Senso incomum

Respondendo: e ainda se ensina processo penal nas faculdades?

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5 de dezembro de 2019, 8h00

Spacca
Alexandre Morais da Rosa (ler aqui) perguntou há algum tempo como é/seria possível ensinar direito processual penal depois da operação "lava jato". Respondi-lhe: O segredo da resposta está na crise da dogmática jurídica.

Volto hoje a esse assunto, com uma coluna acústica. Um banquinho, um violão e livros. Uma canção para AMR. E um revival sobre a crise da dogmática jurídica. Julgamentos como o do TRF-4 exigem esse diagnóstico epistêmico. É inescapável. Quem tiver a pachorra de ler até o final, agradeço. Para quem não gosta de textos de mais de dez linhas, desista agora.

Ao trabalho.

Dos anos 80 para cá, ocorreu uma transição não muito bem-feita. Longos anos sem democracia originaram uma espécie de aposta no protagonismo do Judiciário em face da estrutura autoritária da legislação e do Estado de então. Por isso floresceu, em determinado período, um espaço que foi ocupado por teses acionalistas, como direito alternativo, realismo jurídico (direito alternativo é uma espécie de realismo), teses voluntaristas lato sensu etc. Isto porque, no regime autoritário, era necessário apostar em posturas acionalistas. Entretanto, quando foi implantada a democracia e promulgada, logo depois, a Constituição, a dogmática jurídica não se reciclou. Ali começa o problema. Deveria apostar, agora, na estrutura democrática do Direito. Não o fez. O paciente zero da epidemia jaz ali.

Para mim, o busílis da questão que está na raiz da pergunta de Alexandre reside lá longe. E sobre isso escrevi muito. Identifiquei já nos anos 90 uma crise de paradigmas no Direito, que esconde(u), por exemplo, o solipsismo judicial. E continua obnubilando o fato de que a dogmática jurídico-processual penal produziu doutrina durante todos esses anos apostando no protagonismo dos juízes. Uma espécie de prótese para fantasmas, como dizia Warat. Continuou a apostar na livre apreciação da prova. E no livre convencimento, sabe-se lá que tipo de ornitorrinco é isso.

Passados 31 anos desde a CF-88, só não mudou o imaginário dos juristas. No processo penal, continua-se a escrever, grosso modo, as mesmas coisas. Há crítica, é claro. Porém, tem sido pouca a preocupação com a filosofia no processo, isto é, a discussão das condições de possibilidade de o Judiciário apreender o fenômeno e… decidir.

Não nos preocupamos com a decisão. Por incrível que pareça — e isso parece risível — somos tão atrasados (fôssemos da medicina, ainda não teríamos inventado a penicilina) que até mesmo o projeto do novo Código de Processo Penal insiste na tese da livre apreciação da prova. Está difícil de mudar isso. Bom, já tentamos emendar o projeto. A ver.

Ora, deveríamos ter iniciado no dia 5 de outubro de 1988 uma filtragem nos Códigos. Mais, fundamentalmente, antes deveríamos ter feito uma filtragem nas posturas dos juristas. A CF/88 mudou o alvo. Lamentavelmente, pouquíssimo se alterou na dogmática processual-penal (e não só nela). Piorou. E formamos milhares e milhares de reacionários e, por que não, formamos fascistas com (de)formação jurídica. Gente do direito que odeia o próprio direito.

AMR diz que a "lava jato" é um marco. Eu diria que a “coisa” começou um pouco antes, na Ação Penal 470. Escrevi várias colunas na ConJur mostrando que a maior derrotada na AP 470 foi, exatamente, a dogmática jurídica. Por quê? Porque os seus elementos centrais foram destroçados do mesmo modo que o escrete canarinho o foi pela seleção alemã na Copa de 2014. Quando viram, estava 5×0. Aquilo que a dogmática pregava e ensinava a vida toda foi liquidada paradoxalmente pelo mesmo esquema tático que a sustentou: a livre apreciação da prova e a busca da verdade real (que tem em seu ponto de estofo o velho inquisitivismo e, portanto, as respostas teleológicas).

Sim. Há décadas que os livros de processo penal ensinam aquilo que foi utilizado como arma contra os próprios ensinadores e utentes em geral. É duro, mas foi o que ocorreu. De fato, é nesses hard cases da vida (real) que os juízes revelam suas convicções pessoais sobre o direito, não esquecendo que também houve uma profunda renovação nos quadros da magistratura e do Ministério Público. A questão é saber se o Direito coincide com as convicções pessoais dos juízes (e dos promotores).

Entendem o que quero dizer? O que apareceu, tanto na AP 470 como na "lava jato" (e isso se estende ao restante do direito)? Simples. Apareceu aquilo que venho denunciando há muito tempo: a visão pessoal do Judiciário acerca do problema e seus efeitos colaterais em uma sociedade fragmentada. Vejam o atual estágio da “lava jato”. Vejam os diálogos do Intercept. Leiam os acórdãos do TRF4. Já não se faz processo penal. Faz-se lawfare.

