pena é de reclusão e não mais de detenção. Por quê? Para permitir o início do cumprimento da pena em regime fechado, caso a pena, no caso concreto, ultrapasse oito anos, como nos processos em que há mais de um crime envolvido, o que é relativamente comum em casos tais. Corrupção, fraude à licitação, superfaturamento de obras e falsidade documental normalmente gravitam ao entorno do contexto fático e costumam aterrizar nas denúncias do Ministério Público. Quando houver concurso de crimes, a pena poderá ser superior a oito anos, o que importará em regime inicialmente fechado, o que era impossível com a detenção.

Ainda:por qual razão elevar a pena mínima para quatro anos (agora é de quatro a oito)? Uma das razões é para dificultar a substituição por prestação pecuniária ou prestação de serviços. De fato, com a pena mínima em quatro anos de reclusão, será remota a hipótese de substituição, pois qualquer causa de aumento já impedirá o benefício, uma vez que o artigo 44, I, do Código Penal, estabelece como critério para a substituição que a pena seja igual ou inferior a quatro anos. E, se a pena mínima parte dos quatro anos, será difícil mantê-la nesse patamar.

No entanto, uma observação crítica parece oportuna. Frustrar ou fraudar o caráter competitivo são expressões abertas que, sem exemplificação de hipóteses no texto normativo, geram modelos de condutas proibidas vagas, lacônicas cuja definição e alcance serão estabelecidos pelo intérprete no caso concreto. E isto importa em grande poder, que não deveria ser delegado de modo irrestrito ao intérprete na esfera penal. O promotor de justiça e o juiz terão, em momentos distintos, a atribuição de aferir se determinada conduta frustrou ou fraudou o caráter concorrencial da licitação. Usarão da interpretação para isso.

A técnica de tipos penais abertos deveria ser reservada às exceções. A falta de um rol taxativo das hipóteses em que se frustra ou frauda o caráter competitivo do processo licitatório abre a margem para interpretações extensivas em desfavor dos envolvidos e viola o princípio da taxatividade do Direito Penal. Em nosso sistema, o Direito Penal deve prever claramente o que é proibido, sendo todo o resto permitido. E quando o legislador se utiliza de tipos penais abertos, com expressões amplas, aumenta-se a insegurança jurídica e a exposição dos atores que nesse contexto serão as empresas licitantes e seus dirigentes.

De fato, como a tipificação do crime de fraudar o caráter competitivo da licitação não é propriamente uma novidade, já existe uma consolidada posição no Superior Tribunal de Justiça sobre a sua consumação. No entanto, as notícias de lá não são animadoras. A corte fixou o entendimento de que o crime é formal, isto é, independe do efetivo prejuízo para sua consumação. Em outras palavras, a fraude ao caráter competitivo pode, inclusive, resultar na proposta mais vantajosa ao erário público, trazendo-lhe lucro, mas o crime ainda assim estará presente. É a superação da tese de que, se o serviço foi prestado ou a obra concluída, não se discute fraude. Essa tese cedeu lugar a nova posição do STJ, segundo a qual a fraude ao caráter competitivo gera um dano in re ipsa, ou seja, um dano em si mesmo, independente de ter ocorrido serviço ou a obra.

Neste sentido, recente posição do STJ a estabeleceu claramente que a fraude ao caráter concorrencial “não demanda a ocorrência de prejuízo econômico para o poder público, haja vista que o dano se revela pela simples quebra do caráter competitivo entre os licitantes interessados em contratar, ocasionada com a frustração ou com a fraude no procedimento licitatório. De fato, a ideia de vinculação de prejuízo à administração pública é irrelevante, na medida em que o crime pode se perfectibilizar mesmo que haja benefício financeiro da administração pública” (REsp 1.484.415, 22/2/2016)

Em um país em desenvolvimento há grande demanda por infraestrutura e, neste caso, o processo licitatório ocupa lugar central no progresso. Olhando por este lado, cabe observar criticamente a inflação do Direito Penal com questões que poderiam ser mantidas na esfera cível, e bem resolvidas lá. O projeto amplia insegurança jurídica às empresas que pretendem contratar com a administração pública, pois estarão expostas à interpretação de termos lacônicos como frustrar ou fraudar o caráter competitivo do processo licitatório. E, mais. Eventual processo criminal não afastará a ação civil pública por ato de improbidade e a multa, foros que bem solucionam o problema em análise. Além disso, existem as consequências advindas da própria existência do processo, tais como a dificuldade em acessar linhas de crédito ou participar de processos licitatórios enquanto processada.

Eis o custo de inflar o Direito Penal.

Autores

  • é sócio da área penal empresarial do VGP Advogados, mestre em Direito Penal Empresarial, especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e professor de Direito Processual Penal da Universidade Positivo, da Unicuritiba e Universidade Tuiuti do Paraná.

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