Ou seja, indagou-se ao Judiciário o que o Direito tem a dizer sobre esses fenômenos e ele respondeu o-que-cada-membro-do-judiciário-pensa-sobre-tudo-isso. Toma. Claro que ele já fazia isso desde sempre. Só que, agora, pegou em outro alvo.

Essa talvez seja a parte mais difícil de compreender na teoria do Direito: a de que, antes dos juízes, existe uma estrutura chamada “Direito” e que, por vezes, não diz exatamente a mesma coisa que cada juiz pensa. Esse é o lócus da doutrina jurídica: fazer essa transição paradigmática entre o Direito (estrutura) e o imaginário dos operadores.

Ora, o cidadão que vai ao Judiciário não quer saber o que o juiz tem a dizer. Quer saber o que o Direito tem a dizer. Há que se levar os direitos e o Direito a sério. Daí por que juiz não escolhe. Juiz decide.

Por que digo isso? Porque, quando o sapato aperta (em novos pés), quando o caso e os argumentos que os concebem assim o exigem, os juízes acabam dizendo – de forma escancarada – o que pensam sobre a apreciação da prova, do convencimento, da formação da opinião. O problema é que, por vezes, isso fica aquém ou além da estrutura chamada “Direito”. Quando surge um “decido conforme minha consciência”, ou “decido por livre convencimento”, é porque a doutrina já fracassou de há muito… Quando se vê a enchente cobrindo tudo, é porque de há muito começou a chover na serra…!

Ou seja: vai tudo muito bem até que o Direito deixa de ser um direito, para ser aquilo-que-o-judiciário-entende-por-direito. É, por exemplo, quando se prende e se solta com base no mesmo argumento. Quando o Direito já não é direito, mas uma péssima teoria política do poder. Quando o sim e não são considerados “defensáveis”, é porque perdemos o timão da doutrina.

Como ensinamos processo até hoje? OU o que vai ser “ensinado” depois da lava jato? Simples: Lidamos com a teoria do processo a anos-luz dos paradigmas que conformam o mundo. Na filosofia, ninguém admite essas coisas que a comunidade jurídica diz sobre a prova. Acham ridículo. Ainda tem gente escrevendo sobre verdade real, que é uma “verdade” pré-moderna, em que, se quisermos lidar com os fatores sujeito e objeto, S e O, seria O>S, um objeto que (ainda) assujeita o sujeito. Pior ainda é uma mistura de dois paradigmas (objetivismo e subjetivismo), gerando um peru, que queria ser, ao mesmo tempo, um pavão e um urubu – e Zeus castigou. Nasceu um bicho feio e que não voa.

Querem ver um sintoma? Alguém falar em ponderar entre o “interesse” (sic) individual e o “interesse público” (sic) e citar Alexy. Doença grave. Muitos juristas — alguns que hoje se queixam da "lava jato" e se queixaram da AP 470 — escreveram ou ensina(ra)m nas salas de aula que o juiz pode fazer ponderação… Bem assim. Quantos acusados já foram condenados com base na ponderação (mal feita)?

Louvo a preocupação de Alexandre. Apenas acrescentaria que não se ensina depois… porque não se ensinou antes… Essa luta é paradigmática. E foi perdida. Veja o que tem sido dito sobre a presunção da inocência. Veja-se a tese da dúvida razoável. Veja-se a tese do bayesianismo, explanacionismo e quejandos.

Tudo isso que disse acima posso comprovar epistemicamente (e empiricamente). Basta lerem as minhas advertências de mais de duas décadas. Novas leis? Como sempre, a dogmática decide esperar o que o Judiciário diz… Ou seja, sempre uma volta ao velho realismo jurídico. Veja-se a velha tese de que não há nulidade sem prejuízo. O judiciário inventou e a doutrina aceitou. Uma excrecência. Como uma nulidade processual não causar prejuízo? E por que o cidadão, parte mais fraca, tem de provar, se a nulidade foi por culta do Estado?

As decisões acabam sendo teleológicas (decide-se e, só depois, busca-se uma justificativa) e não de princípio. Não quero ser o descobridor da pólvora, mas tenho insistido, com chatice epistêmica, que as decisões judiciais devem ser proferidas por princípios e não por políticas.

Para ser bem claro: Se, por exemplo, o paciente reúne as condições de receber habeas corpus — aferíveis objetivamente em face da estrutura chamada “Direito” — por mais que seja antipático ou politicamente incorreto a sua soltura, o Judiciário deve conceder o writ. Mesmo que a mídia berre. Porque a decisão na democracia é por princípio. Por mais tentador que seja agir por política.

Mas, infelizmente, a própria dogmática jurídica cavou o seu buraco. Admite até hoje a livre apreciação. Logo, se esta é livre, pode ser contra ou a favor. E logo depois se justifica o que foi decidido intuitivamente… Por isso, em casos que envolvam forte atuação da mídia, cada vez mais as decisões são teleológicas. Finalísticas.

Mas, atenção, não ponho a culpa no Judiciário. Fazemos parte de uma coisa maior, que é o imaginário jurídico no interior do qual nos localizamos. E agimos. E não reagimos. Do professor da faculdade tipo-UniZero, que não sabe um ovo do que ensina, até o professor de cursinho que encanta as plateias com refrões resumidinhos, até a pós-graduação que, em muitos programas, ainda repete conteúdos da graduação, com dissertações e teses sobre embargos, limitação de fim de semana, estelionato, cheque sem fundo ou agravo, com temas monográficos que recebem uma flambagem teórica do tipo “regra é no tudo ou nada, princípios é na ponderação”. Tem exceção? Claro. Mas parcela considerável do ensino e das práticas nos mostra esse quadro tão bem pintado por Alexandre Morais da Rosa. Só que minha resposta tenta pegar a origem disso tudo.

Se na primeira pedalada nas garantias a doutrina tivesse feito os necessários constrangimentos (que devem atuar nas faculdades, cursinhos, livros, conferencias, seminários etc.), não teria sido formada uma “certa tradição…”, se me entendem o que quero dizer. Ou seja, o problema é que o Judiciário já se acostumou a julgar conforme a sua livre apreciação acerca dos fatos e da lei. Há, nisso, uma certa teologização do direito. Em vez de o direito “emanar” da Constituição, “emana” de quem filtra o que diz a Constituição e as leis. E, hoje, todos pagam o preço, a saber:

  • o andar de baixo, por ser da tradição de um país de modernidade tardia; e
  • o andar de cima, pelo desejo que o Judiciário tem de tentar corrigir aquilo que a política não vem conseguindo. Só que esta tarefa não é dele.

O quadro pintado por AMR está correto no plano de uma análise do realismo jurídico. É assim mesmo que as coisas estão indo. E a saída que ele propõe também tem fortes traços de realismo jurídico, isto é, a decisão é, ao fim e ao cabo, um problema do judiciário e assim devemos nos preparar para enfrentar esse fenômeno de poder.

Mas, aí é que está: eu não consigo conceber que o problema da decisão se transforme em um jogo de poder ou seja resolvida como se fosse só poder. Se, de fato, for um jogo de poder (ou um jogo, mesmo), temos de confessar o fracasso da doutrina, da teoria do direito e de tudo o que ela representa em termos de “constrangimentos epistemológicos”. Mutatis, mutandis, é como se, no nosso cotidiano, os sentidos das coisas só nos surgissem quando lidássemos com elas e não a partir de um a priori compartilhado que, é claro, também inclui o encontro com essas coisas. Mas não são essas coisas (no caso, as decisões) que me impingem o que a coisa (o sentido do direito) é. Toda concepção que possui traços realistas inexoravelmente flerta com o empirismo. As decisões não são a fotografia do Direito, assim como a filosofia não é o espelho da natureza, para usar uma expressão conhecida.

A partir do diagnóstico de AMR, haveria uma polarização que opõe um modelo “continental” de estudo do Direito (identificado a partir de uma perspectiva epistemológica mais abstrata e sistemática, centrada na resolução dos problemas normativos) a um modelo anglo-saxão, de conotação realista (cuja identificação pode ser retratada a partir de um corte mais pragmático, assistemático, centrado num tipo de análise que permita avaliar as condições sociais e psicológicas que envolvem o processo decisório para — tentar — fazer projeções de como serão decididas os casos futuros semelhantes).

A questão posta, portanto — a partir de um olhar hermenêutico — não pode ter como resposta um realismo de nova roupagem, que continue a descrer da possibilidade de uma concepção de direito que preexista à decisão judicial e que deve conformar o caso, com um efetivo grau de autonomia. A “coisa” não pode depender da estratégia do intérprete (sujeito da relação).

Ora, se hoje temos esse mosaico sincrético de tradições no âmbito do processo penal, como bem denuncia Alexandre Morais da Rosa, isso se dá justamente porque, nos últimos dez ou quinze anos, o campo majoritário do direito no Brasil acabou seduzido pelo canto das sereias do realismo jurídico. Chamei a isso de “realismo retrô”.

O que seria essa volta a uma espécie de realismo? Simples: nele, os sentidos do direito decorrem e se dão predominante… na e pela decisão judicial; eis o porquê do crescimento do direito “jurisprudencial” em Pindorama; eis o porquê da paixão do novo Código de Processo Civil (CPC) pelos precedentes. Fala-se até em “sistema de precedentes”. Eis porque os textos mais lidos na internet são as listas de teses publicadas pelo STF e STJ. Doutrina? Para quê? Não há Direito; há apenas um certo jurisprudencialismo à brasileira. Frente a isso temos duas posturas:

  • a fatalista, pela qual isso é assim mesmo e temos nos adaptar e tirar o melhor proveito e
  • (ii) a de oposição, pela qual o Direito tem de ter um grau de autonomia e a doutrina tem de ter um papel prescritivo.

Simples assim. Ou extremamente complexo assim.

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